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IV A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO NOVO CRIME DE MAUS-TRATOS A ANIMAIS DE

COMPANHIA

Eis que chegamos ao ponto de confrontar o novo crime de maus-tratos a animais de companhia com a dogmática penal e com Constituição da República.

Recentemente, seja em Portugal seja nos demais ordenamentos, sobretudo no espaço europeu, o Direito Penal tem sido confrontado com a necessidade de dar resposta a novos fenómenos ou a olhar velhos comportamentos com novos olhos, criando novas incriminações ou agravando incriminações já existentes.

O alargamento do Direito Penal a novos domínios e a novas condutas deve suscitar interrogações e ser alvo de instrumentos de controlo. Há que questionar “se a relação entre a

definição de objectivos e valores sociais e o papel do poder punitivo do Estado se baseia em concepções políticas passageiras e conjunturais ou terá de ir procurar as suas raízes a um nível mais profundo, nas condições de funcionamento da sociedade”. (Palma, 2014, p. 16)

Como afirma Maria Fernanda Palma, “podem invocar-se, em geral, os princípios da

necessidade da pena, da intervenção mínima do direito penal, da subsidiariedade ou última

ratio da intervenção punitiva, da adequação da punição ou proporcionalidade entre o crime

e a pena, como critérios de controlo da selecção de condutas como criminosas”. (Palma,

2014, p. 16)

344 Também neste sentido, propondo inclusive a alteração do n.º 3 do artigo 30.º do Código Penal, com vista

aditar os crimes contra animais e desta forma exclui-los do crime continuado, a Procuradoria-Geral da República, conforme parecer de 2016.

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A este respeito, Maria Fernanda Palma345 define três linhas de rumo do Direito Penal: uma primeira orientação que visa dar resposta a novos direitos ou a novas perspectivas sobre direitos consagrados; uma segunda orientação em que o Direito Penal desempenha o papel de instrumento ao serviço da melhoria da organização politica e económica do Estado; e uma terceira orientação, que alarga o espectro de condutas que segundo o Direito Penal Clássico podem ser consideradas como criminosas com vista a antecipar a tutela de bens jurídicos. É ainda na primeira linha de rumo que se insere a criação de novas incriminações “tendentes

à promoção da essencial dignidade da pessoa humana pelo Estado contemporâneo, em áreas como o ambiente (poluição, danos contra a natureza e incêndio florestal) ou o tráfico de pessoas (para exploração do trabalho, prostituição ou colheita de órgãos)”.346 (Palma, 2014,

p. 13)

Já na segunda linha de rumo, inserem-se as criminalizações que visam proteger a participação democrática dos cidadãos e impedir formas de abuso de poder e formas de corrupção que prejudiquem o bem público e que afectem a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.347

Finalmente, na terceira orientação trata-se da antecipação da tutela de bens jurídicos, através da proliferação de crimes de perigo348 e de violação de dever. Não podemos deixar de notar, no seguimento das considerações avançadas por Maria Fernanda Palma, que a criação de crimes de perigo abstracto deve ser contida aos limites da excepcionalidade e que, no que toca aos crimes de violação de dever, estes devem ter conteúdo material e não cifrarem-se em

345 In Palma, M. F., 2014. Conceito material de crime e reforma penal. Anatomia do Crime - Revista de Ciências

Jurídico-Criminais, Julho-Dezembro, Volume 0, p. 12

346 Além do papel que esta orientação teve na criação de novas incriminações, como é exemplo crime de

violência doméstica (artigo 152.º do Código Penal) e o crime de maus-tratos (artigo 152.º-A), dos crimes contra a autodeterminação sexual de menores (artigos 171.º a 176.º todos aditados ao Código Penal com a reforma de 1995, e o novo artigo 176.º-A, referente ao aliciamento de menores para fins sexuais através do uso das novas tecnologias de informação e comunicação, aditado ao Código Penal pela Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto). Outros exemplos que se enquadram nesta perspectiva de neocriminalização, são os associados à violação das

legis artis da Medicina (n.º 2 do artigo 150.º), da propagação de doença contagiosa, alteração de análise ou

receituário (artigo 283.º), da discriminação racial, religiosa ou sexual (artigo 240.º), da burla informática e nas comunicações (artigo 221.º) e das devassas da vida privada (artigo 192.º, se por meios informáticos, artigo 193.º).

