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A questão dos animais e a definição do seu «lugar»88 não é recente; pelo contrário, trata-se de

uma problemática que desde os primórdios da humanidade tem acompanhado o Homem. Na verdade, podemos dizer que tem acompanhado o homem tanto quanto os animais o tem acompanhado.

Do que supra se expôs há que procurar agrupar estas teses89 em teses que procuram dispensar uma tutela indirecta ou mediata aos animais e as teses que, inversamente, sugerem que essa tutela pode ser feita de forma directa ou imediata.

No que a estas últimas diz respeito, aqui podemos enquadrar autores como Peter Singer, Tom Regan e Gary Francione.

Estas teorias, embora com diferenças de grau e intensidade, consideram que o animal possui um valor intrínseco, em função de si mesmo e não em função da utilidade que tem e da relação que desenvolve com o ser humano.

Tom Regan e Gary Francione adoptam uma perspectiva abolicionista, propondo o reconhecimento directo e irrestrito de verdadeiros direitos aos animais, através do reconhecimento de um estatuto moral e jurídico em paridade com os seres humanos.

Não podemos acompanhar esta perspectiva. Há, de facto, elementos que são exclusivos da espécie humana e que o argumento dos «casos marginais», tão comumente utilizado, é insuficiente para afastar ou desvalorizar.

Pela nossa parte preferimos não alicerçar esta «diferenciação» em meras características biológicas ou cognitivas, dado que estas, tanto quanto sabemos hoje, são meramente de grau.90

88 O seu lugar no «mundo» mas também no «mundo do Direito». O Direito não existe só na nossa convivência

com autoridades, advogados e tribunais existe na própria convencionalidade das nossas relações sociais, na percepção que temos de liberdade, na nossa identidade cultural, na forma como perspectivamos os nossos interesses, ambições, limitações e conflitos. A noção de legalidade, a «linguagem dos direitos» é essencial enquanto alicerce de criação e perpetuação da «sociedade civil». Como refere Fernando Araújo, “a

transformação do Direito não o é de uma instituição externa e independente, desprendida da experiência quotidiana e comum, mas é-o sim de uma ordem de «entendimentos» que perpassam pelo todo dessa experiência social, não lhe sendo possível a imunização completa a essas “contaminações” pelos valores que imperam já no seio da sociedade, mesmo antes da comunidade de juristas se debruçar sobre eles e lhes dar uma cobertura legitimadora.” (Araújo, 2003, p. 297)

89 E na esteira de Fernando Araújo que nas páginas 335 e ss., faz esta mesma síntese das teorias. Vide Araújo,

F., 2003. A hora dos direitos dos animais. Coimbra: Almedina.

90 Vejam-se as diversas experiências realizadas com mamíferos superiores, designadamente primatas, que dão

nota, não só de capacidade de aprendizagem e de desenvolver acções finalisticamente orientadas, mas também de algum grau de «altruísmo» - normalmente assim considerado quando um animal sacrifica o bem-estar próprio

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A fundamentação alicerçada em fundamentos morfológicos, que impediriam os animais de «desenvolver uma consciência» foi profundamente abalada com a Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos, que afirma expressamente que: “A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados

afectivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatómicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos.”

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Cremos, por isso, que a «diferenciação» fundamental não será alicerçada num único critério, por robusto que seja, mas numa soma e conjugação de critérios que permitem apartar os animais dos seres humanos.

Assim, além das características biológicas, morfológicas e cognitivas e dos critérios mais frequentemente invocados – como a consciência autónoma e reflexiva, a personalidade jurídica e a intencionalidade moral – devem ser consideramos como elementos fundamentais para a distinção do homem dos demais animais92:

a. A pertença do homem a uma comunidade, que mais do que uma agregação de seres da mesma espécie, com vista à prossecução de fins comuns, é uma comunidade moral, ética, social e política;

em função do bem-estar de outro animal. O facto de esta circunstância por vezes decorrer, designadamente entre progenitores e crias, não nos permite concluir que existiu uma consideração «moral», desde logo porque não é possível sabermos de que forma o animal percepcionou o perigo e as suas consequências e se não estará em causa um «instinto» de protecção próprio da espécie, fundamentalmente ligado ao instinto protector em relação à progénie.

91 A Declaração de Cambridge sobre a Consciência foi escrito por Philip Low e editado por Jaak Panksepp,

Diana Reiss, David Edelman, Bruno Van Swinderen, Philip Low e Christof Koch, tendo sido proclamada publicamente em Cambridge, no Reino Unido, a 7 de Julho de 2012, no «Francis Crick Memorial Conference», na Conferência realizada sobre a «Consciência em animais humanos e não-humanos», no Churchill College, Universidade de Cambridge. A Declaração foi assinada por todos os participantes, na presença de Stephen Hawking, na Sala de Balfour no Hotel du Vin, em Cambridge, naquela mesma noite. Disponível em:

http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf (acesso a 26.03.2017)

92 Considerando inútil a procura de uma classificação dos não-humanos em função da proximidade que

demonstram a um comportamento atribuível a uma consciência reflexiva, Fernando Araújo propõe o abandono da visão «centrada», no sentido de fazer dos direitos dos animais “a marca do respeito que temos pela radical

particularidade que, na ordem da natureza, cada espécie representa, e cada experiência individual de sensibilidade constitui, por mais dissimilares que elas sejam, em relação aquilo que julgamos serem as nossas próprias natureza e experiência” sugerindo antes a consideração de uma «uma bioética descentrada», porque

afinal “é de bioética que se trata, ética da vida, antes de mais Ética endereçada a seres humanos.»” (Araújo, 2003, p. 345)

