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HISTÓRIA CULTURAL DA EDUCAÇÃO FEMININA NA BAHIA DE OUTRORA: ENTRE REPRESENTAÇÕES, PRÁTICAS E APROPRIAÇÕES

2.1. Representações do feminino: uma breve história

Inexistente no nível político, forte mas contido dentro da família, o lugar das mulheres no século XIX é extremo, quase delirante no imaginário público e privado, seja no nível político, religioso ou poético. A igreja celebra o culto da Virgem Maria, cujas aparições geram grandes peregrinações. Os saint simonianos sonham com a salvação por obra da Mãe, vinda do Oriente. A República encarna-se numa mulher, a Marianne. Poetas e pintores cantam a mulher, na mesma proporção de sua misoginia cotidiana. (PERROT, 1988, p. 182).

As Mulheres? Ausentes nos relatos históricos ou meras coadjuvantes da História,

contudo, elas sempre foram assunto. Objeto de simbologias e de valores atribuídos a elas em diferentes épocas. Como ressaltamos no início desse trabalho, falavam das mulheres e por elas, porém, as suas próprias representações, práticas e formas de apropriação foram ignoradas.

No decurso da história sempre existiu discursos reveladores do modo como a mulher era vista, pensada ou das representações criadas sobre ela. Discursos de cunho filosófico, médico, religioso, político ou provenientes do campo da educação. Não há dúvidas quanto ao poder de tais discursos, em especial, quando foram/são elaborados e pronunciados por pessoas influentes, afinal, como bem diz Roger Chartier (1986), “as representações do mundo social assim construídas [...], são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza”. (Ibid, p. 17).

Ainda que saibamos que o processo de apropriação de determinadas imagens, idéias ou valores pelos sujeitos não é de mero reflexo, parafraseando Carla Bassanezi Pinsky (2012, p. 470), torna-se importante conhecer as representações que prevalecem em cada época, pois elas podem exercer influência nos modos de ser, de agir, de sentir das pessoas bem como nos espaços que ocupam na sociedade e nas escolhas de vida que fazem. Destaquemos as escolhas profissionais, muitas vezes fundadas a partir dessa influência. Assim, é preciso não perder de vista o movimento de apropriação, mas, também, de reapropriação que os sujeitos fazem ao conceberem determinadas concepções em diferentes períodos históricos.

Mas, por onde iniciar a abordagem das representações construídas sobre as mulheres? O que foi dito e o que se pensava sobre o sexo feminino? De onde extrair indícios, marcas dessas representações? Do corpo das mulheres tal como Michelle Perrot (2008) o abordou? É um caminho, afinal, de acordo com a autora, nos corpos se encontram as marcas das

diferenças dos sexos. Não o corpo imóvel, mas, o corpo na história, em movimento, em confronto com as mudanças do tempo, pois, o corpo tem história, seja física, estética, política, ideal, material, da qual os historiadores progressivamente foram se conscientizando. (Ibid., p. 42).

Observamos que ao longo das épocas as representações dos sexos, feminino e masculino, foram constituídas com base em fundamentos biológicos, através dos quais as identidades eram definidas, ou seja, o ser mulher ou o ser homem estava estritamente ligado à diferença anatômica e biológica do corpo. No que se refere à história das representações do sexo feminino, Michelle Perrot (2008, p. 63) destaca que “de Aristóteles a Freud, o sexo feminino é visto como uma carência, um defeito, uma fraqueza da natureza”. E continua:

Para Aristóteles, a mulher é um homem mal-acabado, um ser incompleto, uma forma malcozida. Freud faz da “inveja do pênis” o núcleo obsedante da sexualidade feminina. A mulher é um ser em concavidade, esburacado, marcado para a possessão, para a passividade. Por sua anatomia. Mas também por sua biologia. Seus humores – a água, o sangue (o sangue impuro), o leite – não têm o mesmo poder criador que o esperma, elas são apenas nutrizes. Na geração a mulher não é mais que um receptáculo, um vaso do qual se pode apenas esperar que seja calmo e quente. Só se descobrirá o mecanismo da ovulação no século XVIII e é somente em meados do século XIX que se reconhecerá sua importância. Inferior, a mulher o é, de inicio, por causa de seu sexo, de sua genitália. (PERROT, 2008, p. 63).

