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Pretendeu-se nas entrevistas captar as interacções em casa, as fusionalidades, nomeadamente, com quem as crianças mais conversam e com que vão ter quando têm um problema. A mãe aparece maioritariamente nas respostas; atente-se nas justificações: “Acho que é mais compreensiva.” (Sérgio), “(…) ela é mais carinhosa (…), não se chateia muito (…)” (Nuno). Podem antever-se aqui algumas representações de género nas crianças, construídas a partir das interacções com os pais, notando-se uma nítida diferenciação em função do sexo/género, estando a sensibilidade e a compreensão nas relações interpessoais mais associadas ao feminino.

Depois, há casos particulares como o de Paula, que conversa mais com o pai, provavelmente, por ser ele que a vai buscar à escola e ter um horário que lhe permite passar mais tempo com ela. Outro caso singular é o de João, que vive com a avó adoptiva e com a irmã, pessoas com quem passa mais tempo e mais velhas, em que ele vê algum apoio, sendo que para brincar prefere o irmão; nos trabalhos de casa é ajudado pela irmã, uma vez que a avó é analfabeta e, mesmo que quisesse, não o poderia ajudar. Jorge fala mais com a tia, passando o tio padrinho bastante tempo fora de casa; a tia por vezes está em casa à tarde, mas aparentemente Jorge tem tendência para se isolar e não conversar muito. Tiago diz-nos que conversa e brinca mais com a irmã; porém, quando se trata de problemas, recorre à mãe ou ao tio. Márcia conversa mais com a irmã, predominantemente sobre wrestling e acontecimentos relacionados com questões amorosas, recorrendo a ela em alguns problemas, noutros à mãe, com quem diz que vai viver mais tarde; na parte final da entrevista em que se pergunta se quer dizer mais alguma coisa, Márcia revela de forma marcante a sua ligação à irmã mais velha e à mãe com a afirmação “Gosto muito da minha mãe e da minha irmã.”.

No lar, perante a ausência prolongada de ambos os pais, as relações mais próximas são na maior parte das vezes com os professores e professoras do salão de estudos, que são escolhidos para os papéis de seus encarregados de educação, como já foi referido. Mencionam igualmente como pessoas com quem mais conversam alguns rapazes amigos e as auxiliares do lar, contando David que recorre à psicóloga quando tem um problema. Este anuncia também que se dava melhor com a mãe e com as irmãs, mas que falava mais com uma prima um pouco mais velha que ele. Já no que diz respeito a referências para o futuro, o pai aparece como modelo para Paulo e Guilherme; apesar de o pai de Guilherme ter já falecido, a directora do lar, na entrevista, fez referência à relação fusional entre eles. Paulo, mostrando

algum descontentamento com as normas do lar, refere que gostava de ver mais vezes o pai. Manifestam-se assim a este nível algumas ambiguidades, uma vez que as preferências para companhia e conversa não são tão moldadas pela lógica ingroup/outgroup (onde há uma forte identificação com o ingroup) como as referências em termos futuros, evidenciando-se uma afinidade mais forte com o parente do mesmo sexo ao nível dos modelos, como se irá ver no capítulo empírico dedicado às crianças.

De qualquer forma, e realçando uma lógica de construção das identidades de género por via da oposição ingroup/outgroup, incluindo a referência inter-geracional com base numa identificação intra-género, também nas entrevistas aos pais quando se conversa acerca das fusionalidades, há uma tendência clara para uma maior conexão com o parente do mesmo sexo. Paula representa a única excepção, sendo a única rapariga na turma que se dá melhor com o pai, o que poderá ter que ver precisamente com o facto de passar mais tempo com ele, devido ao horário menos extenso que o da mãe. Sobressai então nas entrevistas uma aproximação e uma maior ligação e “à vontade” entre parente e filho do mesmo sexo.

“Ela dá-se melhor com o pai (risos), mas isso pode ter a ver com várias situações, não é… Também porque se calhar o pai é a pessoa que lhe faz mais as vontades… Também se calhar é a pessoa com quem ela está mais…, porque, curiosamente, é assim, por uma questão de horário, ela acaba por estar mais tempo comigo…, por exemplo ao fim do dia…, depois vamos os dois juntos… Enquanto esperamos pela mãe e não sei o quê, vamos ver montras e vamos fazer umas compras e vamos fazer umas coisitas e não sei quê ou por que também sou eu que…, que estou com mais paciência para a aturar porque ela quer andar de patins e então eu seguro-a ou não sei quê (…)”, Pai de Paula

43 anos, técnico superior da administração pública

“Eu acho que a menina tinha que…, pronto, a menina acho que está mais ligada à mãe, não sei…, e acho que uma pessoa tem mais à vontade de falar com elas.”, Mãe de