347 São exemplos os vários crimes de corrupção, o crime de tráfico de influência (artigo 335.º) e todos os crimes

da responsabilidade de titulares de cargos públicos (consagrados pela Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, alterada pela Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro, pela Lei n.º 30/2008, de 10 de Julho, pela Lei n.º 41/2010, de 3 de Setembro, pela Lei n.º 4/2011, de 16 de Fevereiro, pela Lei n.º 4/2013, de 14 de Janeiro e pela Lei n.º 30/2015, de 22 de Abril).

348 São exemplos de crimes de perigo abstracto a condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a

influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas (artigo 292.º) ou mesmo a mera condução perigosa de veículo rodoviário (artigo 191.º).

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meras desobediências, sob pena de não se vislumbrar o bem jurídico protegido e ser violado o princípio da necessidade da pena.

A Professora Maria Fernanda Palma destaca que “as duas vertentes em que faz sentido falar

de um conceito material de crime – critérios determinantes da dignidade e carência de tutela penal dos bens jurídicos e requisitos referentes à estrutura dos próprios comportamentos que podem servir de base à imputação penal – têm estado em mutação acelerada nos últimos anos. Essa mudança revela tendências na configuração do Direito Penal que podem por em causa os princípios tradicionais da legalidade, da culpa e da necessidade da pena. Por outras palavras, é obrigatório perguntar se as novas incriminações (e agravações) são legítimas à luz do Estado de direito democrático ou se até podem contribuir, porventura, para assegurar novas e relevantes funções a esse Estado.” (Palma, 2014, p. 15)

Na esteira de Maria Fernanda Palma e seguindo de perto a sua afirmação, é exactamente o que nos propomos a fazer nas páginas seguintes, partindo da incriminação dos maus-tratos a animais de companhia.

Inserção no conceito material de crime

Vamos então percorrer este caminho, começando por clarificar o conceito material de crime. Havendo num Estado de direito democrático limites ao poder punitivo do Estado e à consideração de certas condutas como crime, que não podem estar na disponibilidade de maiorias políticas momentâneas, o conceito material de crime torna-se num conceito operativo da maior importância.

De facto é este que nos poderá auxiliar nesta tarefa de confrontar o novo crime de maus-tratos a animais de companhia com a nossa lei fundamental, servindo de instrumento de fiscalização da constitucionalidade e permitindo controlar as reformas penais que estão na dependência de razões meramente políticas e/ou ideológicas.

Como apontam Figueiredo Dias e Costa Andrade349, a multiplicidade de conceitos de crime também se deve ao que cada autor, em cada momento, pretendeu ver esclarecido, isto é, dependerá além da perspectiva de abordagem, da pergunta de partida.

349 Dias, J. d., & Andrade, M. d. (1984). Criminologia - O Homem Delinquente e a Sociedade Criminógena.

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Uma perspectiva positivista-legalista350 permitie-nos afirmar, sem mais, que os maus-tratos a animais de companhia são crime, isto é, que os actos e comportamentos integrados na sua previsão são ilícitos com relevância penal. Esta perspectiva aceita como crime tudo aquilo que o legislador considerar como tal, ou seja, basta que o legislador penal associe uma determinada sanção ou punição penal a determinado comportamento para que este se «transforme» em crime.

Esta perspectiva não nos é útil. Sabemos que actualmente a lei associa uma sanção penal ao comportamento que se enquadre na concepção de maus-tratos a animais, que a própria lei penal se encarrega de definir. O que queremos verdadeiramente saber é porque é que este comportamento, diferentemente de outros, tem uma gravidade e legitimação tal que possa ser considerado como crime e, dessa forma, lhe seja associada uma sanção.