O comentário acima expressa a forma como a mulher e seu corpo foi abordado em tempos remotos, mas que implicaram nas concepções de mulher por um longo período, desde a Antiguidade até a Idade Moderna passando pela Idade Média, sem descartar que ainda hoje encontramos marcas de todo esse imaginário. Tal tipo de abordagem que preconizava a inferioridade e a imperfeição femininas, como se pode ver no pensamento aristotélico, está no cerne das representações acerca das diferenças entre os sexos. Segundo o pensamento filosófico grego, residia no corpo masculino a capacidade de criação da vida, através do falo, do sêmen onde, inclusive, estavam presentes as características herdadas pela criança, cabendo à mulher somente a função de receber e fazer brotar o fruto vindo do homem. Mais uma vez tomando de empréstimo as palavras de Perrrot (2003, p. 20), em acréscimo à tradução desta idéia do corpo feminino enquanto um mero receptáculo, “assimilavam-no a uma terra fria, seca, zona passiva, que se submete, reproduz, mas não cria; que não produz nem acontecimento nem história e do qual, consequentemente, não há nada a dizer”. Eis aí uma

das práticas que contribuíram para silenciar as mulheres, o silêncio que pesou sobre os seus corpos.

Foi justamente contra os argumentos históricos da naturalização das identidades de mulher e de homem que a teoria feminista propôs que se pensasse a construção cultural das diferenças sexuais, indo de encontro ao determinismo natural e biológico, o qual justificava as desigualdades sexuais, desqualificando as mulheres, tanto no que dizia respeito ao corpo quanto ao intelecto.

Esse imaginário perdurou e as perspectivas que o formavam foram apropriadas pela medicina e se encontram presentes na história das representações e práticas religiosas, em especial, das religiões monoteístas ocidentais. Numa rápida incursão sobre os discursos médico e religioso dos primeiros tempos da colonização do Brasil, por exemplo, quando a Igreja Católica passa a encarregar-se da conversão e educação da população, constata-se que no esforço de decifrar os mistérios do corpo da mulher, bem como a natureza e finalidade da sua existência, a ciência médica e a Igreja construíram, de início, representações tão semelhantes quanto complementares.

Ao acompanhar as análises de Mary Del Priore (2010), é possível afirmar que até mesmo os saberes disseminados pela Igreja se sobrepuseram às descobertas científicas que ocorreram entre os séculos XVII e XVIII e isto implicou em atraso ou estagnação no processo de construção de conceitos no campo da medicina portuguesa com repercussões para a colônia.

Nesse ambiente de atraso cientifico e de crença em poderes mágicos capazes de atacar a saúde é que argumentos e noções sobre o funcionamento do corpo da mulher foram fabricados. Apoiada na alquimia medieval, na astrologia e no empirismo, a literatura médica refletia a enorme ingenuidade, deixando transparecer o despreparo ocasionado por uma formação escolar insuficiente. Além disso, a influência da escolástica, que impregnava todos os conhecimentos, ajudava a sublinhar a inferioridade com que o corpo feminino era considerado. (DEL PRIORE, 2010, p. 81).

O dogmatismo era tamanho que o olhar da medicina sobre as doenças estava carregado de religiosidade. Ainda fazendo referência aos tempos da colonização, a atribuição de diagnósticos médicos às doenças era feita estabelecendo uma relação com a quantidade de pecados cometidos pelo enfermo. Portanto, a doença era vista como um castigo de Deus àquelas /es que por algum motivo tivessem transgredido as leis divinas. E no caso da mulher, em especial,

Num cenário em que doença e culpa se misturavam, o corpo feminino era visto, tanto por pregadores da Igreja católica quanto por médicos, como um palco nebuloso e obscuro no qual Deus e Diabo se digladiavam. Qualquer doença, qualquer mazela que atacasse uma mulher, era interpretada como um indício da ira celestial contra pecados cometidos, ou então era diagnosticada como sinal demoníaco ou feitiço diabólico. Esse imaginário, que tornava o corpo um extrato do céu ou do inferno, constituía um saber que orientava a medicina e supria provisoriamente as lacunas de seus conhecimentos. (DEL PRIORE, 2010, p. 78).

