• Nenhum resultado encontrado

Canais de youtubers mirins foram escolhidos como campo empírico para compreender de que modo os processos comunicacionais afetam a construção social da infância, no contexto brasileiro contemporâneo. A escolha dos canais Bel para Meninas, Julia Silva, Juliana Baltar e Manoela Antelo foi submetida a critérios de caráter numérico, classificatório e midiático2. A amostra dos vídeos reuniu apenas aqueles que possuíam, em janeiro de 2016, a marca mínima de 1 milhão de visualizações, o que totalizava mais de 200 vídeos. Dentre esses foram selecionados cerca de 120, por meio de uma regra de proporcionalidade3. Para registrar todo o material, foi necessário não apenas fazer o download dos vídeos escolhidos, mas também o de suas respectivas páginas com o carregamento de todos os comentários disponíveis. Em seguida, as páginas geradas foram salvas no formato PDF. Alguns desses arquivos chegaram a ultrapassar 100 páginas. O corpus incluiu, portanto, além dos vídeos e dos comentários, os quadros enunciativos relacionados a cada vídeo (título, descrição, número de likes e de visualizações, etc.). Esses dados foram utilizados para a realização de um estudo de caso de caráter etnográfico.

2 Critério numérico: em uma lista inicial de youtubers mirins com cerca de dez canais, Julia Silva, Isabel Peres e Manoela Antelo já se destacavam entre as que mais cresciam em número de inscritos e visualizações; critério classificatório: Julia Silva foi a primeira criança a aparecer no TOP 100 brasileiro do SocialBlade (www.socialblade.com), página internacional de ranqueamento de sites de redes sociais. Em seguida, vieram os canais Bel para Meninas e Juliana Baltar; critério massivo: um levantamento dos programas de TV das principais emissoras abertas do país e de matérias publicadas em jornais da grande imprensa trazia comumente os canais Julia Silva, Bel para Meninas e Manoela Antelo, entre outros, como exemplos bem-sucedidos de canais infantis.

3 Esse procedimento foi necessário para que a amostra mantivesse, em uma quantidade menor de vídeos, o mesmo percentual de temáticas dos vídeos (Exemplo: resenhas de brinquedos, encenações, desafios, diários de viagem, etc.).

PORTUGUÊS

A etnografia tem sido acionada por um número crescente de pesquisadores da comunicação, sobretudo aqueles que investigam objetos do universo on-line (Amaral, 2007; Campanella, 2012; Montardo & Rocha, 2005; Natal, 2009). Na medida em que esses trabalhos compreendem que, em tais espaços, a cultura também está sendo construída, este ambiente se torna, cada vez mais, campo possível para uma abordagem etnográfica. Nos últimos 20 anos, tem-se buscado incluir no rol de pesquisas sobre crianças aquelas com as crianças, a fim de incluir a sua voz na produção científica. Embora não seja possível encontrar uma receita para estudos etnográficos com crianças, pode-se dizer que, ao menos em três aspectos, há um certo consenso (Azevedo & Betti, 2014; Castro, 2016; Corsaro, 2011;

Ferreira & Nunes, 2014; James & James, 2014; Pereira, 2014; Souza & Castro, 2008).

O primeiro deles seria de ordem teórica: se as crianças são, de fato, atores sociais, não faria sentido realizar pesquisas que não considerassem suas vozes, suas produções ou as produções endereçadas a elas. O segundo aspecto é metodológico: cabe ao pesquisador criar um ambiente propício para as crianças oferecerem sua visão de mundo. Por fim, há uma compreensão ética: além de conceder uma participação segura para as crianças em pesquisas, é necessário respeitar sua vontade de falar.

A entrada no campo evidenciou a existência de um entorno discursivo no universo das youtubers mirins que extrapolava a comunicação mediada por computador, uma vez que avançava gradativamente para as interações face a face, por meio de eventos presenciais, organizados para que as meninas pudessem conhecer pessoalmente seus fãs e seguidores.

