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Com o objectivo de analisar e compreender os processos através dos quais se constroem as identidades de género num grupo de pré-adolescentes que se constituiu como população do estudo, optou-se por privilegiar os contextos de socialização familiar, escolar e dos grupos de pares. Interessará, para além desta especificação dos contextos de socialização e das dimensões explicitadas posteriormente no modelo de análise, destacar os dois extremos do

continuum das possíveis formas de entender os processos de socialização.

Há, pois, a perspectiva determinista, onde sobressai a força dos constrangimentos impostos pela estrutura social ou sistema cultural e, do outro lado, a perspectiva accionista, onde é valorizada a acção do sujeito e o seu poder de influência sobre o espaço social. Enquanto na primeira se dá especial relevo ao papel das diferentes instituições, na interiorização dos elementos sócio-culturais do meio, em detrimento da acção do sujeito sobre esse contexto institucional, na segunda, privilegia-se a leitura da realidade social a partir da acção e das interacções entre os indivíduos no interior do espaço institucional. Assim, deste ponto de vista, as instituições deixariam de ser entendidas como exteriores e anteriores aos indivíduos, passando a constituir-se como produtos da (inter)acção dos indivíduos que as habitam e dinamizam (Fonseca, 2004: 74-76). É provavelmente entre estes dois modelos que se encontra a visão adoptada nesta investigação, uma visão correlativa e dialéctica, entre o constrangimento e uma maior individualização na negociação dos papéis sociais vividos nos vários contextos de socialização.

Esta posição intermédia é partilhada por autores como Peter Berger e Thomas Luckman, para além de se pode antever em Bourdieu e Giddens, ainda que com algumas nuances. Assume-se que a estrutura, realidade social objectivada através do processo de institucionalização, exerce uma acção condicionadora sobre as vontades individuais; não obstante, esse condicionalismo estrutural acontece no interior dum espaço de interacções, onde o habitus15, enquanto sistema de disposições incorporadas, é igualmente gerador de práticas. Identidade pessoal e identidade social apresentam-se assim como duas faces da mesma moeda, sendo importante a capacidade do sujeito interiorizar o mundo socialmente

15 Funcionando como mediador entre as condições de existência e as práticas e representações sociais, o habitus

pressupõe: a) a interiorização da exterioridade, que é o espaço social das classes em movimento, em função do volume, da estrutura e trajectória do capital económico, cultural, social, simbólico, etc.; e b) a exteriorização da interioridade, ou das disposições, incluindo esquemas mentais, representações sociais, atitudes. Constitui-se pois como estrutura estruturante que organiza as práticas e a percepção das práticas e, para além disso, como estrutura estruturada, já que é produto da incorporação da divisão em classes sociais (Bourdieu, 1979: 133).

objectivado, mas também a elaboração interna de significados pessoais. Salientam-se então os três momentos de exteriorização, objectivação e interiorização (Berger e Luckmann, 1998: 173), sendo que “Este processo não é unilateral nem mecanicista. Implica uma dialéctica entre a identificação pelos outros e a auto-identificação, entre a identidade objetivamente atribuída e a identidade subjetivamente apropriada” (idem: 177). Nesta perspectiva, “A socialização não é uma espécie de „programação cultural‟, em que a criança absorve passivamente as influências com as quais entra em contacto (…) as crianças são, desde o início, seres activos.” (Giddens, in Fonseca, 2004: 77).

Aproximando-nos um pouco mais do interaccionismo simbólico, abordagem privilegiada neste estudo, é de salientar que a socialização, apesar de implicar uma adaptação ao mundo institucionalizado e a interiorização de valores, modelos, símbolos, etc., consiste numa interiorização do “outro generalizado”, isto é, do mundo dos sentidos socialmente objectivado e perceptível nas interacções sociais. Estamos, portanto, perante um processo de identificação com o mundo objectivado, que não deixa, no entanto, de pressupor também uma apropriação por parte do sujeito e uma recriação dos sentidos apreendidos socialmente, para a construção da identidade pessoal ou do self.

José Madureira Pinto frisa precisamente o carácter eminentemente relacional do conceito de identidade, destacando dois processos na produção das identidades sociais: a) o processo de identificação, através do qual os actores sociais se integram em conjuntos mais vastos, de pertença ou referência e b) o processo de identização, onde os sujeitos tendem a autonomizar-se e diferenciar-se socialmente, fixando fronteiras e distâncias mais ou menos rígidas (Pinto, 1991: 218). Numa abordagem interaccionista, estão implicadas na identidade (social e pessoal) de género a imagem que o sujeito tem de si – podendo aqui distinguir-se a imagem idealizada, que transparece no discurso, aquela que se pretende transmitir, e a imagem que é efectivamente transmitida – e a imagem que o sujeito tem do outro.

Refira-se também que as representações sociais do “ser homem” e do “ser mulher”, enquanto expectativas, poderão ser associadas às crenças e aos estereótipos mais generalizados, partilhados por ambos os sexos, e naturalizados nos seus comportamentos. Pode-se então afirmar que a formação das representações sociais do género está ancorada, em muito boa parte, na naturalização dos modos de ser, construindo-se e modelando-se assim, continuadamente, as formas de ser homem e de ser mulher (Amâncio, 1993a: 138).

