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A análise de alguns casos envolvendo o envio e recebimento de nudes por adolescentes que acessaram o canal de orientação da SaferNet Brasil nos permite compreender um pouco da percepção dos próprios jovens. Com base em um recorte de 72 pedidos de orientação sobre

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nudes recebidos pelo canal em 20164, pudemos observar que os casos problemáticos de compartilhamento de nudes não consentidos envolviam, majoritariamente, pessoas conhecidas da vítima em ambientes fora da Internet. Em apenas quatro casos o compartilhamento, ameaça ou chantagem de exposição íntima ocorreu com estranhos e em outros dois houve sinal de que alguém teve acesso aos conteúdos íntimos por meio de invasão do dispositivo eletrônico ou gravação sem consentimento. Em todos os demais casos, as vítimas indicam que a produção e a troca de nudes era uma das formas de expressão e experimentação da sexualidade em um relacionamento interpessoal, como é possível observar nos relatos abaixo:

Há um mês e meio, mais ou menos, eu estava namorando um garoto (mais velho). Como estávamos namorando já algum tempo, ele me pediu uma foto seminua. Como ele me mandou também, resolvi mandar. Ele pediu pra apagar logo depois de ver, e foi o que eu fiz. Já ele não fez o mesmo. (Menina, 13 anos)

Hoje uma pessoa me mandou uma mensagem na rede social Snapchat se passando por uma mulher com o usuário. Nós conversamos um pouco e trocamos imagens sexualmente explícitas (nudes). (Menino, 15 anos)

Quando tinha mais ou menos 13 anos, eu comecei a namorar um menino, que, na época, tinha 15. Fiquei um ano com ele, e era muito inocente. Nesse meio tempo, ele me pedia para enviar fotos nuas. Eu sempre neguei. Mas minha autoestima sempre foi muito baixa, e ele sempre me elogiava com coisas que me faziam me sentir ótima comigo mesmo.

E após várias conversas sobre o assunto, acabei enviando para ele algumas fotos minhas, mas não tinha consciência que poderiam ser vazados, pois eu realmente amava ele e confiava também, e não via muita malícia nesse ato. (Menina, 16 anos)

Com exceção dos casos problemáticos, a experimentação entre pares (Wolak & Finkelhor, 2011), e não o envolvimento com adultos abusadores ou aliciadores, está na base da maior parte das situações relatadas. Esse fato não isenta a dinâmica de violência, mas sinaliza que a produção e troca de conteúdo íntimo parece funcionar tanto como exercício de autoconhecimento quanto de experimentação da sexualidade. Mesmo nos casos de experimentação com estranhos, o início do contato estava associado a uma relação de intimidade e confiança mútua que depois se desdobrou em ameaça e chantagem.

Ainda que a troca de nudes como experimentação pareça cada vez mais comum em namoros e relacionamentos afetivos entre adolescentes, o que mais se destaca é o impacto desigual provocado pelo compartilhamento não consensual na vida de meninas e mulheres. Dos 48 pedidos de ajuda feitos por adolescentes em 2016, 37 foram feitos por meninas que foram expostas sem consentimento por meninos. Os sentimentos relatados, na quase totalidade dos casos, envolvem palavras, como medo e angústia, associadas à sensação de vergonha e arrependimento, por terem se engajado na troca e confiado em seus parceiros. Em apenas dois dos 37 relatos, as meninas explicitamente sinalizaram indignação com o comportamento dos autores do compartilhamento não consensual. Esses dados revelam que a culpa e a responsabilidade continuam recaindo exclusivamente sobre as meninas, provocando o seu

4 Canal de orientação on-line operado pela SaferNet Brasil por e-mail e por chat. Recuperado em 20 abril, 2017, de http://www.canaldeajuda.org.br

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isolamento. Isso sinaliza a escassez de recursos que elas têm disponíveis para lidar e responder às experiências de violência. É recorrente que a fonte de sofrimento e incômodo relatados advenham de juízos moralizantes e da imposição de normas prescritivas de gênero, com pouca margem para negociação e gestão de si. Em muitos casos, o isolamento provocado pelos pares e o dano à reputação nos ambientes presenciais são tão intensos que as vítimas mencionam ideações suicidas, como é possível notar nos trechos abaixo:

Assumo total responsabilidade pelo erro, aprendi como a exposição da intimidade por uma foto pode afetar a vida de um adolescente. (Menina, 13 anos)

Toda vez que saio na rua, acho que qualquer pessoa estranha que me olha está pensando:

“eu sei que o que você fez”. Eu mal consigo sair da minha cama de manhã, me sinto angustiada, triste, deprimida e tudo que eu gostava não traz mais graça para mim. Me sinto horrível e não vejo mais esperanças para nada. Porque eu sou culpada de tudo isso e não posso escapar das consequências. (Menina, 16 anos)

Mas os meus responsáveis estão com repúdio de mim. Ninguém me apoia, entende? Estou sofrendo assédio moral. Meus irmãos estão me evitando. (Menina, 17 anos)

Nesse contexto, os pedidos recebidos pela SaferNet Brasil são muito mais relacionados ao apoio na recuperação da reputação, diálogo com os familiares e remoção dos conteúdos do que na busca por orientações sobre as possibilidades de punição dos responsáveis pela violência. Os relatos das meninas vítimas sinalizam o quanto essa forma de violência contra as mulheres é incorporada e banalizada desde as suas primeiras experiências sexuais.

Por fim, este breve recorte de casos concretos de compartilhamento não autorizado de nudes aponta para a imensidão do desafio associado ao item 5 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), pactuados nas Nações Unidas, a saber: “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”, com destaque para o item 5.b: “Aumentar o uso de tecnologias de base, em particular as tecnologias de informação e comunicação, para promover o empoderamento das mulheres” (Organização das Nações Unidas [ONU], 2015).

CONCLUSÃO

Em um contexto em que se exaltam as oportunidades viabilizadas pelas tecnologias digitais como algo “nativo” às novas gerações, a amplificação e a consolidação da violência contra meninas tornam necessária uma reflexão crítica sobre valores e estereótipos que têm guiado a apropriação das tecnologias. Se o tabu sobre a sexualidade de crianças e adolescentes já exclui essa pauta dos sistemas de ensino e de muitas famílias, a perspectiva de direitos sexuais e o enfrentamento às violências contra as mulheres não podem ser também excluídas das políticas públicas e programas de massificação do uso das tecnologias digitais.

As tecnologias podem e devem ser aliadas no enfrentamento às desigualdades, mas é necessário ir além do enfrentamento e da proteção. É preciso atuar, também nos casos de nudes, com a proteção integral, contemplando os outros dois “Ps” previstos na Convenção dos Direitos das Crianças: a provisão e a participação. Para contemplar o ODS 5 no mundo digital, é preciso pensar a provisão de recursos para a apropriação crítica das tecnologias, a provisão de

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informações claras sobre direitos e deveres na Internet, bem como a provisão de acesso aos mecanismos de denúncia e de ajuda aptos a acolher as demandas de crianças e adolescentes. É preciso também estimular e viabilizar a participação de crianças e adolescentes na elaboração e monitoramento de políticas públicas a elas direcionadas, incluindo os mecanismos de governança da Internet. Nesse sentido, tecnologias digitais podem ajudar a reduzir a distância entre o discurso e a efetivação de respostas que atendam diretamente aos melhores interesses de crianças e adolescentes. Porém, para isso é preciso conciliar a educação para a cultura digital em sintonia com a educação em direitos humanos, de modo a viabilizar a apropriação positiva e crítica de tecnologias para a transformação social.

Para além das significativas contribuições que a pesquisa TIC Kids Online Brasil pode oferecer para visualizarmos as diferentes formas de apropriação da Internet por crianças e adolescentes no país, vale pensarmos em estratégias integralizantes, que agreguem mais dados qualitativos e viabilizem espaços para que tenhamos mais presença e participação das próprias crianças e adolescentes. As vozes que chegam por meio de relatos em serviços de escuta e orientação (a exemplo da SaferNet Brasil), as vozes registradas nos canais de consulta pública a adolescentes sobre sua percepção das políticas públicas (como canal é o caso do U-Report, do Fundo das Nações Unidas para a Infância – Unicef) e as vozes de jovens engajados em programas de incentivo à participação juvenil nos fóruns de governança da Internet são exemplos interessantes que precisam ser amplificados. Em paralelo a diferentes programas e projetos, há mais de 23 milhões de crianças e adolescentes que utilizam a Internet para as mais variadas atividades (CGI.br, 2016), criando e recriando espaços para que suas vozes sejam ouvidas e reconhecidas, fazendo-se necessário considerá-las também na elaboração de políticas públicas e novas tecnologias.

REFERÊNCIAS

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MEDIAÇÃO DO ACESSO DE CRIANÇAS