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Eu não o vejo muito freqüentemente, mas gosto muito de você e não o esqueço Nunca esquecerei certas conversas e a amizade que você me demonstrou

No documento ARTAUD - linguagem e vida.pdf (páginas 107-113)

nos tempos difíceis, em que era preciso uma certa intuição do espírito e do

coração para confiar em mim.

Você encontrará anexada a esta carta a última versão do "teatro da cruel-

dade", que estou fundando, e que por vir depois do manifesto da NRF esclarece,

do ponto de vista técnico, tudo o que o manifesto da NRF deixava obscuro.

Você verá como minhas ambições são vastas, e que elas sejam realizáveis, nem

todas as ideologias do mundo o provarão se eu não chegar à realização. Apesar

de tudo eu acredito que, ideologicamente, o manifesto formula questões que esta

versão parece querer, em parte, responder. - Acontece a esse respeito uma coisa

bem significativa no mundo literário e da imprensa. É que a importância que a

maior parte dos escritores parece atribuir, no íntimo, às idéias do manifesto, eles

ainda não acreditam ter chegado o momento de reconhecê-la oficialmente. Eu

creio que eles se enganam e que os acontecimentos estão incrivelmente maduros. A grande mudança que se prepara no domínio social deve vir de cima. São as bases espirituais sobre as quais nós vivemos e que devemos retomar completa- mente.

Nós temos necessidade de magia no domínio poético como nos outros. O teatro, que é poesia em ação, poesia realizada, te.n de ser metafísico ou então não ser. Eis em poucas palavras o que penso e acredito que ideologicamente meu primeiro manifesto, acrescido desta última versão, remeta o teatro a seu verda- deiro plano, de onde ele jamais deveria ter desc'io, e que este plano é aquele dos ritos religiosos^ de base metafísica, quer dizer, o plano do Universal. Todas as críticas referentes a procedimentos acessórios de encenação, voltando-se contra o mercantilismo, a industrialização do teatro, a cabotinagem das vedetes, a farta grosseria de um público de ruminantes que vai ao teatro para ruminar à vontade, são críticas perdidas e inúteis, não sendo o princípio proposto refazer o teatro de arte, de uma arte alienada, desinteressada, mas ao contrário, interessar  o espec- tador através de seus órgãos, todos os seus órgãos, em profundidade e em tota- lidade. Aqueles que visam dar, que visam devolver ao público a religião do teatro, e especialmente, de um certo teatro literário de obras consagradas: Esquilo, Eu- rípedes, Shakespeare, Molière, Corneille, Racine, para mim cospem fora da es- carradeira. Todas essas obras escritas são uma linguagem morta que, com exceção de Esquilo, e mesmo assim revivificado e entendido como deveria ser, não sabe- riam mais inspirar nenhum interesse. Essa famosa poesia, que o público menos- preza não sabendo o que ela é, e que ela ainda é a única coisa que o toca sem que ele possa dizer como isso acontece, já é tempo de reconhecer que ela está na base de toda verdadeira criação dramática, e que ela só pode agir efetivamente em seu sentido pleno. Em seu sentido de deflagração e de emoção plena, de comunicação religiosa, espasmodica, com a metafísica ativa, isto é, com o espírito universal. Toda a ação que não leve a isso, que [não]2  venha disso, que não retorne a isso, é uma ação trancada e embrionária, uma ação de eunuco e de fraco, de impotente, de castrado admitido. O fato de uma consciência humana não querer ir até aí, não admitir as conseqüências revolucionárias, perigosas - por mais perigosas, por mais  cruelmente  más que elas sejam -, de um princípio; eis para mim o que me ultrapassa. É por isso que eu quis que meu manifesto e essa versão afirmassem minha fé revolucionária no plano mais elevado e mais decisivo possível, e não é possível que não se vejam e que não se reconheçam, mesmo nos meios oficiais do teatro, ambientes mais ameaçados pelos aconteci- mentos - e até que ponto essa versão e as idéias que ela encerra são antagônicas a tudo o que é admitido em matéria de teatro, e o quanto essa reação contra um estado de coisas, em plena ruína, se apoia em bases intelectualmente sólidas que, se olharmos de perto, são as únicas nas quais o teatro sempre pôde se apoiar.

Não é em vão que todas as pessoas jovens de 20 à 25 anos, e que pensam, sentiram que o Teatro da Crueldade estava no caminho do velho teatro primi- tivo, e escrevem isso. Quer eles o contestem, quer o neguem, será preciso que as pessoas bem estabelecidas reconheçam que o Teatro da Crueldade tem o futuro com ele.

Note bem, caro amigo, que essa crítica violenta está endereçada a quem quisermos, exceto a você. Eu o tomei por confidente de minha cólera porque você é, entre os meus amigos mais antigos, um dos raros diante de quem falo me sentindo amado e compreendido.