Por essa razão, além do plano on-line, a investigação compreendeu um plano off-line.

Não se trata, porém, de um deslocamento de campos, mas de uma relação de contiguidade entre dois ambientes. Com base nessa demanda, o estudo se valeu de uma observação participante no plano off-line e de uma observação silenciosa, no plano on-line, podendo esta ser considerada a observação de “primeira mão” da pesquisa (Sá, 2005), particularmente na seção de comentários4. A observação silenciosa é também chamada de lurking, “ato de entrar em listas de discussão, fóruns, comunidades on-line, etc. apenas como observador, sem participação ativa”, conforme explicam Fragoso, Recuero e Amaral (2015, p. 192). Segundo as autoras, a decisão de permanecer ou não em silêncio “precisa ser tomada e refletida, influenciando assim as escolhas, justificativas e direcionamentos éticos que acontecerão ao longo da pesquisa e que terão reflexos em seus resultados”. A escolha do método se pautou em três pontos. Em primeiro lugar, porque o princípio da perspectiva da criança já estava assegurado por meio de sua produção de conteúdo; em segundo, porque, diante do volume do material, não havia necessidade de “provocar” mais participação das crianças; e, por fim, ficou gradativamente claro que fazer contato com as crianças pela Internet poderia ferir os protocolos éticos de pesquisa, uma vez que, na comunicação mediada por computador, a vulnerabilidade delas se complexifica.5

4 Na pesquisa, o plano off-line está identificado pelas interações face a face produzidas nos encontros presenciais entre as youtubers e seus fãs, nos chamados encontrinhos e nas sessões de autógrafos, realizados ao longo de 2016, em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.

5 Já no ambiente off-line, houve a possibilidade de pedir essa autorização para elas e para os responsáveis que, prontamente, liberavam a conversa.

PORTUGUÊS

Essa série de decisões permitiu a construção do campo de pesquisa, que nunca pode ser tomado como pronto. Foram as escolhas, paulatinamente refletidas, que erigiram o fenômeno midiático dos youtubers mirins como um objeto de pesquisa e os canais do YouTube como campo empírico para investigar a infância contemporânea. Uma vez que objeto e campo estavam definidos, o primeiro passo foi identificar as crianças que circulavam no ambiente digital examinado, tarefa para a qual os comentários se mostraram fundamentais. Observando como escrevem, os brinquedos a que fazem referência e as informações que fornecem na área de comentários (“minha mae tem seu feiciduqui”, “também tenho essa Barbie”, “vou ganhar uma Baby Alive Comilona no Natal”, “tenho 10 anos”; “estou no sexto ano”), era possível visualizar a presença delas.

De maneira geral, essas crianças estão inseridas em um contexto global de acesso à Internet e às mídias digitais. Elas gozam de oportunidades para se constituírem de novas formas no mundo, ainda que corram os riscos advindos de tal exposição. São, de fato, consumidoras ao mesmo tempo em que são produtoras de sentidos e de conteúdo para a comunicação mediada por computador. Formam redes sociais em torno de indivíduos e de temas de interesse e constroem novas sociabilidades, às quais também se submetem.

Todavia, existe um contexto local que particulariza essa experiência e a torna possível não a todas as crianças, mas a uma parcela delas. As quatro youtubers são brancas, moram em regiões metropolitanas, estudam em escolas particulares e pertencem, de modo geral, à classe média, com sensíveis diferenças no poder de compra. As crianças usuárias dos canais, por sua vez, se posicionam socialmente, ao assistirem a vídeos que mostram bonecas caras, viagens para o exterior, comemorações de aniversário em casas de festa e hábitos de lazer das youtubers. Algumas buscam demonstrar que têm uma vida semelhante, ainda que se valham de um pouco de ficção (“também já fui nesse hotel”, “vou a Disney todo sábado e domingo, e nas férias claro”, “tenho um tênis igual o seu, Manu”, “eu sou rica também”; “cheguei nesse parque quando você tinha acabado de sair”). Outras, entretanto, mostram que vivem em uma realidade social diferente (“queria muito essa boneca, mas meus pais não têm condição”;

“meu sonho é ir na Disney, mas sou pobre”, “queria muito uma festa assim”, “queria ter sua vida”). Os posts acenam para diferenças sociais enraizadas em solo brasileiro e dão às crianças a oportunidade de notar desigualdades que cobrem o país.

