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2 ESPACIALIDADE, MOBILIDADE E COMUNICAÇÃO EM REDE

2.4 GEORREFERÊNCIA, ESPACIALIDADE E DISPOSITIVOS MÓVEIS

O que discutimos, até aqui, encontra-se num patamar de concepções sociais – como percebemos, como utilizamos, como negociamos o uso de tais tecnologias. Há, contudo, sempre uma necessidade de esclarecer os limites dos fenômenos e dos termos técnicos utilizados. Finalizamos esse capítulo, portanto, apresentando alguns aspectos definidores das tecnologias e práticas das quais estamos falando. Esta última seção busca cercear e finalizar a

22 Tradução livre de “In Goffman's terms, we might be able to speak of the social experience of using an LMSN [locative mobile social network] application not just as a presentation of self, but as a presentation of

place in everyday life. Following Goffman, to speak of the presentation of place is to suggest a relationship

discussão realizada sobre espacialidade, informações geográficas, dispositivos e redes digitais. A intenção aqui é preparar um fundamento para os demais levantamentos históricos e conceituais apresentados em seções seguintes.

Quando falamos de serviços baseados em localização e localização disposta em rede, falamos de uma integração entre dispositivos eletrônicos, dados digitais e referência geográfica. Essa relação, contudo, não é exatamente uma novidade. Uma das disposições principais desse tipo de relação entre espacialidade e rastros digitais se deu com os SIG – Sistemas de Informação Geográfica – amplamente utilizados, já nos anos 1950, para fins bélicos (CRAMPTON & KRYGIER, 2008; SHEPPARD, 2008; SUI, 2008).

Pelas décadas seguintes, a indústria de serviços de geolocalização esteve concentrada no mercado de softwares voltados tanto ao militarismo quanto ao uso acadêmico – restrito, portanto, a searas profissionais bastante específicas e sem abertura a um público leigo (GORDON & DE SOUZA E SILVA, 2011). O cenário em torno desse tipo de tecnologia transforma-se, contudo, com o lançamento, em 2005, de serviços como Google Maps23 ou Google Earth24, os quais passaram a prover informações geográficas de alta precisão (pelo menos para utilizações não-militares) gratuitamente na Internet e para um público sem formação ou conhecimentos profissionais.

Muitas discussões já foram realizadas em torno desse tipo de aplicação, especialmente no campo da Geografia, e várias nomenclaturas já foram dadas a esse fenômeno: Neogeography (TURNER, 2006), Geospatial Web (CRAMPTON, 2010) e Web Mapping 2.0 (HAKLAY, SINGLETON & PARKER, 2008) são alguns dos termos elaborados e difundidos no intuito de descrever o encontro entre dados geográficos, Internet e ferramentas de mapeamento digitais. Em geral, essas abordagens estão mais centradas nas aplicações geográficas (como mapeamento ou sensoriamento remoto) e conferem pouca atenção às apropriações culturais em torno dessas tecnologias. Vale frisar ainda que boa parte dessas nomenclaturas propostas se deram num contexto em que o acesso móvel à Internet ainda se encontrava em seus primórdios, descrevendo, em geral, um uso centrado no desktop, não em celulares ou tablets. É necessário ressaltar, portanto, que a ideia de sensibilidade locativa ainda não estava em pauta quando da cunhagem de tais conceitos.

A fim de compreendermos a apropriação das pessoas quanto a sensibilidade locativa de seus dispositivos móveis, é necessário que tenhamos em mente como funcionam as 23 Disponível em <http://maps.google.com/>.

tecnologias que permitem esse tipo de uso, ainda que sem grandes detalhamentos técnicos. Em linhas gerais, a sensibilidade à localização pode se dar de três maneiras: por triangulação dos aparelhos celulares, por meio do uso do GPS e/ou por meio de redes Wi-Fi (GORDON & DE SOUZA E SILVA, 2011, p. 41). Vejamos brevemente cada uma delas:

(1) A triangulação pelo celular atua por meio de ondas de rádio, correlacionando o aparelho em relação a torres de transmissão das operadoras de telefonia celular: o aparelho se comunica com as torres e cria zonas de abrangência; quando essas áreas, referentes a duas ou três antenas, coincidem, criam uma zona interseção, a qual corresponde à localização aproximada do dispositivo. Ainda que não seja de grande acurácia, essa, em geral, é uma obrigatoriedade legal dada à virtual necessidade de chamadas de emergência.

(2) O Global Positioning System – GPS existe desde o início dos anos 1960, mas só por volta dos anos 2000 esse sistema se tornou popular – sendo, antes disso, restrito a utilizações militares e governamentais. O primeiro celular com GPS embutido foi anunciado em março de 2003 pela empresa japonesa NTT DOCOMO (GORDON & DE SOUZA E SILVA, 2011, p. 42), dando recursos aos usuários para encontrar direções e realizar buscas de pontos próximos à sua localização. A popularização nos EUA, por outro lado, se deu apenas em 2008, com o lançamento do iPhone 3G e do sistema operacional Android. Essa técnica possui alto grau de precisão, mas costuma não funcionar muito bem em ambientes fechados.

(3) O uso de redes Wi-Fi se dá no sentido de ampliar ou melhorar as duas formas de localização anteriores – diante, especialmente, da falta de precisão da primeira ou do não- funcionamento do segundo. Atualmente, os dispositivos móveis podem utilizar sistemas híbridos, contando com mais de uma dessas tecnologias atuando simultaneamente, o que pode aumentar a precisão e contextualização25 da localização.