Diogo, 46 anos, empregada de balcão

Outro aspecto que se pode enquadrar no âmbito das interacções no espaço doméstico é o tipo de actividades e brinquedos preferidos das crianças, que se revelaram nitidamente distintos em função do género, sendo que o discurso dos pais vem precisamente reforçar essa tendência. Apresentam-se de seguida os testemunhos dos pais nesse sentido, sendo o primeiro

excerto relativo a Márcia que se auto-caracterizou como “maria-rapaz”, revelando gostos que são associados frequentemente ao sexo masculino (o futebol aparece como uma actividade predominantemente masculina, de modo quase exclusivo, sendo que apenas Márcia e Paula referem nas entrevistas gostar de jogar futebol). Paula é descrita pelo pai como uma “rapariga outdoor”, patenteando-se assim a transversalidade de género ao nível das actividades, apesar de o pai referir também as bonecas, brinquedo que aparece como exclusivamente feminino. As ambivalências emergem também no gosto (verbalizado pelas mães) das raparigas pelos computadores, sendo frequentemente os suportes tecnológicos mais associados aos rapazes.

E – O que é que a Márcia faz nos tempos livres? Quais são as brincadeiras dela mais frequentes?

e – Jogar futebol. (…)

E – Então o brinquedo preferido dela é…

e – É a bola, é o futebol, sem sombra de dúvidas...

Mãe de Márcia, 34 anos, auxiliar num infantário

“Ela gosta muito de andar de bicicleta, de patins…, é uma rapariga outdoor, é uma rapariga que gosta muito de andar na rua (…) O brinquedo preferido dela, curiosamente, são…, é o cão que ela tem. São os animais, para além das bonecas (…)”,

Pai de Paula, 43 anos, técnico superior da administração pública

“Gostam de televisão, gostam de andar a inventar brincadeiras entre elas e, comigo, gostam de ir jogar para o computador (…) Elas gostam de ler também (…)”, Mãe das

gémeas, 32 anos, auxiliar num infantário

E – Então e brinquedos dela preferidos… e – São as bonequinhas! (…)

Mãe de Sónia, 34 anos, ajudante de cozinha

E – E quais são as actividades preferidas da filha?

e – (suspiro) Que ela faz agora? Olhe, andar de bicicleta…, lá por caminhos fora… Ouvir música…, lá no quarto…, lá alto, fechada, que não ouço nada… É ver televisão… É estar no computador (…)

E – E os brinquedos preferidos dela…

e – É uma boneca. (pausa) Uma boneca e uma carteira! Para fazer de mãe e de filha.

Mãe de Natacha, 47 anos, empregada de balcão

E – E brinquedos preferidos dela…

e – Ui! Tem tantos… Tem tantos, tantos… Tem carradas e carradas de brinquedos! (a sorrir)

E – Quais é que acha que ela prefere? e – Bonecas… É… Sim, é as bonecas. E – E o filho?

e – O menino é os carrinhos! É carrinhos, é espadas…, é tudo!

Mãe de Ana, 28 anos, feirante

“Ele costuma muito jogar à bola lá no terraço. (…) tem uns jogos para a Play Station. Tem Action Man, mas ele já não liga muito, que isso era quando ele era mais pequenito. Tem jogos, que é o que ele joga mais, são jogos.”, Mãe de Rodrigo, 35 anos,

auxiliar num infantário

E – Qual é o brinquedo preferido do Sérgio? e – Do Sérgio? Talvez o Game Boy!

Mãe de Sérgio, 32 anos, cozinheira

e – Brinquedos preferidos… Ele adora é os Game Boys e aquelas coisas assim, não é… E – E a filha?

e – Ela? Ela é os bebés! Ela gosta muito dos bebés. “O meu bebé…”, lá anda ela… Quando está sozinha é o que ela faz. Uhm... Anda lá com os bebezinhos…, depois embrulha-os, depois dá-lhes comida, depois o bebé vai dormir e agora a mãe vai dar muitos beijinhos e anda sempre assim!

Mãe de Francisco, 32 anos, recepcionista

e – (…) É futebol e televisão. Quem o quiser bem é estar ali no sofá deitado a ver televisão todo o dia. Porque ele também não tem coisas para fazer não é… Não tem computador…, não tem nada dessas coisas…, para poder brincar…

E – E quais são os brinquedos dele preferidos?

e – Agora é o telemóvel! (risos) E a bola! (…) Tem os outros brinquedos que as crianças têm, mas os computadores, que é o que eles adoram…, ele não tem.

Mãe de Tiago, 29 anos, cozinheira

Vemos então que nos rapazes sobressai o gosto por jogos, especificamente o futebol, destacando-se o brinquedo da bola. Poderá aqui relatar-se que as espadas, referidas pela mãe de Ana relativamente ao irmão mais novo, de dois anos, foram também um símbolo que se observou nos desenhos dos rapazes em E.V.T., em que era pedido um auto-retrato, destacando-se aqui a importância da simbologia na construção das identidades de género.

Nas raparigas, realçam as bonecas, notando-se uma espécie de apelo à maternidade nas brincadeiras, onde se invoca uma aprendizagem de papéis de género, no “faz de conta”: “Para fazer de mãe e de filha.”. Os livros são referidos pelo pai de Sérgio e pela mãe das gémeas, não se notando qualquer tipo de tendência a este nível do gosto pela leitura. Apesar do facto de as mães das gémeas e a mãe de Natacha terem referido, respectivamente, o “jogar” e o “estar” no computador, há aqui uma clara disparidade entre os sexos, dada a propensão para o electrónico evidenciado no masculino, tendência que o pai de Paula, com mais dois filhos rapazes, enuncia: “Aí há uma grande diferença, não é? Enquanto que os miúdos…, ambos são muito virados para…, para a electrónica e para a informática e perdem (…) horas e horas com jogos de estratégia e essas brincadeiras… Ela não tem paciência para essas coisas (…)”.

Algumas entrevistas de pais e mães vêm demonstrar que a música e as novelas são gostos mais frequentes nas raparigas e o wrestling uma actividade que aparece mais no masculino, associado a uma maior violência nas brincadeiras. Para além disso, evidenciam a forma como as interacções em casa e no exterior são construídas e moldadas pelo factor género. Atente-se nalguns exemplos.

“(…) ela gosta muito de ouvir música (…) e depois ver televisão, os “Morangos com Açúcar”, a “Floribella” (…) e às vezes brincar com as colegas, com os miúdos cá fora (…)”, Mãe de Sónia, 34 anos, ajudante de cozinha

E – E quais são as actividades preferidas do Sérgio?

e – Do Sérgio é futebol…, o Sérgio gosta muito de futebol. Já a pequenita é as histórias; gosta muito de ler livros.

E – Então qual é o brinquedo preferido do Sérgio? e – Uma bola.

Pai de Sérgio, 41 anos, pedreiro

E – E quais são os brinquedos preferidos dele?

e – Olhe, bonequinhos só…, bonequinhos pequenitos… Uma coisa que ele agora está muito… é o wrestling. E eu tenho a impressão que essa coisa de ele bater os bonecos com bonecos é uma forma de ele fazer aquilo que ele viu ali!

Tia de Jorge, 48 anos, funcionária administrativa

“(…) o meu marido vai jogar à bola com ele. Eu não vou porque eu própria eu não gosto muito! Juntos, podemos ir ao cinema, vamos passear ao Fontelo (...) Em casa brinca…, brinca com o pai, principalmente.”, Mãe de Rodrigo, 35 anos, auxiliar num

infantário

Em relação às actividades no Lar Escola de Santo António, a directora afirmou que há também espaço para actividades lúdicas. Apresenta-se então o excerto seguinte, onde a Dr.ª Antonieta distingue as actividades lúdico-pedagógicas no âmbito do serviço social – nas quais se destaca a necessidade de incutir regras sociais associadas ao “saber estar” –, das actividades lúdico-pedagógicas ao nível da animação sociocultural, onde se antevêem algumas das tendências dos gostos dos rapazes (de relembrar que este lar é somente para crianças e jovens do sexo masculino), aparecendo logo o futebol em primeiro lugar, actividade que todos os rapazes da turma destacaram como uma das suas favoritas. Estamos pois perante uma lógica de diferenciação entre rapazes e raparigas, a qual vai estando latente, mesmo quando transparecem indícios duma relativa transversalidade de género; as fusionalidades entre os sujeitos revelam pois ambivalências e ambiguidades nas interacções sociais, que contribuem para a construção do(s) género(s) duma forma mais ou menos estanque nas crianças.

E – Queria falar um pouco das actividades aqui no lar… Que brincadeiras é que eles têm…, como é que ocupam os tempos livres… Já falou no apoio a nível escolar… Que outras actividades é que eles têm?

e – Depois têm actividades lúdico-pedagógicas. Têm actividades no âmbito da Psicologia, uhm…, para treino de competências, das mais variadas competências. Têm actividades no âmbito do serviço social, também para treino de competências, mais ao nível da socialização, das coisas mais básicas, do quotidiano, da higiene pessoal, da arrumação…, do saber estar…, do saber… pronto. Isso ao nível do serviço social. Depois têm as actividades lúdico-pedagógicas, também ao nível da animação… sociocultural.

E – E o que é que eles fazem aí?

e – Futebol, badminton, andebol, campeonatos de jogos de damas, puzzles…

5.4. Divisão sexual do trabalho pago, das tarefas domésticas e dos cuidados com os