Como refere Figueiredo Dias, o que importa saber é “…quais as qualidades que o

comportamento deve assumir para que o legislador se encontre legitimado a submeter a sua realização a sanções penais”. (Dias, 2011, p. 106)

De facto, consideramos que só poderá ser operativo um conceito material de crime anterior ao acto do legislador, que actue como padrão de análise – quer sobre o direito constituído, quer sobre o direito a constituir.

Convém recordar que, se é verdade que há crimes que apenas o são após serem constituídos enquanto tal pelo legislador, sendo em si mesma a conduta axiologicamente neutra, é também verdade que há crimes cuja reprovação social é anterior porque o comportamento é axiologicamente relevante e para Figueiredo Dias “… só o primeiro grupo, não o segundo,

deveria ser elevado à categoria de verdadeiro crime”. (Dias, 2011, p. 109)

No quadro das teorias positivistas-sociológicas, Garófalo351 ensaiou uma teoria que propunha que o crime deveria corresponder à violação de “sentimentos altruísticos fundamentais”, construindo a partir daqui a ideia de delito natural. A ideia de delito natural, nesta construção de Garófalo, corresponderia a uma conduta socialmente danosa, assim considerada “por

todos os povos de idêntica raça e civilização”.

350 Esta definição de crime que radica na sua definição legal foi adoptada, por exemplo, nos países socialistas,

sendo a definição fornecida pelas instâncias estatais encarregues da política legislativa, baseando-se num ideia de consenso que corresponderia ao sentimento da maioria da comunidade

351 Criminologista italiano (1851-1934), estudante de Lombroso, Garofalo publicou diversas obras, entre as

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Num desenvolvimento mais recente desta tentativa de validar um conceito sociológico de crime, Durkheim352 procurou restringir o universo a considerar, deixando se considerar “todos os povos de idêntica raça e civilização”, para assumir a ideia de colectividade alicerçada numa determinada formação social – a comunidade – e que os actos a considerar como criminosos constituíssem “actos universalmente reprovados pelos membros de cada

sociedade”. Durkheim encara assim o crime como um facto social, considerando que “um acto é criminoso quando ofende os estados fortes e definidos da consciência colectiva”353

(Durkheim, (1893) 1984, p. 99).354355

Também von Liszt refere que o “crime é a agressão, tida na perspectiva do legislador como

especialmente danosa para uma dada ordenação social, a interesses juridicamente protegidos, pelo lado da perigosidade social revelada em tal agressão por uma personalidade responsável”.356

Se é certo que o conceito de «danosidade social» é um conceito operativo e útil, não podemos deixar de notar que este é incapaz de delimitar os limites da criminalização, na medida em

352 Autores como Sellin e Durkheim buscaram uma definição baseada no processo de integração social do

indivíduo, rejeitando assim a definição legal, que apresentava, desde logo, o problema de não ser universalizável (na medida em que as legislações são profundamente diferentes de tempo para tempo e de espaço para espaço) e portanto dificilmente poderiam constituir o objecto da criminologia enquanto ciência. Sellin, optou por uma orientação mais metodológica, através da consideração das normas de conduta como um fenómeno universal, catalogável e analisável, através do qual poderia partir para o estudo da relação dos indivíduos com as normas e da sua violação. Temos pois que o contributo deste autor para a matéria não se revelou tão promissor como à partida prometia, uma vez que apenas substituiu a constelação das normas penais pelas normas de conduta, encaradas numa perspectiva mais abrangente.

353 Por consciência colectiva, Durkheim refere-se ao “conjunto de crenças e sentimentos comuns à média dos

membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem a sua vida própria” (Durkheim,

(1893) 1984, p. 98)

354 Existem outras teorias sobre a definição de crime, também assentes no processo de integração do indivíduo

na sociedade, como é o caso da proposta por Sutherland e pelos Schwendinger. O primeiro autor refere que “a

característica essencial do crime é ser um comportamento proibido pelo Estado como um dano ao Estado, e contra o qual o Estado reage ou pode reagir, pelo menos em última instância, com uma pena” (Apud Dias, J. d., & Andrade, M. d. (1984). Criminologia - O Homem Delinquente e a Sociedade Criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, pp. 76). Já os Schwendinger construíam o conceito de crime com referência á ideia de direitos humanos, constituído crime qualquer violação destes, individual ou colectiva.