Diferentes aplicações e serviços se utilizam de distintos modelos de requisição de localização. É preciso compreender que, de maneira geral, aplicativos baseados em localização lidam com troca de dados com servidores26 específicos, não apenas com o

25 Consideramos que a contextualização, nesse caso, vai além da mera localização por conseguir mais detalhes significativos que as coordenadas geográficas. Pensemos num prédio comercial de vários andares: ainda que estejam todas num mesmo ponto de latitude e longitude, as diversas salas desse prédio podem representar contextos diferentes de aglutinação social – mesmo que, em linhas gerais, sejam todas elas ambientes de trabalho. Com o uso de redes Wi-Fi e seus devidos dados de identificação técnica, um aplicativo pode, em teoria, “saber” que ali se encontram distintos lugares seccionados por poucos metros de altitude, por exemplo. Essa é uma dimensão de sensibilidade que lida com a localização (eixo cartesiano), a localidade (a construção material, literalmente) e o senso de lugar (os significados das divisões entre as salas).

26 Servidor, nesse caso, é um computador (ou conjunto de computadores) que trocam informações com outras máquinas que requerem acesso a seus dados.

ambiente em si. A figura 1 a seguir demonstra diferentes rotas de distribuição desses dados. Location server é servidor que contém dados georreferenciais; LBS é o serviço ou aplicativo baseado em localização em uso no momento; e user device, em nosso caso, corresponde ao dispositivo móvel (mas pode significar também um computador fixo requerendo algum tipo de acesso a dados georreferenciais).

Além desses modos de funcionamento e acesso a dados, outros termos merecem definições. Em geral, palavras como geolocalização ou georreferência são utilizadas como sinônimas e sem grandes preocupações formais. Outras expressões, como "sensibilidade à localização", "contextualização espacial", geotagging ou location-aware referem-se, genericamente e via de regra, a uma só capacidade ou função: a possibilidade de um aparato técnico efetuar uma leitura geográfica e estabelecer um elo espacial georreferenciado. Ou seja, o dispositivo em questão possui um ou mais métodos de sensibilidade locativa, processa os dados relativos a coordenadas espaciais e apresenta modalidades diversas de fruição e utilização, a depender do aplicativo utilizado.

De modo a esclarecer nossa fala, trazemos uma explicação breve feita por Vicente et al. (2011). No texto em questão, os autores chamam os serviços e redes baseados em localização

Figura 1: Servidores e modelos de troca de dados georreferenciados. (BARNES et al., 2011).

de GeoSN, de “geo-social networks”. Embora o nome seja diferente do que aqui adotamos, o funcionamento é o mesmo: sensibilidade e contextualização espacial e utilização de elos sociais mantidos tecnicamente para o incremento de propósitos gerais. Dependendo da aplicação, os conteúdos produzidos por seus usuários (vídeos ou fotos, por exemplo) podem ser etiquetados com os dados que contêm as coordenadas geográficas (procedimento chamado de geotagging) e ainda correlacionados entre si – o que leva à possibilidade de enriquecimento da experiência das pessoas por meio, por exemplo, de indicações de conteúdos (o aplicativo Instagram realiza essa ação, como veremos mais adiante). O usuário, vale frisar, é um elemento individual inscrito naquela rede, assim como outros indivíduos com os quais ele mantém algum laço. Esse elo (discutido no capítulo a seguir), pode traduzir relações de parentesco, amizade ou simplesmente interesses temáticos em comum, e é utilizado de modo a prover melhores informações e serviços em retorno para aquelas pessoas. Os conteúdos produzidos por estes poderão ser etiquetados com a referência geográfica (coordenadas ou nomes de lugares pré-determinados) e, posteriormente, serão postos em circulação na rede em uso. Tanto os conteúdos produzidos quanto os próprios usuários, a depender das configurações de privacidade estabelecidas, podem ser identificados e correlacionados espacialmente. A figura 2 indica o funcionamento geral desse recurso.

Essa ideia de atribuir metadados a textos, imagens e vídeos é tratada como geolocalização. O prefixo “geo”, nesse caso, não indica tanto uma relação à Terra, mas sim aos seus lugares: a geolocalização é um processo que transforma números, coordenadas e códigos em nomes ou vice-versa, realizada com o auxílio de servidores, sendo caracterizado

Figura 2: Fundamentos técnicos de redes baseadas em localização. (VINCENTE et al., 2011).

como um procedimento automático. Por outro lado, a etiquetagem eletrônica (geotagging) é a adição de informações referentes a localizações em documentos digitais diversos, podendo ser uma ação manual ou automatizada (TURNER, 2006).

De modo deixarmos claras as utilizações de tais termos, evidenciamos aqui nossas intenções: quando falarmos de geolocalização, falaremos dos aspectos e procedimentos gerais que possibilitam atribuir dados georreferenciais a conteúdos digitais, objetos e pessoas. A georreferência de que tratamos nada mais é senão a utilização de etiquetas eletrônicas ou metadados que estabelecem a localização, ainda que aproximada, dessas mesmas pessoas, objetos, conteúdos e dispositivos diversos. Se vistas por um certo preciosismo, as palavras acima representam ideias distintas. Uma vez, contudo, que nosso foco está na utilização das pessoas e na relação que elas podem estabelecer com a tecnologia, trataremos geolocalização e georreferência como termos sinônimos. O mais importante, porém, é termos em mente como essas técnicas operam de modo que sejam a base tecnológica para o funcionamento de redes e serviços baseados em localização.