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Gênero: uma categoria útil de análise para a história cultural da educação feminina

POR UMA HISTÓRIA DAS MULHERES BAIANAS: O DESEJO DE UM OUTRO RELATO, DE UMA OUTRA HISTÓRIA

1.2. Gênero: uma categoria útil de análise para a história cultural da educação feminina

Na esteira desses movimentos mais amplos, ou seja, da Nova História Cultural e da História das Mulheres, novas práticas historiográficas e novos caminhos teórico- metodológicos foram, gradativamente, aparecendo nas pesquisas do campo da História da Educação, anos após a sua constituição em 1970, quando são instalados os programas de pós- graduação e pesquisa no interior das universidades brasileiras.

Porém, não foi de imediato a apreensão das revisões críticas ocorridas sobre as produções historiográficas pelas pesquisas históricas educacionais. Há quem defina entre os marcos para a tomada de posições frente às fragilidades da historiografia da educação e da necessidade de conhecimento da História da Educação para a formação de educadoras/es, a criação e manutenção, no interior da Associação Nacional de Pós Graduação em Educação- ANPEd, do Grupo de Trabalho de História da Educação e o Seminário sobre Historiografia e Educação, promovido em 1984 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais- INEP. 21

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Sobre a constituição do campo da História da Educação, dentre outros trabalhos, ver:

SERPA, Luiz Felippe Perret. Perspectivas de estudos em História da Educação: identificando o campo. In. Anais do XV EPENN em São Luis. julho, 2001.;

Desde então, pesquisadoras/es do campo educacional e externos ao campo, de diferentes posições metodológicas e teóricas, desenvolvem suas pesquisas com base nas possibilidades abertas pelos chamados novos temas, novos problemas e novas fontes. Emergem daí investigações cada vez mais voltadas para aspectos específicos da história da educação, expressando no bojo dos seus trabalhos a influência da virada cultural da História. É a Nova História Cultural influenciando os caminhos teóricos e metodológicos da História da Educação. Mas como ocorrem as possíveis relações entre a História Cultural e a História da Educação?

Sérgio Castanho (2006, p. 159), afirma que "a interseção possível entre a história cultural e a história da educação não ocorre pela absorção de uma por outra disciplina, pela anulação de qualquer delas, mas, sem dúvida, por uma mútua fecundação". E a propósito:

A história cultural continuará sendo história cultural, interessada no estudo da 'teia simbólica' tecida pelas sociedades humanas. A história da educação seguirá sendo história da educação, preocupada com o estudo no tempo e no espaço do fenômeno educativo em mudança. Mas, ao estudar as práticas e representações dos atores e instituições educativas, a história da educação estará filtrando para dentro de seu próprio campo, numa espécie de processo osmótico, temáticas e olhares antes específicos da história cultural, não importa em qual das modalidades das muitas que pontilharam seu itinerário. (CASTANHO, 2006, p. 159).

Por outro lado, José Claudinei Lombardi (2006) distingue no campo de pesquisa da história da educação, três grandes abordagens identificadas com a história cultural, cada qual com uma temática, que, por sua vez, se confunde com objeto de investigação: cultura e

currículo; leitura e escrita; cultura escolar. Entre as áreas da história da educação que

encontram suporte nas diversas acepções de cultura escolar, há aquela que se volta para as investigações dos saberes escolares, temática de interesse para este estudo. Souza Júnior e Galvão (2005, p.393), esclarecem que “História das Disciplinas Escolares, História das Matérias Escolares, História dos Saberes Escolares, História dos Conteúdos Escolares são expressões que remetem a um mesmo campo de pesquisa”. Acrescentam ainda que “nesses estudos, investiga-se a escola como local de produção do conhecimento com características originais, ou seja, a compreensão de disciplina escolar como cultura escolar”. (Ibid., p. 399).

Nessa perspectiva, a formação de professoras/es, em especial, o estudo dos saberes requeridos das/os futuras/os professoras/es nos diversos momentos da história da profissionalização docente, aparece como uma dimensão da educação para ser analisada sob a

CARVALHO.M.M.C. A configuração da historiografia educacional brasileira. In: FREITAS, M. C. (Org.)

luz da cultura escolar. Conforme o entendimento de Dominique Julia (2001, p.10), a cultura escolar é descrita:

[...] como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sócio-políticas ou simplesmente de socialização) (JULIA, 2001, p. 10).

Assim, através das vias propostas por Julia (2001) para o entendimento da cultura escolar, será possível perscrutar o entorno que envolveu a definição dos saberes considerados importantes para a formação das jovens mulheres para docência do ensino primário, durante o período de 1890 a 1914, objetivo principal desse trabalho. Por outro lado, esta formação que esteve a cargo da Escola Normal da Bahia neste período, coloca em cena esta instituição, cujas normas e finalidades que a regiam eram traçadas pelas políticas públicas de formação escolar/profissional voltadas para o preparo de mulheres e homens para o magistério.

