• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 – AS MÚLTIPLAS LINGUAGENS: NA FORMAÇÃO DA CRIANÇA

2.5 Garaudy – O Corpo Como Linguagem

Por meio da filosofia de Merleau-Ponty ainda podemos refletir sobre a importância de entendermos o corpo como essência do ser e como esse corpo pode se mostrar em suas relações e em suas possibilidades perceptivas contribuindo no desenvolvimento da criança e mudando as práticas pedagógicas na educação infantil, proporcionado às professoras a compreensão de gestos e de linguagens das crianças em suas manifestações subjetivas.

Após leitura e reflexão da obra de Roger Garaudy (1980), no capítulo 1 do livro “Dançar a vida” – a dança como modo de viver, foi possível perceber como o autor se embrenha em descrever a dança como uma maneira toda especial do modo de viver. Ele vê a dança muito mais do que uma arte, mas como um modo de vida. Ele diz: “a dança não é apenas uma arte, mas um modo de viver”. A questão do corpo na vida – dançar a vida – ao invés de ficar pensando na vida – devemos dançar a vida!

Ele diz que a dança é a expressão através de movimentos do corpo organizados em sequências significativas, de experiências significativas que transcendem o poder das palavras e da mímica. Que a dança é um modo de existir. O autor descreve a dança como necessária e atribui a ela um papel muito importante na trajetória da humanidade fazendo parte de momentos da vida das pessoas. Diz: “os homens dançaram todos os momentos solenes de sua existência: a guerra e a paz, o casamento e os funerais, a semeadura e a colheita”. Daí a afirmação de que “a dança é então um modo total de viver o mundo: é a um só tempo, conhecimento, arte e religião.”

Ele ainda diz: “desde a origem das sociedades, é pelas danças e pelos cantos que o homem se afirma como membro de uma comunidade que o transcende.” E sobre a transcendência, ele afirma:

Mas toda a experiência vital ou todo ato especificamente humano que transcende o conhecimento ou as práticas quotidianas exige, para expressar- se, que essa linguagem seja transcendida: é o que dizem a dança, a música, a pintura e a poesia, por meio de uma arte cuja tarefa, dizia Paul Klee, é tornar visível o invisível”. (GARAUDY, 1980, p.22).

Por meio do corpo o homem usufrui da beleza da dança; ele se mostra e pode ser visto. É a “presença do espírito na carne”. Dançar a vida é tomar consciência de que o universo é uma dança, é sentir-se penetrado e fecundo pelo ritmo do todo. Dançar a vida é se apresentar com um corpo, com gestos corporais se comunicando com os seres no mundo. É perceber a dimensão dos relacionamentos humanos como se percebe a arte. Como um estado de contentamento que como a arte, envolve sentimentos e percepções que são capazes de encantar e de mudar perspectivas e visões de mundo.

É nesse sentido de gesto corporal que Merleau-Ponty (1945/1994) usa o gesto para esclarecer a comunicação pela palavra, pois é no corpo que temos a capacidade de nos expressar. “Todavia, o sentido do gesto não é percebido do mesmo modo que, por exemplo, a cor do tapete. Se ele me fosse dado como uma coisa, não se vê por que minha compreensão dos gestos se limitaria, na maior parte das vezes, aos gestos humanos”, (p. 251).

Pensando no universo infantil e na prática das professoras, a compreensão dos gestos deveria ser vivenciada e percebida com total inteireza, principalmente quando se refere ao trabalho com as crianças da creche que utilizam, sobretudo, os gestos e expressões para se comunicar com o adulto.

Como afirmam Furlan e Bocchi (2003):

Merleau-Ponty, por sua vez, recorre à expressão emocional dos gestos para encontrar aí os primeiros indícios da linguagem como um fenômeno autêntico, mas evitando o risco do reducionismo como ocorre na concepção naturalista, pois tanto a fala como o gesto são fenômenos específicos e contingentes em relação à organização corporal. Ou seja, "aproximando a linguagem das expressões emocionais, não se compromete aquilo que ela tem de específico, se é verdade que já a emoção (...) é contingente em relação aos dispositivos mecânicos contidos em nosso corpo..." (MERLEAU-PONTY, 1945/1994, p. 256).