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b. A identidade, a cultura e a história, como referências que constroem, simultânea e dialecticamente, o «eu» e o «nós», que permitem, promovem e radicam na aprendizagem individual e colectiva, orientada e propicia ao progresso da humanidade;

i. Cremos que outras referências merecem ser introduzidas, designadamente em relação à crença e à religião, pois tanto quanto sabemos o ser humano é o único animal que «cria» divindades, deuses e explicações metafísicas para os fenómenos do mundo material; ii. Também uma pequena referência em relação à arte e à estética que

parecem ser também exclusivos dos seres humanos – isto não quer dizer que não haja, no mundo natural, «sucedâneos» (como as danças de acasalamento) e que não haja uma «estética» muito peculiar nesses factos da natureza. O que não parece haver é uma «criatividade», oriunda do pensamento, que acaba por ter concretização no mundo material – não há uma «ideia» que se materializa.

c. Parece que, em decorrência deste último ponto, devemos considerar que o pensamento abstracto e a capacidade de desenvolver «metáforas», essenciais para a «criação» e a «transformação» do mundo são também exclusivos dos seres humanos;

d. Finalmente, o trabalho, a transformação da natureza e do mundo material envolvente, não é encontrada em nenhuma espécie animal que não nos humanos. O homem produz os seus meios de existência, transformando a natureza de forma livre e consciente (e não pré-determinada), havendo uma dissociação do homem do seu trabalho.

Com o que se disse, temos que o argumento dos casos marginais não colhe. Desde logo porque este argumento está sobretudo relacionado com as tentativas de diferenciação que assentam em características cognitivas ou na capacidade de autodeterminação. Se a essas características somarmos todos os elementos que acabámos de enunciar e se atentarmos que a identidade humana é não só auto-referente, mas também hétero-referente, teremos afastado definitivamente este argumento.

Dentro das teorias que advogam a protecção directa, há também que rechaçar a hipótese utilitarista formulada por Peter Singer, que embora não tão radical como a defendida pelos abolicionistas Tom Regan e Gary Francione, enferma de problemas semelhantes.

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A ideia de alargamento da comunidade moral aos animais não ultrapassa as diferenciações categóricas que acima apontámos e o argumento de que o «especismo» está em linha com outras formas de discriminação (como o racismo e o sexismo) parece esquecer um elemento fundamental que é o de que a diferenciação entre os seres humanos e os animais não está a ser alicerçada em meras características físicas e/ou morfológicas. De facto, se no caso das outras discriminações o que está em causa é «tratar de forma diferente o que é igual», nos animais o que estará em causa é «tratar igual o que é diferente» - sendo que este autor não nega as diferenças.

A tese da aplicação da proporcionalidade, formulada através da ideia da consideração de interesses igualmente relevantes, a partir do momento em que se nega a entrada dos animais na «comunidade ética» perde, em grande medida o seu sentido93.

Além disso, para Peter Singer o critério decisivo para a entrada na «comunidade ética» seria o critério da «senciência» mas este critério não é muito exacto, pois tanto quanto a ciência nos permite hoje saber, todos os seres que possuem sistema nervoso central são capazes de experienciar dor e, por outro lado, um ser humano em estado vegetativo não será capaz de a sentir.

Conforme Araújo, a «abordagem dos direitos» é “a forma mais rematada de

antropocentrismo, por ser expressão da crónica vontade de gerir, regular, dirigir, ordenar, classificar, hierarquizar – e através deles subordinar e instrumentalizar o destino dos seres vivos que são felizes sem direitos, que viveriam ainda, cumprindo um qualquer destino mesmo se o homem nele não interferisse”. (Araújo, 2003, p. 298)94

Os animais já estão envolvidos no sistema, quer como objectos de apropriação, quer como bens produtivos ou alimentares, quer como guias, companheiros ou protectores ou, simplesmente, como seres sensíveis que merecem consideração ou como espécies cuja preservação é importante.95

93 Se negamos aos animais esse patamar, quando ponderarmos a vida de um ser humano (ou mesmo o seu bem-

estar) com a de um animal, a desvantagem corre, indelevelmente e sempre pelo lado dos animais.

94 Quanto à questão da representação dos direitos dos animais, que eles próprios não podem representar nem

defender juridicamente, refere Araújo que o que falta, em muitos casos, é a “especificação dos meios de acção

que assegurem a defesa espontânea e individual de interesses de animais, complementando a diligência de instituições públicas e colectivas na defesa de interesses difusos de classes inteiras de animais (permitindo uma defesa individualmente tão efectiva como o é hoje a defesa dos interesses de menores, de deficientes e de pessoas colectivas).” (Araújo, 2003, p. 300)

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Na nossa perspectiva, a protecção directa ou imediata dos animais deve ser decisivamente afastada, sendo certo que, como mais adiante poderemos comprovar, foi esta a orientação da Lei n-.º 69/2014, de 29 de Agosto, que criminalizou os maus-tratos a animais de companhia. Vários dos autores que tivemos a oportunidade de referir não afastam que os animais de companhia, dada a relação especial que têm com o homem, no quadro de uma protecção indirecta, possam ter um tratamento diferenciado. Cremos que, por ora, deverá ser esse o caminho trilhado, ainda que este transborde de antropocentrismo.