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Narrativas e Histórias de vida, entrelaçando teorias

5 HISTÓRIAS DE VIDA

5.1 MEMÓRIA, EXPERIÊNCIA, NARRATIVA E HISTÓRIA DE VIDA

5.1.1 Narrativas e Histórias de vida, entrelaçando teorias

De acordo com Souza, Sousa e Catani (2007) o movimento biográfico no Brasil está presente na pesquisa educacional: na História da Educação, na Formação de Professores e Ciências Humanas, especialmente na área da Psicologia e Sociologia. Goodson (2004) aponta que os relatos de vida, tiveram suas raízes na Escola de Chicago, porém apresentavam um corpo textual que mantinha a separação entre o público e o privado. Bragança (2012) colabora com a afirmação de Goodson (2004) dizendo que a Escola de Chicago (1920-1935) foi “fundacional” no “aporte bibliográfico” na Sociologia, nos Estados Unidos e na Polônia entre as duas grandes guerras.

Conforme Souza (2006, 2007), as histórias de vida entraram, sorrateiramente, no campo das ciências humanas e da formação nos anos de 1980. Hoje, a pesquisa de história de vida se entrecruza com outras correntes que tentam exprimir o mundo. Essas correntes têm outras denominações: biografia, autobiografia, relato de vida, citando aquelas que trazem a vida nas suas próprias denominações.

Na visão de Pineau (2006), estabelecer as relações entre profissionais e personagens sociais é a grande questão entre os relatos de vida e o paradigma clássico da ciência aplicada. A eclosão dessa forma de pesquisa ocorreu em vários setores profissionais e, também nas ciências humanas e sociais. Esse avanço contrariou a hegemonia científica que entendia essa forma de pesquisa como ilusões biográficas. Nessa prática, os “objetos sociais” tornam-se protagonistas, falam de si próprios, descrevem suas vidas para buscar sentido. Isso, até então, na década de 1980, era inadmissível para os doutores das ciências humanas e sociais, os quais pretendiam edificar um saber objetivo e livre de sujeitos.

Queiroz (1981, p. 19) define a narração como “o relato do narrador sobre a sua existência através do tempo, tentando reconstruir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu”. A autora ainda diferencia a narrativa ou como sendo um depoimento ou como sendo uma história de vida, tendo nessa diferenciação o ponto chave do trabalho do pesquisador e a forma como ele coleta os dados.

No depoimento, o pesquisador dirige e conduz a entrevista, selecionando os acontecimentos da vida do entrevistado que serão pertinentes ao trabalho de acordo com o foco da pesquisa e o interesse do pesquisador, tal como faz um jornalista. Na história de vida, o entrevistado é o protagonista do trabalho. Ele que decide o que deve ou não pertencer a sua narrativa, não dando ênfase à cronologia dos acontecimentos, mas sim ao seu percurso de vida, e não ao que o entrevistador tem interesse em relatar.

Segundo Josso (2004), a narrativa permite discernir as experiências que vivemos coletivamente partilhadas, das que experienciamos individualmente. Essas nos dão instrumentos para avaliar uma nova situação ou acontecimento. Para a autora, o entendimento do modo como ocorre a experiência deve ser analisado através das que nos foram significativas em nossa vida, mesmo que tenham acontecido sem um planejamento ou intencionalidade.

Os saberes pessoais são originados das aprendizagens, as quais são oriundas das próprias experiências, seja através de um momento único ou vivido repetidas vezes. De acordo com Benjamin (1994), as narrativas sempre irão abordar uma experiência que traz em sua base a dimensão do narrador como ator principal de um fato histórico social localizado, pois causam a reflexão e nunca se esgotam, caracterizando-se pelo relato da uma existência em si, de uma essência única.

A narrativa... é, por assim dizer, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. [...] (BENJAMIN, 1994, p. 69, grifos do autor).

O autor ainda complementa, “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relata pelos outros” (BENJAMIN, 1994, p. 201). Dessa forma, a narrativa, por configurar-se através da oralidade, mantém as tradições e as conserva. Podemos afirmar que a narrativa não tem a intenção de transmitir o “em si” do acontecido, ela adentra na trajetória do narrador e ao mesmo tempo sai, ainda assim, ela leva consigo a marca de quem a narra.

Delory-Momberger (2011) amplia essa visão dos acontecimentos narrados pela visão do narrador:

[...] pela narrativa transformamos os acontecimentos, as ações e as pessoas de nossa vida em episódios, intrigas e personagens; pela narrativa organizamos os acontecimentos no tempo, construímos relações entre eles, damos um lugar e um significado às situações e experiências que vivemos. É a narrativa que faz de nós o próprio personagem de nossa vida e que dá uma história a nossa vida. (DELORY-MOMBERGER, 2011, p. 341, grifos da autora)

Ao experimentar narrar nossas experiências de vida, reavivamos lembranças através da memória de imagens, sonhos, afetos, vestígios e lembranças que denunciam experiências do cotidiano. Souza (2007, p. 63) contribui com a ideia de que a memória, em sua perspectiva narrativa, “como virada significante, marca um o olhar sobre si em diferentes tempos e espaços, os quais se articulam com as lembranças e as possibilidades de narrar experiências”. Também auxilia na compreensão das histórias de vida.