Além disso, a autora supracitada relata que os fisiologistas e médicos portugueses ao estudar anatomia e patologia o faziam em busca de entender a natureza feminina, indagando- se sobre os fins para os quais Deus havia criado a mulher e a que princípios esta obedeceria. Assim, em busca de respostas, a crença na mulher enquanto um “depósito sagrado” criado para a procriação foi disseminada não somente por padres e pregadores da Igreja Católica como foi corroborada pelos médicos. E esta função atribuída à mulher, ou seja, da reprodução, condicionava toda a busca do conhecimento médico sobre o corpo feminino.

Ainda de acordo com Del Priore (2010), os médicos, entre os séculos XVI e XVII, acreditavam que a madre (nome dado ao útero naquela época) era o que chamavam de animal

errabundo (alguma coisa que conseguia se locomover no corpo da mulher), e uma vez que ele

não fosse alimentado por um filho anualmente, este útero subiria para a garganta da mulher sufocando-a. Havia uma obsessão em compreender o funcionamento da madre, mas, o entendimento que construíam era um tanto quanto resumido, limitado devido ao olhar funcionalista da medicina portuguesa voltada apenas para o que dizia respeito à procriação.

Um aspecto importante apresentado pela autora acima citada decorre da valorização do útero como um órgão responsável pela perpetuação da espécie. Ao valorizá-lo, valorizava-se a sexualidade feminina, porém, não no sentido da realização da mulher, mas no de sua disciplina, pois, o equilíbrio feminino, seja físico, psicológico ou emocional dependia do bom funcionamento da madre. Deste modo, era preciso prevenir antes mesmo de remediar qualquer possibilidade de contrariedade da função reprodutiva deste órgão, pois, caso contrário acreditava-se que ele lançaria a mulher numa série de enfermidades caracterizadas como a melancolia ou “banho do Demônio”, loucura, histeria e ninfomania.

Grosso modo, observa-se através dos estudos já existentes, que este corpo passivo, mas, que misteriosamente procriava, por anos resumido ao seu sexo, precisava ser decifrado ao tempo em que causava temor aos homens. Toda forma de manifestação da sexualidade feminina deveria ser contida, reprimida, adestrada para não ameaçar o equilíbrio familiar,

social ou das ordens extremamente influentes da Igreja. Se ávidas por sexo, as mulheres amedrontavam, pois, o seu insaciável desejo conduziria à impotência. Estas foram, também, rotuladas como perigosas, maléficas e até mesmo vistas como feiticeiras. Fonte de inspiração para os homens até enquanto não as possuíam, pois, essa posse os aniquilavam. Por isso que alguns atletas quando precisam concentrar suas forças devem se afastar das mulheres; Se frígidas seriam, justificadamente, substituídas por prostitutas ou amantes encarregadas de suprir a falta da paga natural do casamento; Além dessas, havia as histéricas, atingidas pelos furores uterinos. Estas, consideradas doentes de seu sexo foram objetos da psicanálise e da psiquiatria, principalmente, a partir do século XIX.25

Como se vê, à medida que a ciência médica elaborava os seus conceitos acerca da natureza feminina, ela avaliava as funções do corpo da mulher sob um olhar marcadamente masculino, desconfiado e misógino. O sexo masculino ocupou desde então o lugar de controle e manipulação sobre a mulher, um lugar justificado no desconhecimento anatômico, fisiológico e até mesmo fantasioso sobre o seu corpo.

Del Priore (2010) afirma que nesse tempo, o médico era um criador de conceitos e os efeitos de suas posições atingiam para além do âmbito da medicina. Desta forma, no intuito de incentivar e garantir uma boa conduta feminina, os médicos reforçavam, sobretudo, a idéia de que “o estatuto biológico da mulher (parir e procriar) estava sempre associado a um outro, moral e metafísico: ser mãe, frágil e submissa, ter bons sentimentos etc.”. (Ibid., p. 83). Não por acaso, a concepção e a gravidez eram consideradas um meio de remediar os achaques femininos e este pensamento inscrevia-se no discurso da Igreja.