Contudo, não obstante os fatores externos que, de fato, interferem e orientam a forma como as instituições escolares devem conduzir as suas práticas, tanto André Chervel (1990) quanto Dominique Julia (2001), apontam caminhos para pensar o papel ativo desempenhado por estas instituições, as quais, não só transmitem uma cultura considerada válida pela sociedade, como produzem uma cultura especifica, ou seja, uma cultura escolar que, por sua vez, penetra, molda e modifica a cultura da sociedade.

Esse interesse pela cultura escolar que advém da viragem das historiadoras e dos historiadores educacionais para a cultura, tornou-se cada vez mais necessária a medida que se colocaram diante de questões sobre os sujeitos da educação, dando voz a personagens até então silenciados e trazendo luz à novos temas. Deste modo, os tempos e os espaços escolares, os saberes escolares, os agentes educacionais (professoras/es, alunas/os), cultura escolar, as práticas escolares, categorias de análise como gênero, etnia, classe, práticas, representações entre outras, são alguns dos motes que passaram a caracterizar a historiografia educacional. Sobre tais categorias, Faria Filho; Diana Vidal et al. (2004), chamam a atenção para a presença destas e de outras nos estudos sobre culturas escolares, ao estabelecerem uma relação recíproca de contribuição no intuito de dar maior integibilidade às análises:

Assim, os trabalhos que se debruçam sobre os sujeitos escolares (professores, alunos, diretores, inspetores, etc.) e suas ações conformadoras e instituidoras das culturas escolares têm crescentemente utilizado as categorias de gênero, classe, raça, geração, etnia, entre outras, como

instrumental teórico-metodológico para entender as ações e os lugares ocupados por esses sujeitos nas teias que envolvem e fabricam as culturas escolares (Vidal; Carvalho, 2001; Rosa, 2001; Peres, 2000; Vieira, 2002; Villela, 2000). (FARIA FILHO; VIDAL et al, 2004, p. 152).22

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No que tange ao interesse pelas relações de gênero, alguns balanços constataram como tais incursões foram se espraiando no campo da história educacional brasileira. Diana Vidal (2006), buscando atualizar o estado da arte sobre os trabalhos que versam gênero e educação na produção acadêmica, nos dá conta do desenvolvimento do tema a partir de balanços já realizados desde a década de 70/80; anos 90, atualizada em 2001 e 2004, constatando um alargamento dos estudos de gênero no campo da História da Educação, assim como, uma concentração da problemática no âmbito das pesquisas sobre a profissão docente. 23

Dentre outras análises, Vidal (2006) se refere a que foi feita por Marta Araújo (2005) sobre dissertações e teses defendidas nos Programas de Pós- Graduação em Educação das regiões Norte e Nordeste, entre 1982 e 2003, diante das quais a autora conclui que "dentre os objetos de estudos em ascensão, destacam-se acesso da mulher à instrução escolar, imprensa feminina, práticas de escritas femininas [...], educação sexual[...]"(ARAÚJO, 2005 apud VIDAL, 2006, p.12). Por outro lado, ao atentar para a bibliografia citada nos trabalhos apresentados, Vidal (2006) verifica a presença das/os seguintes autoras/es:

No plano internacional, destacam-se como autores Roger Chartier, com 22 aparições, Michele Perrot (16), Pierre Bourdieu (15), Joan Scott (15), Michel Foucault (11) e Michel de Certeau (9). No cenário nacional , os mais citados são Guacira Lopes Louro (22), Jane de Almeida (12), Maria Arisnete de Morais (11) e Mary Del Priore (10). A freqüência de Chartier e Certeau nos trabalhos explica-se pelo crescente interesse pelas mulheres leitoras e escritoras como objeto, o que faz as pesquisadoras recorrerem aos aportes de uma história do livro e da leitura, cuja tradução mais corrente no campo remete à nova historia cultural francesa e, nela, a Roger Chartier

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VIDAL, D. G.; CARVALHO, M. P. Mulheres e magistério primário: tensões, ambigüidades e deslocamentos. In: VIDAL, D. G.;HILSDORF, M. L. (Orgs.) Tópicas em História da Educação. São Paulo: Edusp, 2001. p. 205-224.;

-ROSA, W. M. Instrução Pública e profissão docente em Minas Gerais (1825/1852). 2001. Dissertação (Mestrado)– Faculdade de Educação da Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001;

-PERES, E. T. Aprendendo formas de ensinar de pensar e de agir: a escola como oficina da vida: discursos

pedagógicos e práticas escolares na escola pública primária gaúcha (1909-1959). 2000. Tese (Doutorado)–

Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2000;

-VIEIRA, D. A. História do magistério: experiências masculinas na carreira administrativa no estado de

São Paulo (1950/1980). 2002. Dissertação (Mestrado)– Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo,

São Paulo, 2002;

-VILLELA, H. de O. S. O mestre-escola e a professora. In: LOPES, E. M. T.; FARIA FILHO, L. M.; VEIGA, C. G. 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 95-134.