A narrativa só existe porque há uma experiência significativa na história de vida do sujeito pesquisador que a toma como objeto de compreensão. E junto ao narrador e sujeito da pesquisa faz insurgir uma história referente ao que se está pesquisando.

Quando nos dispomos a debruçar sobre o que temos vivido e realizado, hesitamos entre o prazer de falar daquilo que somos e o comedimento necessário para não nos alongarmos em demasia e não perder a racionalidade. Penso que autobiografias, histórias de vida e memoriais assemelham-se, embora, por uma questão de coerência com os objetos do meio acadêmico, intentamos extirpar destes últimos a maior parte daquilo que chamamos a subjetividade da existência; as emoções, os sentimentos, os desejos e paixões dos quais se nutrem as biografias do sobejamente conhecido. Procuramos, em nome da seriedade profissional que a ciência nos impõe, minimizar atos, decisões e atitudes que tomamos no decorrer de toda uma vida adulta dedicada a essa mesma ciência, que, como mestra severa, vigia e pune nossos atos. (ALMEIDA, 2011, p.40)

Concordamos com as proposições, na medida em que as autobiografias e histórias de vida são inundadas de sentimentos e subjetividades. Já os memoriais, devido à seriedade do meio acadêmico, tornam possível a hesitação que limita o sujeito-narrador entre a emoção e a racionalidade. Dessa forma, as histórias de vida nos permitem compreender quais sentimentos e representações sociais experimentam esses sujeitos no seu processo de formação.

O homem, contador de histórias, traduz a sua forma de ver e sentir o mundo. As histórias de vida são práticas sociais fundamentais na propagação e na recriação da cultura. Através das narrativas de vida há a possibilidade de partilhar e compreender o próprio sentido da existência.

Segundo Souza (2006, 2007), as histórias de vida capturam todas as dimensões humanas que de algum modo, não podem ser quantificadas. Os fatos apresentados nessas narrativas trazem o sujeito que ao mesmo tempo é autor e objeto da pesquisa, considerando as subjetividades inerentes ao processo.

A experiência pedagógica permite pensar a vida, a formação e a prática docente a partir da narração. Considera a pesquisa como produção de conhecimento no que envolve as dimensões social, cultural, psicológica e educacional. Confere um conhecimento auto-implicativo, ao mesmo tempo em que amplia o conhecimento das coisas. Também propicia um olhar sobre nós mesmos.

As pessoas vivem histórias e no contar dessas histórias se reafirmam. Modificam-se e criam novas histórias. As histórias vividas e contadas

educam a nós mesmos e aos outros, incluindo os jovens e os recém- pesquisadores em suas comunidades. (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 27)

Complementando o pensamento dos autores, entendemos que a pesquisa narrativa tem a capacidade de reconstruir “ações e contextos da maneira mais adequada: ela mostra o lugar, o tempo, a motivação e as orientações do sistema simbólico do ator” (SHÜTZE, 1977; BRUNER, 1990 apud BAUER; GASKELL, 2017) e dessa forma torna-se um caminho apropriado para responder aos anseios desta pesquisa.

A pesquisa narrativa vai muito além de ser apenas investigativa, tem em seu âmago a possibilidade de reconstruir uma história. Bragança nos indica que: “Além de sua forma espontânea e literária, as narrativas de vida, por meio de biografias ou autobiografias, constituem uma metodologia de pesquisa” (BRAGANÇA, 2012, p. 38).

No pensamento narrativo da vida em geral, o contexto está sempre presente. Isso inclui noções tais como: contexto temporal, espacial, social e contexto de outras pessoas, e isso não é diferente ao tratar das histórias de vida dos professores conforme propõe Goodson (1995). Seguindo a mesma linha de pensamento Clandinin e Connelly (2015, p. 65) apontam que: “O contexto é necessário para dar sentido a qualquer pessoa, evento ou coisa”.

Ainda de acordo com Clandinin e Connelly (2015, p. 108) “[...] na construção de narrativas de experiências vividas, há um processo reflexivo entre o viver, contar, reviver e recontar de uma história de vida”. Isso significa que a cada história contada há uma nova oportunidade, uma nova vivência e, consequentemente, um novo aprendizado.

Abrahão (2011) disserta sobre esse processo de rememorar e refletir a respeito da história narrada:

[...] o processo é a resultante da rememoração com reflexão sobre fatos relatados, oralmente e/ou por escrito, mediante uma narrativa devida, cuja trama (enredo) faça sentido para os sujeitos da narração, com a intenção, desde que haja sempre uma intencionalidade, de clarificar e ressignificar aspectos, dimensões e momentos da própria formação (ABRAHÃO, 2011, p. 166)

Abrahão (2011) aponta ainda que os sujeitos que narram ou escrevem a própria história tendem a, durante o processo de rememoração, refletir sobre aquilo

que contam a respeito do seu passado. A cada contar de um fato, ele se torna mais claro, ganha um novo significado e fica ainda mais “tatuado” na memória e na formação do narrador.