No processo de povoamento e colonização do Brasil, a doutrina católica que, a serviço do Estado, exerceu por muitos séculos domínio sobre a cultura ocidental, representou a mulher por duas vias míticas e antagônicas: Eva e a Virgem Maria ou a “nova Eva”26

. Eram os pólos opostos de imagem de mulher disseminados pela religião. Partiam da premissa de que a mulher partilhava de uma essência personificada na figura de Eva, ou seja, que por sua natureza ela era mais vulnerável ao mal, ao pecado e a traição. No pólo oposto havia o modelo de mulher como referência a ser seguida, a Virgem, arquétipo através do qual instituíam formas de pensar e condutas a serem adotadas pelas mulheres.

25 Para saber mais: ENGEL, Magali. Psiquiatria e Feminilidade. In: DEL PRIORE, Mary. (Org.). História das

Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto. p. 322-361

26 REIS, Adriana Dantas (2000) apresenta esta denominação “nova Eva” com base em BEINERT,Wolfgang. O

culto a Maria hoje. São Paulo: Paulinas, 1979. Segundo este livro, no século II, começou-se a refletir

teologicamente sobre o conceito da “nova Eva”, que, para Cristo, era Maria, a qual com a obediência compensou o que a primeira havia arruinado com a desobediência. (BEINERT, 1979, apud DANTAS, 2000, p.81).

Assim, dentre as práticas da Igreja para atingir os seus desígnios, observa-se formas de controle do corpo e dentre os aspectos a ele relacionados, a sexualidade feminina, em especial, deveria ser adestrada. O erro de Eva era um precedente para a necessidade de controle do sexo feminino e a afirmação da superioridade do homem, conferindo a este total autoridade sobre a mulher.

São Paulo, na Epistóla aos Efésios, não deixa dúvidas quanto a isso: “As mulheres estejam sujeitas aos seus maridos como ao Senhor, porque o homem é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja...Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo, sujeitas aos seus maridos.” De modo que o macho (marido, pai e irmão etc.) representava Cristo no lar. A mulher estava condenada, por definição, a pagar eternamente pelo erro de Eva, a primeira fêmea, que levou Adão ao pecado e tirou da humanidade futura a possibilidade de gozar da inocência paradisíaca. (ARAÚJO, 2010, p. 46).

Diante do exposto, por conta desse estigma de carregar em sua constituição histórica a essência de Eva, a mulher deveria pagar com a sua vida permanentemente controlada. Não faltaram formas ou meios para reprimi-la, porém, como raiz dessa marca, o alvo a ser perseguido era a sua sexualidade. Logo, era preciso preservá-la, mantendo-a longe de qualquer possibilidade de cometer um pecado carnal. Desta necessidade emergem algumas práticas como a vigilância exercida pela figura masculina (pais, irmãos e maridos), e a reclusão, onde o ambiente doméstico, o espaço privado se constituiu como mais apropriado e seguro para a sua formação.

Segundo Araujo (2010, p. 49), “repetia-se como algo ideal, nos tempos coloniais, que havia apenas três ocasiões em que a mulher poderia sair do lar durante toda sua vida: para se batizar para se casar e para ser enterrada”. Com a ressalva do autor da evidência do exagero desta afirmação, alguns relatos de viajantes que passaram por Salvador entre os séculos XVII e XIX, dentre outros relatos presentes em estudos realizados, apresentam em suas descrições esta imagem de mulher recolhida. Vejamos um relato apresentado pelo autor, datado de 1751. O arcebispo da cidade de Salvador queixou-se da proibição dos pais às moças de assistir às devotas lições no Colégio das Mercês, das ursulinas, onde expôs a sua dificuldade em

conseguir que os pais e parentes consintam que suas filhas e mais obrigações

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saiam de casa à missa nem a outra função, o que geralmente se pratica não só com as donzelas brancas, mas ainda com as pardas e pretas chamadas crioulas, e quaisquer outras que se confessam de porta adentro. (ARAÚJO, 2010, p. 49).

Atentemos agora para descrições de visitantes a Salvador. Mesmo sabendo que esses registros são carregados de impressões oriundas de referências do universo cultural de quem as produziu, eles nos dão conta do cotidiano em determinados períodos.

O viajante Canstatt, que esteve na Bahia no século passado, observa que não teve oportunidade de conhecer as mulheres residentes na cidade, uma vez que elas nunca se apresentam na rua, como é costume na Alemanha, mostrando-se no máximo e excepcionalmente, na varanda de sua casa. (AUGEL, 1980 apud LEITE, 1997, p. 25).