O que quer que você queira e possa fazer pelo Teatro da Crueldade, saiba que considerarei como um gesto de um amigo muito caro, de um verdadeiro irmão.

Eu lhe aperto as mãos de todo o coração.

ANTONIN ARTAUD Tradução de Regina Corrêa Rocha

8 de abril de 1933 Caro amigo,

Você é realmente um juiz impressionante. Aproximadamente e com as restrições que aqui faço, e que você não mostra, mas que podemos ler em seus próprios elogios e sob suas apreciações, você me disse exatamente o que eu pen- so sobre minha conferência1; isto é, que ela oscila perpetuamente entre o fra- casso e a palhaçada mais completa, e uma espécie de grandiosidade que não se mantém, mas que aparece aqui e ali através de imagens de um êxito concreto e absoluto. Resta dela, para mim, uma descrição poético-clínica da peste que merece ser conservada, duas ou três observações verdadeiramente inquietantes - quero dizer inquietantes  nos fatos -,  uma posição extremamente sutil, ainda que às vezes exprimida erradamente, do problema da peste  tomado em si, e, como você diz, um sentimento bastante agudo das relações poéticas entre as coisas. Existe ainda uma idéia sobre as relações entre o espírito e a matéria em virtude de certos fenômenos materiais, como por exemplo as doenças, que pela maneira como é apresentada vai muito longe. Mas, mesmo e sobretudo aí, os termos, ou melhor, a força de espírito me faltaram. Pois existe uma verdade à qual eu gostaria que o público fosse sensível, e ele o foi inconscientemente, e foi isso que sem dúvida o perturbou e causou essa hostilidade anormal nas con-

ferências desse tipo. É verdade que apenas minha presença em alguns lugares causa um tumulto, faz nascer em alguns uma irritação anormal, como que dian- te de uma monstruosidade, de um fenômeno abjeto da natureza. As pessoas, seja por me verem, seja por certas idéias que eu discuto, são levadas a se en- colerizar. Essa verdade da qual eu lhe falo, e que irrita, é que aquilo que você chama de metáfora, e que não é, das relações entre o teatro e a peste, vale igualmente para meu espírito, que eu considero organicamente alterado por um mal que o impede de ser o que deveria ser. Existe dentro dessa luta terrível entre eu e as analogias que pressinto, e em minha impotência de petrificá-las em termos, para me tornar fisicamente dono da  totalidade do meu tema, um espetáculo perturbador que irrita as pessoas pouco preparadas para uma certa limitação do pensamento.

Quando proponho considerar a peste unicamente como uma entidade psí- quica, quero dizer que não temos o direito de nos deter nos fenômenos materiais, de petrificar nosso espírito sob formas, unicamente sob formas, e qualquer que seja a perversão orgânica, ela é apenas a onda mais distante, a última ressaca de uma situação vital da qual a consciência, a vontade, a inteligência, participaram algum dia; assim sendo, seria vão considerar os corpos como organismos imper- meáveis e fixos. Não existe matéria, existem apenas estratificações provisórias de estados de vida, na transformação individual dos quais não é de se surpreender que o espírito, a consciência, a vontade e a razão, cada um por sua vez, inter- venham.

Considerando assim todos os fenômenos em sua universalidade, e se qui- sermos notar na própria peste todas as variações que ela apresenta através dos tempos e do espaço, podemos admitir uma perversão maior da vida que, em suma, sem tocar o corpo, produz organicamente as desordens mais excessivas - e podemos nos pôr de acordo para chamar de peste essa perversão, no momento em que no mundo moral, social, psicológico e psíquico ela produz desordens tão absolutas, tão fulminantes e quase abstratas. Se quisermos em seguida reco- nhecer que o espírito não passa duas vezes pela mesma situação, que não existem doenças, mas doentes, devemos evocar a figura virtual e arbitrária de um mal que se assemelha ao teatro quando ele é epidêmico e profundamente desorgani- zador, isto é, quando ele reúne um conjunto suficiente de traços extremos, e de desordens reveladoras. Entretanto, mesmo nessa virtualidade e nessa arbitrarie- dade existe às vezes alguma coisa de concreto. Ou melhor, essa virtualidade e essa arbitrariedade influem periodicamente sobre os corpos, a matéria, as cons- ciências, o corpo social e os acontecimentos, de tal modo que uma figura física e aprisionada da peste se liberta de tempos em tempos. Não se pode recusar às personagens interpretadas arbitrariamente por este ou aquele, que jamais havia pensado em interpretá-las, os sentimentos aborrecidos, extremos, gratuitos e hor- ríveis que ele manifesta, uma identidade natural com os sentimentos e as perso- nagens de teatro. Com essa diferença, já observada em outro lugar, que as per- sonagens e os sentimentos provocados pela peste representam o último estado

de uma força espiritual que se extingue, ao passo que

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  as personagens e os sen-

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