Após assegurar a presença delas nos canais por meio de postagens, o passo seguinte foi elencar o caráter dos comentários. Dentre os usos conferidos à seção, estão: responder às incitações feitas pelas youtubers (“coloque nos comentários de qual princesa você gosta mais”); expressar a opinião sobre o vídeo, a youtuber ou o canal (“amei”, “que lixo”, “sou fã número um”);

perguntar sobre a vida privada das youtubers (“você mora com seu pai e sua mãe?"), sobre como fazer algo (tutoriais), sobre lugares em que elas porventura estejam visitando (“onde fica esse hotel?”), sobre o preço dos brinquedos resenhados e locais para comprá-los; indicar que tipo de vídeo gostariam de assistir (“faz o desafio do gelo?”); questionar ideias presentes nos vídeos (“acho que vocês não deviam gastar comida para fazer brincadeira”); buscar mais interação com as youtubers (“dedica um vídeo pra mim?”); iniciar discussões baseadas em assuntos que surjam nos vídeos (“minha mãe não brinca comigo”); divulgar os links de seus próprios canais (“assinem meu canal”); conversar com outros usuários.

Os diferentes eixos temáticos sobre os quais os comentários foram organizados permitiram duas inferências. Em primeiro lugar, essas postagens se constituem em elementos do universo

PORTUGUÊS

infantil contemporâneo. Atuam como janelas para a infância, por meio das quais é possível divisar que assuntos são caros às crianças, o que elas consideram problemático em seu mundo social, que compreensões têm dos relacionamentos pessoais que travam no dia a dia, que dinâmicas envolvem o seu cotidiano. Ou seja, além de serem uma janela para as crianças olharem o mundo, os canais do YouTube também se tornam uma janela para o mundo olhar as crianças, tomar ciência do que falam, como falam, com o que se importam e em que intensidade se importam. Nesse sentido, as redes sociais digitais se apresentam como um lugar propício para investigar a infância, se considerarmos as produções de conteúdo e de sentido de que as crianças fazem parte em tais ambientes. Em segundo lugar, este espaço pode se configurar como um lugar de fala para elas, quando as faculta a possibilidade de abordar assuntos que consideram pertinentes, além de permitir-lhes expressar sua perspectiva sobre diferentes temas. Embora a maior parte dos comentários seja pautada pelos vídeos produzidos e postados pelas youtubers, a repercussão deles toma diferentes dimensões, evidenciando visões de mundo que tanto reproduzem a cultura vigente quanto a questionam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Instadas pelas youtubers a deixarem seus comentários, crianças usuárias do YouTube se valem da plataforma mais do que para opinar sobre o vídeo em exibição. Elas postam suas opiniões sobre assuntos que as atingem diretamente: desigualdade social, amigos falsos, férias, relacionamento com os pais e preconceitos, entre outras temáticas. O caudaloso volume de mensagens escritas por elas é rico porque expõe, sobretudo, o modo como as crianças dialogam com a cultura contemporânea. Através dele, elas emitem suas visões de mundo em processos interpretativos e, por meio de tais práticas, ocupam o espaço digital, tornando-o um possível lugar de fala.

