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5 HISTÓRIAS DE VIDA

5.2 FORMAÇÃO DE PROFESSORES

5.2.4 Gênero e docência

Conforme dito, é através dos modelos propagados que se imprime a distinção de gênero. Essas marcas de diferenciação encontram-se em todos os níveis de vivência, inclusive na educação e na forma como meninos e meninas são criados. É possível afirmar que a representação da mulher e da professora é fruto da

sociedade na qual se vive. À mulher, historicamente falando, são delegados o que os homens consideram trabalhos menos dignos, ou que eles veem como sendo “trabalho de mulher”. Confortin (2003) explica a criação social de homem e mulher:

[...] homens e mulheres são produzidos socialmente e esta produção se dá em múltiplas instâncias sociais: dá-se através dos discursos, das doutrinas, das imagens, dos símbolos, na escola, na família, na igreja, através da mídia, enfim, ser homem e ser mulher é um processo que não está pronto na hora do nascimento da pessoa. É um processo que se dá ao longo da vida e de acordo com as múltiplas influências e instâncias. (CONFORTIN, 2003, p.111).

Esses processos e influências podem ser vistos ao falarmos de ensino fundamental e da profissão docente, principalmente, ser sempre associada à figura feminina. A feminização da profissão, conforme Santos (2008), está diretamente ligada à desvalorização profissional da carreira docente.

O papel do homem como educador remete à figura do conhecimento e autoridade, já a da mulher, é de apoio e cuidado conforme Louro (1997, apud UNESCO, 2004, p. 45): “o professor sempre foi associado à autoridade no conhecimento, enquanto a professora sempre foi – e ainda é – vinculada ao apoio e a cuidados dirigidos aos alunos”.

A autora remonta ao passado, quando homens eram os mestres das salas e explica que a desvalorização da profissão, com baixos salários e situações precárias de trabalho, é anterior à feminização. Em função da desvalorização, os homens começam a deixar os bancos do Curso Normal e o discurso é que a mulher tem, naturalmente, uma inclinação para a docência, uma vez que a escola era vista como uma extensão do lar. Dessa forma, a profissão passa a ser a associada a adjetivos como: paciência, afetividade, doação, conforme Santos (2008).

De acordo com Louro (2007), o sexo masculino vai deixando os bancos do Curso Normal e a docência, originando a feminização falada anteriormente. A autora explica os porquês dessa evasão:

[...] a ampliação das atividades de comércio, maior circulação de jornais e revistas, a instituição de novos hábitos e comportamentos, especialmente ligados às transformações urbanas, estavam produzindo novos sujeitos sociais, tudo concorria para a viabilização desse movimento (LOURO, 2007, p. 449-450).

Os homens procuram empregos que paguem melhor, deixando o espaço escolar para as mulheres. Chauí (1984) aponta que a inserção das mulheres nos espaços públicos ocorreu de forma gradual. Conectada à noção de que ser mulher é ser mãe, entende-se que os primeiros anos do ensino devem ser uma atividade, especificamente, feminina. Neste momento, percebemos a conexão de cuidar/educar. E, segundo Louro (2007), muitos argumentavam que as mulheres estavam despreparadas para o papel, porém, outros apontavam que estava na natureza da mulher assumir o papel da educação no ensino fundamental, uma vez que era esperado dela que pudesse cuidar e educar:

Se o destino primordial da mulher era a maternidade, bastaria pensar que o magistério representava, de certa forma, ‘a extensão da maternidade’, cada aluno ou aluna vistos como um filho ou uma filha ‘espiritual’. O argumento parecia perfeito: a docência não subverteria a função feminina fundamental, ao contrário, poderia ampliá-la ou sublimá-la (LOURO, 2007, p. 450).