Lindley, viajante inglês que visitou a Bahia entre as primeiras décadas do século XIX, nos fornece, também, importantes informações:

Parece aos estrangeiros curiosa a restrição a que estão sujeitas as mulheres deste país, por não poderem passear pelas ruas sem estar hermeticamente fechadas numa cadeirinha, ou segregadas em cabriolé; mas, tal é a força do costume que nenhuma delas jamais é vista com liberdade, exceto no recesso de suas casas. (LYNDLEY, 1969, p. 179).

Assim sendo, uma vez reclusas, essas mulheres que tinham sua sexualidade tolhida viviam sob os olhares atentos da família, em especial da figura masculina que sempre mantinha a vigilância, principalmente, nos raros momentos em que elas saiam de casa, momentos estes que diante dos registros se resumiam à ida na Igreja. O controle também se dava sobre a maneira como elas deveriam se vestir. As vestimentas deveriam ser marcas de distinção da mulher santa, pudica, honesta e, por conseguinte, a compostura e a simplicidade deveriam compor os trajes femininos.

Ora, nesta sociedade onde Igreja e medicina, de mãos dadas, construíram e disseminaram representações fundamentadas em pensamentos misóginos, foram concebidos estereótipos de gênero. Estereótipos produzidos com base na relação de oposição, uma prática usada que, inclusive, assegurava a condição de subordinação da mulher. Algumas imagens de mulher foram delineadas no processo de construção de uma identidade feminina segundo modelos que emergiram de uma ideologia religiosa e patriarcal, presente desde os tempos coloniais. Atentemos para o que diz Carla Bassanezi Pinsky:

De fato, a sexualidade feminina, as funções biológicas e as secreções a elas ligadas costumavam ser matéria-prima para definir as imagens de mulher mais marcantes e recorrentes. E estas vinham aos pares – a “casta” e a “impura”, a “santa” e a “pecadora”, “Maria” e “Eva”- como pólos opostos que ajudam a definir um ao outro. No Brasil não foi diferente. Mesmo a chegada do século XX não provocou grandes rupturas: permaneceram as heranças européias do medievo que valorizavam a pureza sexual das mulheres e condenavam as que se deleitavam no sexo. (PINSKY, 2012, p. 471).

A mulher, que à luz da Igreja e da medicina foi considerada como um homem imperfeito, detentora de uma parte interna que reproduzia o modelo do órgão sexual masculino, criatura de ossos pequenos, moles, frágeis, desde então, foi representada como um ser menor, inferior, diminuído. Esta visão se diferenciava daquela atribuída ao homem, este ser de musculatura forte, ossos grandes, criaturas solares, portanto, para ele o mundo público, o reconhecimento, o saber, a autoridade e o autoritarismo, enquanto para ela reservou-se o mundo privado, desvalorizado e por muito tempo circunscrito ao espaço doméstico. Uma vida de interditos, inclusive, ao saber.

Durante todo o processo de colonização do Brasil por Portugal, a mulher foi excluída do direito à educação formal. O direito à instrução cabia aos homens, e nesta época, reservava-se aos filhos de indígenas e colonos.28 A educação feminina se realizava no âmbito doméstico, voltada, sobretudo para prepará-las para as suas principais funções: ser esposa e mãe. E para a Igreja a maternidade, consequência “natural” do matrimônio, representava a definitiva associação da mulher à Virgem Maria:

Finalmente, com prazer ou sem prazer, com paixão ou sem paixão, a menina tornava-se mãe, e mãe honrada, criada na casa dos pais, casada na Igreja. Na visão da sociedade misógina, a maternidade teria de ser o ápice na vida da mulher. Doravante ela se afastava de Eva e aproximava-se de Maria, a mulher que pariu virgem o Salvador do mundo. (ARAÚJO, 2010, p. 52).

Contudo, a partir das primeiras décadas do século XIX, o domínio e influência da Igreja sobre aspectos como a educação e saúde da população sofreram alguns abalos em decorrência de conflitos presentes nas relações com o Estado, sobretudo, após a Independência do Brasil."A perda de controle sobre o cotidiano do povo foi proporcional ao