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Mais bebida e comida: uma receita contra a bebedeira

No documento Gilberto Luiz Lima Barral (páginas 155-158)

O movimento no comércio já era intenso. Os domicílios e as lojas ocupavam o telefone e os serviços de Bicicletino, entregador de bebidas do bar

Paixão. A sexta-feira é um dia especial para os bares. Bicicletino gosta, pois a

gorjeta aumenta. No entra e sai com a bicicleta e os pedidos, ele está sempre sorrindo e brincando. Sentado em um banco de madeira, ao lado dessa mesa acompanhando a situação, perguntei para Botafoguense onde tinha conseguido o tatu e ele disse, meio desdizendo, em um sussurro, quase não falando, que foi para “as bandas da fazenda” de sua mãe.

Um frequentador do bar, Sr. Atleta, que acabara de chegar e fora apresentado para o prato do tira-gosto disse, com um sorriso, misto de zombaria e repreensão: “Você foi longe, hein! Isso é crime, hein! Não, obrigado”. Deu um “tapinha” no braço de Botafoguense e foi para um outro lado da mesa cumprimentar as outras pessoas. Mineirinha, a cozinheira de um restaurante próximo, passando pelo Paixão, viu o prato de tira-gosto. Botafoguense falando sobre a comida lhe ofereceu, ela, recusando, disse: “Eu não gosto desse bicho não!”.

Botafoguense já estava bêbado, eram 10h30min. O tira-gosto se esfriava

sobre a mesa. Ou Botafoguense chegara cedo demais com a iguaria, ou as pessoas não gostavam ou conheciam carne de tatu. Ou até mesmo se sentiram constrangidas em “participar de um crime ecológico”. Botafoguense começou a andar pelo bar com a bandeja com o tira-gosto à mão e a oferecer para os presentes e os que iam chegando. Por curiosidade em saber o gosto da carne, apanhei um pedaço, tentei comer, mas estava um pouco fria e parecia pouco cozida, o gosto era razoável, mas fria e dura não me apeteceu. É uma carne com linhas de gordura, de modo que, fria, fica meio empastada, tornando-se insossa ao paladar.

Irritado com a recepção e o fiasco de seu tira-gosto, Botafoguense pegou a garrafa de uísque que trouxera consigo e foi sentar sozinho em outra mesa. Ele, a bebida, o tira-gosto e seu mau humor de bêbado. Sóbrio ele era simpático e querido. Agora, bêbado, todos no bar falavam dele, riam, faziam chacotas e piadas, com razão. A ordem dos frequentadores e do proprietário do Paixão não suportava a condição atual de Botafoguense. Ele precisava reagir, agora que teve uma lição da ordem do bar. Sentar em outra mesa aumentou o grotesco em seu comportamento e exagerou o riso da plateia. Botafoguense era a piada. A cena a não ser repetida e a pessoa virar a figura carimbada80.

Outra maneira de beber “como direito” foi observada em uma quinta-feira, aproximadamente às 20h. No Bar do Careca, encontram-se dois grupos de homens sentados em mesas separadas. Em uma delas estão quatro homens, com idades entre 25 e 40 anos. Em cima da mesa deles 12 garrafas de cerveja, nesse momento, e uma bandeja com tira-gosto, frango à passarinho81. Em outra mesa, na lateral do bar, outros quatro homens, na mesma faixa etária, também entre 25 e 40 anos, bebem. Quatro garrafas de cerveja sobre essa mesa. Este último, grupo de moradores da Vila Planalto; o primeiro, da outra mesa, trabalhadores da construção

80 Figura carimbada é gíria que designa a pessoa que sempre repete o lugar de frequentação. Gíria provavelmente surgida nos anos 1960 que mais à frente será aplicada em outra situação onde pode ser mais bem compreendida.

81 Frango à passarinho é um tipo de prato feito à base de cortes de frango, geralmente a asa. Os cortes são fritos em óleo quente e depois são servidos com um molho de alho e azeite por cima dos pedaços de frango. O frango à passarinho é um tira-gosto tipicamente brasileiro, é servido em muitos bares, em vários lugares do país. Uma porção deste tira-gosto custa em média de R$ 14,00 a R$ 19,00 nos bares pesquisados. Imagens e receitas disponíveis em: <http://www.youtube.com/ watch?v=3pG2d9n7kz4>. Acesso em: 16 jan. 2012.

civil que estão acampados em Brasília, na Vila Planalto, para construírem as “obras da copa do mundo”. São de outras regiões do país, trabalhadores de uma empresa que faz grandes obras em vários estados.

A prática de enfileirar vasilhames de cerveja sobre a mesa tem uma série de significados: transparência na contabilidade para os frequentadores e o bar; concursos etílicos; masculinidade e moral; comemorações e festejos; capacidade de consumo; ajuntamento juvenil, entre outros. Enfim, é uma maneira de beber que já havia observado na pesquisa para dissertação de mestrado entre jovens em Brasília. Observo que essa prática, nos bares pesquisados, informa sobretudo comportamentos masculinos entre jovens e adultos. Contudo, nem todos os ajuntamentos de pessoas e nem todos os bares pesquisados adotam ou permitem essa prática.

Outra forma de beber, que aponta a capacidade de consumo do grupo, é colocar uma grade82 vazia de vasilhames de cerveja ao lado ou sob a mesa, como o fazem alguns grupos de “ilustres frequentadores”, no bar do Piauí ou do Meu Bar. Quando esses grupos chegam e ocupam uma mesa, os funcionários ou proprietários que lhes atendem, já conhecendo essas suas práticas, trazem uma grade vazia para eles irem depositando os vasilhames de cerveja consumidos, vazios.

Esse beber em grandes quantidades é analisado por Pierre Bourdieu como sendo o alimento masculino dos bares; e a bebida alcoólica, considerada uma substância que sustenta o corpo masculino. O controle social de sua ingestão ensina que o homem tem que saber beber. A bebida reproduz a virilidade: beber muito e continuar de pé se relaciona ao fálico. Agindo dessa maneira, conquista o respeito dos demais e se “torna homem”. (BOURDIEU, 2011).

Da mesa desses trabalhadores vinham assuntos relacionados ao dia de trabalho. Um dos homens, o mais loquaz, falava dos feitos do dia, com orgulho da equipe. Um lazer como forma de alívio das tensões do trabalho. Em sua fala, ele era um herói, um trabalhador melhor que os outros, e isso era fruto do trabalho de sua

82 Segundo o site da empresa Gerais Plástico Indústria e Comércio, a grade de cerveja é “um produto resistente com alta qualidade e durabilidade ideal para transporte e armazenamento de cerveja”. Suas dimensões externas são (altura x largura x comprimento, em cm): 15,8 x 58,4 x 66,6 cm. É feita de Polietileno de Alta Densidade (PEAD). Seu peso é de 2,190 kg. Informações disponíveis em: <http://www.geraisplasticos.com.br/produtos/pt-br/ler/19/grade-de-cerveja-litro>. Acesso em: 19 jul. 2012.

equipe. “Nós batemos as outras turmas. Eu ficava rindo, vendo a gente já lá na frente e eles lá atrás. Amanhã nós vamos fazer do mesmo jeito”. E brindava e bebia com gosto sua cerveja.

No documento Gilberto Luiz Lima Barral (páginas 155-158)