Na relação entre educador e educando, os gestos e expressões das crianças comunicam a ambos uma relação de troca, mas, devido à experiência do educador, esses gestos podem ser compreendidos. Contudo, muitas vezes, por meio dos relatos das alunas estagiárias, parece que as professoras estão distantes, não se encontram em sua totalidade e por isso não conseguem captar tais sentidos e muito menos compreender os gestos comunicados pelas crianças.

Os professores estão insatisfeitos e acabam “maltratando” a criança. Acabam ignorando a criança, não escutam a criança. Quando você vem para a universidade, é um mundo. Eles [os professores] passam para você: é isso e você tem que fazer isso [escutar a criança], e isso e isso, mas quando chega à

prática é totalmente diferente. Você vê muita coisa errada e tem que olhar para aquilo e fazer assim, ó! (fez cara de desentendida) e você tem que engolir aquilo. (A2, CC). (CARVALHO, 2014, p. 70).

A indignação da aluna é evidente por encontrar professoras de educação infantil desconectadas do mundo em que estão inseridas, desconectadas das crianças e das suas singularidades, desconectadas do seu próprio corpo. Ainda, segundo Furlan e Bocchi (2003, p.448) sobre Merleau-Ponty:

O sentido dos gestos não é dado, mas compreendido, quer dizer, retomado por um ato do espectador. Toda dificuldade é conceber bem esse ato e não confundi-lo com uma operação do conhecimento. Obtém-se a comunicação ou a compreensão dos gestos pela reciprocidade entre minhas intenções e os gestos do outro, entre meus gestos e intenções legíveis na conduta do outro. Tudo se passa como se a intenção do outro habitasse meu corpo ou como se minhas intenções habitassem o seu. (MERLEAU-PONTY, 1945/1994, p. 251).

As Diretrizes educacionais pedagógicas para educação infantil apontam que os movimentos, gestos e expressões das crianças, primeiro com movimentos impulsivos e depois controlados devem ser interpretados pelos adultos que cercam as crianças; assim se estabelece uma relação de comunicação. É por meio do olhar, dos gestos faciais, dos sorrisos e dos contatos corporais que se estabelece o contato com o outro. Assim, podemos perceber que a criança encontra no professor a possibilidade de estabelecer uma parceria e a troca de suas intenções. Conforme Furlan e Bocchi (2003, p.449, citando Merleau-Ponty: “A comunicação realiza-se quando há confirmação do outro por mim e de mim pelo outro".

Portanto, enquanto professores, precisamos compreender o caráter corpóreo e os comportamentos das nossas crianças, vivenciados na dimensão do social, do âmbito relacional, compreendendo que a linguagem está relacionada ao movimento expressivo e, neste fenômeno expressivo, é possível ter a abertura de nós mesmos com o mundo e com tudo aquilo que nos cerca.

O corpo é a expressão de uma conduta e, ao mesmo tempo, criador de seu sentido a partir de uma intenção que se esboça e reclama a sua complementação. Antes da expressão, há apenas uma ausência determinada que o gesto ou a linguagem procura preencher e completar. (FURLAN; BOCCHI, 2003, p. 449).

Por meio desses gestos e movimentos corporais, dançamos a vida enquanto nos comunicamos com os seres no mundo, vivendo numa dimensão de relacionamentos humanos,

como se vive e se percebe a arte: num estado de contentamento que, como a arte, envolve sentimentos e percepções que são capazes de encantar e de mudar perspectivas e visões de mundo. Por isso, entendemos que se faz necessária uma formação específica para as professoras que vão trabalhar com as crianças pequenas, uma formação sensível, capaz de perceber e considerar as suas necessidades individuais, uma formação que desperte esse olhar na tentativa de compreender o que a criança expressa por meio do seu corpo, seus gestos, seus olhares, seu choro...