355 Há ainda que fazer referência ao conceito social de desvio, que fundado sobretudo na reflexão sociológica,

tem acompanhado a criminologia no caminho trilhado em busca da definição e limites do crime. Assim, a definição básica de desvio será: “o que não está em conformidade com um determinado conjunto de normas,

aceites por um número significativo de pessoas, de uma comunidade ou sociedade.” (Giddens, 2010, p. 205).

Outras definições de desvio são possíveis, como a oferecida por Cohen, que define desvio como «a violação das

expectativas da maioria dos membros duma sociedade», por Wheeler «todo o comportamento que provoca reacções negativas de terceiros» ou por Erikson, que o faz baseando-se na «circunstância de a maior parte das pessoas de uma sociedade entender que se devem aplicar sanções negativas». Apud Dias, J. d., & Andrade, M.

d. (1984). Criminologia - O Homem Delinquente e a Sociedade Criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, pp. 63. Relativamente ao conceito de crime, que em sentido formal é a violação de uma norma penal incriminadora, cumpre afirmar que estes conceitos não são sinónimos, antes este se integrando naquele, na medida em que o conceito de desvio é muito mais amplo, pois abrange a desconformidade com normas legais e sociais.

356 Apud Dias, J. d. F., 2011. Direito Penal - Parte Geral - Tomo I - Questões Fundamentais. A doutrina geral

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que estas noções são demasiado abrangentes (nem todo o comportamento que se traduz nalgum grau de ofensividade social pode, legitmamente, ser considerado como crime). Como sintetiza Figueiredo Dias: “O apelo à danosidade social é pois um elemento constitutivo do

conceito material de crime mas não pode sem mais fazer-se valer por aquele conceito.”

(Dias, 2011, p. 110)

Faremos curta referência à perspectiva ético-social, em que a essência do crime residiria no desrespeito por valores ético-sociais fundamentais, defendida por Welzel e Jescheck, apenas para a criticar, usando para tal límpida afirmação de Figueiredo Dias - “não é função do

direito penal, nem primária, nem secundária, tutelar a virtude ou a moral: quer se trate da moral estadualmente imposta, da moral dominante, ou da moral especifica de um qualquer grupo social”. (Dias, 2011, p. 112)

É então preciso construir o conceito material de crime com base em critérios racionais e teleológico-funcionais.

Dito isto, resta procurar as conclusões357: crime implicará sempre uma referência jurídica e

uma referência sociológica. A primeira recorrerá, eventualmente à punição (que não terá obrigatoriamente de ser um sancionamento penal, podendo passar por um sancionamento através do direito de mera ordenação social), que transformará aquele comportamento num problema jurídico. A segunda referência tem que ver exactamente com a componente social do crime, que se apresenta como uma conduta com vocação para ferir determinados bens e valores comunitários, despoletando desta forma reacções negativas.

Como refere Figueiredo Dias, “… o conceito material de crime tem de ser completado pela

referência aos processos sociais de selecção, determinantes em último termo daquilo que é concretamente e realmente (e também juridicamente) tratado como crime”. (Dias, 2011, p.

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A importância da definição e concretização do conceito material de crime reside na circunstância de este constituir “uma expressão dos princípios constitucionais de Direito

Penal, agrupando, pois, as características que uma conduta tem de possuir, em nome desses princípios, para poder ser qualificada como criminosa”. (Palma, 2014, p. 17).

357 Aquilo a que Figueiredo Dias e Costa Andrade apelidaram de “núcleo comum” dos diversos conceitos

criminológicos de crime - Dias, J. d., & Andrade, M. d. (1984). Criminologia - O Homem Delinquente e a

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Vejamos então se, e em que medida, podemos considerar a criminalização dos maus-tratos a animais operada pela Lei n.º 69/2014, de 29 de Agosto um verdadeiro crime.