A forma como se pensa o feminino e masculino influencia a formação de grupos em função das semelhanças percepcionadas nas interacções e das coordenadas integração e

diferenciação16, mas nem por isso se deve deixar de contextualizar a formação das identidades de género. Ou seja, por muita importância que se dê às interacções sociais e à simbologia para a construção das identidades de género, rapazes e raparigas não se dividem espontaneamente em grupos sexuais distintos e segregados; as divisões aparecem no mundo social em que as crianças nascem e se desenvolvem, reflectindo a influência das representações sociais da cultura mais vasta onde cresceram. Portanto, mesmo que se enfatize o papel dos sujeitos no seu projecto e processo de construção identitária, nunca se deve descurar a importância da ordem social existente para o desenvolvimento das identidades sociais de género.

Falou-se já em outro generalizado e na importância da imagem do outro para a construção das identidades de género, sendo fundamental aludir ao papel da percepção das alteridades sociais nos processos de construção das identidades, estando implicado no conceito de alteridade o conjunto de mecanismos pelos quais os actores sociais tendem a afirmar a sua autonomia e a diferenciar-se socialmente face a outros, definindo fronteiras e distâncias, mais ou menos rígidas e cristalizadas (Saramago, 1994: 153).

As identidades de género irão ser estudadas nas várias dimensões representações,

práticas e simbologia, sendo de evidenciar a particularidade de que, para as crianças, os

significados são mais claramente estabilizados através da actividade prática, do que do entendimento intelectual das suas formas de estar, falar, vestir, etc.. Assim, os processos de construção das identidades de género no grupo de pré-adolescentes escolhidos para o estudo poderão ser perceptíveis a partir da configuração das distâncias sociais definidas pelas crianças em relação ao outro género, evidenciando-se tendencialmente, na realidade social, núcleos de aproximação entre sujeitos do mesmo sexo.

Pretende-se então enfatizar o protagonismo social das crianças pré-adolescentes enquanto sujeitos sociais activos, mas também contextualizá-lo, tendo em conta o papel dos mecanismos institucionais de socialização, associados à formação das apetências e competências sociais dos sujeitos. Portanto, adoptando uma perspectiva no campo do interaccionismo simbólico, na base dum paradigma interpretativo, esta investigação, de carácter qualitativo e intensivo, enfatiza a importância da comunicação para o estabelecimento de sentidos e para a atribuição de significados sociais que contribuem para a construção do género. Daí ser essencial levar a cabo uma observação directa das interacções

16 É, pois, fulcral nunca esquecer que “(…) as identidades sociais se constroem por integração e por

diferenciação, com e contra, por inclusão e exclusão (…) e que todo este processo, feito de complementaridade, contradições e lutas, não pode senão conduzir, numa lógica de jogo de espelhos, a identidades impuras, sincréticas e ambivalentes.” (Pinto, 1991: 219).

entre os actores sociais, das acções práticas e do sentido que atribuem aos objectos, às situações, aos símbolos que os cercam, visto ser nesse conjunto de atribuições simbólicas que os actores constroem o seu mundo social. Assim, os processos de socialização através dos quais as crianças modelam as suas identidades de género são importantes neste estudo, mas com um olhar a partir de dentro, ou seja, a partir das modalidades de interacção patenteadas nos gestos, na linguagem, no desempenho e na negociação de papéis, no tratamento diferenciado em função do género, no tipo de coordenação, e possível conflitualidade, entre os vários contextos e agentes de socialização. O objectivo central foi então perceber como as crianças vivem (ou não) essa possível tensão entre as várias lógicas de construção das suas identidades de género.

O acento tónico da perspectiva adoptada no presente estudo, como o até agora exposto tem vindo a revelar, é colocado na complexidade das esferas sociais de recepção e produção de sentido e nas capacidades de protagonismo social das crianças, enquanto sujeitos sociais específicos, aptos a desempenhar um papel fundamental nos mecanismos de produção social das suas identidades: “Nos mecanismos sociais de produção das identidades, nenhum conjunto de significados contextualizados socialmente produz os seus efeitos alheado das acções mediadoras decorrentes dos esquemas de atribuição de sentido social dos actores.” (Saramago, 2001: 10). O eixo interaccional identitário é pois interceptado, em determinados segmentos, pelo eixo dos mecanismos institucionais socializadores, o que torna indispensável analisar os processos complexos de interacção entre as crianças, enquanto actores sociais, e algumas forças socializadoras, como sejam a família e a escola.

Retenha-se, portanto, a ideia fundamental de que cada situação social acciona um conjunto de atributos identitários, alimentando-se a construção das identidades: a) das

trajectórias sociais incorporadas nos sujeitos; b) da posição que estes ocupam na estrutura social, substanciando esta elementos relativamente duráveis de socialização e de

sociabilidade; e c) dos projectos e das formas de actuação e interacção que, em função das coordenadas estruturais anteriores, são socialmente formuláveis em cada momento específico (Saramago, 1994: 154).