É nesse sentido que se pode afirmar que os usos permitem que as crianças participem da construção social da infância enquanto oferecem suas perspectivas a respeito de seus primeiros anos da vida. O que não significa dizer que, antes, não participavam – mas que surgem, no contexto atual, novos meios de fazê-lo. Assim, as redes sociais on-line se apresentam como um espaço não dado, mas erigido pelos usos das crianças, por meio do qual é possível construir conhecimento sobre a infância. As interações produzidas pelas youtubers sinalizam os modos como elas mobilizam não apenas seus fãs, mas a própria plataforma de vídeos; a indústria do entretenimento; o mercado de livros; o comércio de brinquedos e demais produtos voltados para crianças; seus próprios familiares; os dispositivos midiáticos de maneira geral; e a produção de saberes – o que aponta, portanto, para sua ação no mundo. Essas interações propiciam novas percepções sobre a infância e sobre o que é ser criança na contemporaneidade, além de iluminar práticas sociais que podem ser acionadas em diferentes agenciamentos.

REFERÊNCIAS

Amaral, A. (2007). Categorização dos gêneros musicais na Internet: Para uma etnografia virtual das práticas comunicacionais na plataforma social Last.fm. In J. Freire Filho, & M. Herschmann (Org), Novos rumos da cultura da mídia: Indústrias, produtos e audiência (pp. 227-242). Rio de Janeiro: Mauad.

PORTUGUÊS

Azevedo, N. C., & Betti, M. (2014). Pesquisa etnográfica com crianças: Caminhos teórico-metodológicos.

Nuances, 25 (2), 291-310.

Campanella, B. (2012). Os olhos do Grande Irmão: Uma etnografia dos fãs do Big Brother Brasil.

Porto Alegre: Sulina.

Castro, M. G. (2016). Implicações teórico-metodológicas da pesquisa científica com crianças. Cadernos da Fucamp, 15 (23), 8-21.

Comitê Gestor da Internet no Brasil – CGI.br. (2016). Pesquisa sobre o uso da Internet por crianças e adolescentes no Brasil: TIC Kids Online Brasil 2015. São Paulo: CGI.br.

Cook, D. T. (2004). The commodification of childhood. Durham: Duke University Press.

Corsaro, W. (2011). The sociology of childhood. Los Angeles: Sage, Pine Forge Press.

Ferreira, M., & Nunes, A. (2014). Estudos da infância, antropologia e etnografia: Potencialidades, limites e desafios. Linhas Críticas, 20 (41), 103-123.

Fragoso, S., Recuero, R., & Amaral, A. (2015). Métodos de pesquisa para Internet. Porto Alegre: Sulina.

James, A., & James, A. (2014). Key concepts in childhood studies. Londres: Sage.

Montardo, S., & Rocha, P. (2005). Netnografia: Incursões metodológicas na cibercultura. E-compós – Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, 4.

Natal, G. (2009). Comunicação e construção de perfis de consumo e identidades na Internet: A marca Mary Jane. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Linguagens). Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba.

Pereira, R. R. (2014). Crianças nas redes sociais on-line. In Anais da II Jornadas Internacionales

“Sociedades Contemporâneas, Subjetividad y Educación”, II Simpósio Luso-Brasileiro em Estudos da Criança. Recuperado em 3 setembro, 2016, de http://docplayer.com.br/7334042-Criancas-nas-redes-sociais-online-novas-sociabilidades-e-desafios-para-a-pesquisa.html

Sá, S. P. (2005). O samba em rede: Comunidades virtuais, dinâmicas identitárias e carnaval carioca.

Rio de Janeiro: E-Papers.

Souza, S. J., & Castro, L. R. (2008). Pesquisando com crianças: Subjetividade infantil, dialogismo e gênero discursivo. In S. H. Cruz, A criança fala: A escuta de crianças em pesquisas (pp. 52-78). São Paulo: Cortez.

Tomaz, R. (2017). O que você vai ser antes de crescer? Youtubers, infância e celebridade. (Tese de Doutorado em Comunicação e Cultura). Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro.

PORTUGUÊS

“MANDA NUDES”: OPORTUNIDADES E RISCOS