Os adjetivos citados, anteriormente, como características essenciais para o exercício da profissão, também estavam ligados ao que chamaram de vocação da mulher para a docência, segundo Louro (2007), e por consequência se tornaram pré-requisitos no exercício da profissão. “Características que, por sua vez, vão se articular à tradição religiosa da atividade docente, reforçando a idéia de que a docência deve ser percebida mais como sacerdócio do que como uma profissão” (LOURO, 2007, p. 450). A docência vista quase como um sacerdócio, algo vocacional, é construída por uma sociedade patriarcal e que se mantém até os dias de hoje:

Historicamente, o conceito de vocação foi aceito e expresso pelos próprios educadores e educadoras, que argumentavam quem, como a escolha da carreira devia ser adequada à natureza feminina, atividades requerendo sentimento, dedicação, minúcia e paciência deveriam ser preferidas. Ligado a idéia de que as pessoas têm aptidões e tendências inatas para certas ocupações, o conceito de vocação foi um dos mecanismos mais eficientes para induzir as mulheres a escolher as profissões menos valorizadas socialmente. (BRUSCHINI & AMADO, 1998, p. 7)

Embora induzidas a escolher profissões menos importantes, a docência era uma forma de deixar a esfera privada para trás, mesmo que fosse para ter uma profissão pouco valorizada e mal remunerada:

Ser professora, na visão das mulheres e da sociedade, possuía mais prestígio do que ser governanta, costureira ou parteira. Desta forma, mesmo

o magistério não sendo uma profissão bem remunerada, ainda assim garantiria um salário melhor que estas outras profissões destinadas a elas. A possibilidade de circularem pelo espaço público desacompanhadas e de adquirirem conhecimentos que iam além das prendas domésticas, como era usual, também foi grande atrativo. (ROSA, 2011, sn)

As transformações de esfera pública e privada, e entrada da mulher nessa esfera pública, conforme apontou Rosa (2011), estão ligadas ao processo de industrialização do século XX e remodelação da sociedade. Em muitos casos, o homem era o provedor da casa, mas a necessidade de sustento também recaiu nos ombros das mulheres e, segundo Almeida (1998), ao falar que “[...] o maior motivo de as mulheres terem buscado o magistério estava no fato de realmente precisarem trabalhar” (ALMEIDA, 1998, p. 71). A profissão docente era mais prestigiada do que outras, conforme apontou Becker (2018a) ao falar sobre as normalistas do Olavo Bilac.

O magistério torna-se um meio de deixar a esfera privada, terem um sustento e uma profissão. A necessidade de expansão da educação implicava em mais gastos, e o governo já pagava mais aos homens que lecionavam. As mulheres eram a alternativa de expansão sem um grande aumento nos gastos, já que os homens não iriam aceitar a redução dos seus salários. Conforme Catani et al. (1997):

Para que a escolarização se democratizasse era preciso que o professor custasse pouco: o homem, que procura ter reconhecido o investimento na formação, tem consciência de seu preço e se vê com direito à autonomia – procura espaços ainda não desvalorizados pelo feminino. Por outro lado, não se podia exortar as professoras a serem ignorantes, mas se podia dizer que o saber não era tudo nem o principal. Exaltar qualidades como abnegação, dedicação, altruísmo e espírito de sacrifício e pagar pouco: não por coincidência este discurso foi dirigido às mulheres. (CATANI et al., 1997, p. 28-29)

Para a compreensão do trabalho docente, se faz necessário o entendimento de gênero e da divisão do trabalho de acordo com ele. Não é algo que se restringe ao universo docente, é preciso vê-lo de forma ampla, algo que permeia toda a sociedade e todas as relações.

De uma maneira geral, a profissão é, predominantemente, feminina, mas é preciso observar que os homens que permaneceram na profissão passaram a ocupar cargos de direção e supervisão. Mantendo um espelho das relações que, ainda hoje, são vistas dentro da esfera privada. Mesmo sendo uma profissão feminizada, os órgãos reguladores são controlados por homens, ou seja, as leis e os

currículos são montados por homens. É evidente a estereotipização da docência e suas implicações no exercício da profissão, mas se faz necessário deixar essas formas deturpadas de entendimento da docência e passar a valorizá-la como profissão que é, a única que forma todas as outras.