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A autora considerou os trabalhos apresentados nos três congressos brasileiros de História da Educação, realizados no Rio de Janeiro (2000), Natal (2002) e Curitiba (2004), bem como dois congressos de História da Educação em Minas Gerais, realizados em Belo Horizonte (2001) e Uberlândia (2003).

como expoente. A associação entre histórias das mulheres e história cultural extrapola, entretanto, os limites nacionais e o âmbito da História da Educação. Peter Burke (2004, p.65) 24 identifica movimento semelhante para a historiografia européia dos últimos 20 anos, na sua preocupação em “desmascarar os preconceitos masculinos como em enfatizar a contribuição feminina para a cultura, praticamente invisível na narrativa tradicional”. (VIDAL, 2006, p. 18).

De acordo com o exposto, a elevação da mulher enquanto sujeito histórico difundiu-se a partir desta aproximação cada vez mais latente entre a História Cultural e a História das Mulheres, como já foi abordado em linhas anteriores deste capitulo. Vale lembrar que as perspectivas de análise oriundas desta aproximação ganharam mais força quando historiadoras e historiadores educacionais se apropriaram dos debates teóricos importados pelo Brasil nos anos de 1990 sobre as relações de gênero, os quais se mostraram relevantes tanto para a história da educação brasileira como para outras áreas de estudos sobre a mulher.

Verifica-se, nessa época, a influência da critica teórica-feminista entre os/as pesquisadoras/es da educação, destacando-se nos seus trabalhos referências às reflexões da historiadora Joan Scott, presentes em seu célebre artigo "Gênero: uma categoria útil de

análise histórica", que foi traduzido por Guacira Lopes Louro em 1990. Em acréscimo ao que

explanamos sobre o entendimento de Scott (1991) acerca do conceito de gênero, e mais uma vez ratificando a essencial relação entre a abordagem da autora com a dimensão da cultura, observemos que:

O termo “gênero” também é utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. Seu uso rejeita explicitamente explicações biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum, para diversas formas de subordinação feminina, nos fatos de que as mulheres têm a capacidade para dar a luz e de que os homens têm uma força muscular superior. Em vez disso, o termo “gênero” torna-se uma forma de indicar “construções culturais”- a criação inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres. (SCOTT, 1995, p. 75).

Com base no entendimento acima, isto é, considerando gênero como uma construção sociocultural feita sobre as diferenças sexuais, pesquisadoras/es do campo da Educação conduzem os seus estudos se valendo dos elos possíveis entre a História das Mulheres, a História Cultural e a História da Educação. Sérgio Castanho (2006, p. 161) ao fazer um levantamento das possibilidades da história cultural a partir da história da educação faz referência a alguns títulos de trabalhos publicados no Brasil na década de 1990, dentre os quais ele cita "Eliane Marta Teixeira Lopes (1992) que examina fontes e categorias para o

estudo da história da educação da mulher, tema a que se dedica igualmente Guacira Lopes Louro (1992), autora que também trabalha com oralidade como fonte para a história da educação de gênero (1990)". Através do levantamento feito por Vidal (2006), acrescentemos "Mulher na sala de aula" de Guacira Lopes Louro, publicado no livro de Mary del Priore "História das Mulheres no Brasil(1997), seguido de "Gênero, sexualidade e educação(1997); Mulher e Educação: a paixão pelo possível (1998) de Jane Soares de Almeida, dentre outros.

Em decorrência da interseção entre os campos mencionados, as abordagens identificadas nos estudos são variadas. No que concerne aos estudos em História da Educação que consideram gênero como categoria, verifica-se algumas possibilidades de pesquisa, fruto da ampliação das análises nos últimos anos. A história da educação de meninos e meninas; a instituição escolar como um espaço generificado; a imprensa e a educação feminina; as relações de poder e os significados de gênero constituídos na cultura escolar; valores e regras de condutas morais (e sexuais) cobradas de professoras e professores; a história das mulheres- professoras e sua educação; a feminização do magistério; práticas docentes femininas; currículos e saberes docentes nas Escolas Normais, dentre outros caminhos traçados para investigações no campo.

Ressaltemos ainda o alargamento dos temas abordados pela História da Educação, favorecendo a urgência da expansão das fontes. Objetos escolares, obras literárias; autobiografias, correspondências, diários íntimos, relatos de viajantes, fotografias, jornais e revistas, fontes orais, além das fontes oficiais que têm recebido um novo olhar e um novo tratamento, compõem o conjunto de materiais explorados, atualmente, no desenvolvimento das pesquisas históricas.

É diante desse quadro que se inscrevem as transformações na historiografia brasileira que buscamos nos aproximar dos elos que dão sentido à relação entre as perspectivas da História das Mulheres (com ênfase nos estudos de gênero), da História Cultural e da História da Educação para estudarmos a partir deste momento a história cultural da educação feminina na Bahia na viragem do século XIX para o século XX. Acreditamos na relação existente entre a forma como as mulheres tiveram acesso aos processos e espaços de educação informais e formais e os saberes considerados fundamentais na sua formação para a docência do ensino primário. Percurso considerado importante neste trabalho para compreendermos a relação entre os saberes específicos para a formação dessas jovens mulheres para o magistério e os diversos fatores contribuintes ou definidores da constituição de tais saberes em seu processo histórico.

CAPITULO 2

HISTÓRIA CULTURAL DA EDUCAÇÃO FEMININA NA BAHIA DE OUTRORA: