• Nenhum resultado encontrado

A GEORREFERÊNCIA LIDA COM LEITURAS ESPACIAIS E SITUACIONAIS Nossos dados não mostram como as pessoas fazem leituras espaciais (mesmo porque

Questão 17: Há marcações georreferenciadas que você realiza numa rede social mas não realiza em outra?

6.1.4 A GEORREFERÊNCIA LIDA COM LEITURAS ESPACIAIS E SITUACIONAIS Nossos dados não mostram como as pessoas fazem leituras espaciais (mesmo porque

essa não foi um questionamento direto) mas evidenciam que os utilizadores de recursos georreferenciais em rede as realizam a partir de suas fruições. A busca por lugares aonde ir é tida como uma funcionalidade bastante visada pelos participantes da nossa pesquisa, superando a realização de marcações do tipo check-in. Esse é um indicativo de como redes e serviços baseados em localização amadureceram e ganharam utilidades para além da construção de uma territorialidade personalizada – embora ainda possamos ver essa marca bastante premente, de acordo com as respostas obtidas.

Uma outra forma de ler o espaço se dá no sentido de territorialidade das ocasiões merecedoras de marcações georreferenciadas – em geral, como visto, efetuadas em situações especiais, como viagens e passeios diversos. Essa é uma forma não apenas de deixar registros

de movimentações, mas também de criar relações e construir significados com os próprios elos sociais. Como decorrência, o modo como as pessoas evitam determinados encontros (ocasiões raras) ou como elas se desviam para encontrar amigos (também raras) nos leva a compreender a georreferencialidade em redes sociais digitais como um lastro de conexões sociais – podendo, assim, ajudar na releitura espacial e contextual dos lugares e das relações interindividuais.

Em geral, esses indicativos nos mostram a natureza complexa de consideração sobre o espaço, destituindo-lhe de qualquer caráter frio e cartesiano, ressaltando que a construção de sentidos sobre os lugares passa por um conjunto de ações e leituras que envolvem atores diversos. Embora não tenhamos efetuado uma abordagem neste sentido, buscar enxergar essas ligações entre as pessoas e suas práticas espaciais (para onde vão, com quem vão, quando, como etc.) por meio da localização disposta em rede é uma forma promissora de estudar a construção social dos lugares. Em conjunto, essas respostas trazem à tona o caráter de hibridez do espaço físico com que nos deparamos atualmente, deixando claro que não apenas o usufruímos mas, sobretudo, inscrevemos-lhe significados e o (re)construímos por meio de nossas atuações em rede. Essas atuações, contudo, passam longe de uma dispersão ou dissolução “cibernética”, ao modo como se propunham algumas das primeiras investigações no campo da cultura digital, e cada vez mais dialoga diretamente com a espacialidade e a materialidade física dos lugares, dos objetos e das pessoas. Essas considerações parecem-nos cruciais de serem observadas por quaisquer pesquisadores e desenvolvedores que busquem criar soluções tecnológicas que lidem com a localização como eixo de fruição.

Essa perspectiva também fica salientada no modo como as situações são lidas, sustentadas e postas em tensão, tanto em relação ao espaço físico quanto aos elos em networked publics. A discussão que trouxemos em torno do conceito de situação já mostrava que a definição de fronteiras dos ajuntamentos físicos pensada por Goffman (1999) encontra dificuldades em termos de ambiências de redes sociais digitais. Meyrowitz (1985), ao problematizar essa diluição de fronteiras ocasionada pelos meios de comunicação eletrônicos (nesse caso, especificamente em relação a meios massivos como televisão e rádio), desobriga a co-presença dos interlocutores para a criação e sustentação de situações, o que também antecipa os apuros conceituais com que esse termo se depara ao encontrar os sites de redes sociais. Não está claro se e como as pessoas criam e sustentam situações em ambiências sociotécnicas (tampouco foi objetivo de nossa pesquisa desvelar tal processo), mas nossos

dados mostram que o uso de recursos georreferenciais lida com duas perspectivas concomitantes: por um lado, há a leitura das situações físicas, que implicam em circunstâncias de utilização e disponibilização daquele dado em rede; paralelamente, há a leitura das possíveis repercussões que o dado georreferencial terá em rede, o que diz respeito diretamente às affordances postas em jogo por Boyd (2014). Assim, o conteúdo georreferenciado terá persistência indefinida, será visível a distintas audiências e poderá ser espalhado e buscado diante da maleabilidade e modularidade da informação digital. Consequentemente, diante do esfacelamento das fronteiras, do colapso de contextos e da criação de audiências invisíveis, as situações que têm a ver com certo conteúdo georreferenciado posto em rede são dúbias, não só por esses desafios já salientados como, especialmente, pelo diálogo duplo com a contextualização espacial e informacional.

É possível, assim, propor uma esquematização de como esse processo de interpretação contextual ocorre na prática por meio do Quadro 12 a seguir99. Nesse detalhamento, a pessoa que se encontra diante do ato georreferencial tem três possibilidades principais em mãos: (a) efetuar uma busca locativa; (b) realizar um check-in e dizer a seus amigos onde ela se encontra ou (c) marcar fotografias e vídeos com alguma informação espacial. A primeira ação não tem, a priori, grandes repercussões quanto a redes sociais digitais – embora delas possa se alimentar, como já vimos. Já as duas últimas ações precisam dialogar diretamente com a leitura tanto das situações imediatas (verificando onde a pessoa se encontra, se a ocasião temporal é propícia, se aquela localização é segura etc.) quanto com as situações eletronicamente mediadas e sustentadas (diante do que surgem os desafios de audiência invisível, colapsos contextuais e fronteiras borradas). Ainda que separadas, essas duas dimensões retroalimentam as redes sociais digitais e o networked publics formado pelas conexões ubíquas e generalizadas, enriquecendo o universo de dados e de elos sociotécnicas que possibilitam futuros atos georreferenciados.

99 Está claro, contudo, que este esquema não dá conta de todas as ações humanas possíveis quanto a essa funcionalidade específica, mas, diante do que pudemos observar em nosso estudo, ele serve de descrição geral dessa dinâmica interacional em rede, além de funcionar como base e orientação para futuras observações em maior detalhamento.

Pode-se supor, assim, que a fotografia de uma viagem, espacialmente contextualizada e publicada em rede, leve à criação de uma situação interacional numa ambiência específica (Facebook ou Instagram, por exemplo), que terá suas próprias repercussões (likes, compartilhamentos, comentários etc.) dentro daquele universo (mas que não necessariamente se restringem a ele). Por outro lado, as situações face a face que essas informações em rede podem engendrar são delicadas e lidam com diversas variáveis. As respostas obtidas em nossa pesquisa nos levam à compreensão de que o encontro presencial não é o objetivo principal do uso de recursos georreferenciais e que, por outro lado, as situações interacionais que se dão

preponderantemente em rede são o alvo central de quem faz esse tipo de publicação. À corporeidade individual relega-se, assim, algum grau de intimidade e disponibilidade temporal.

De um modo ou de outro, a suposta “morte” do espaço, relativamente trazida à tona por Meyrowitz (lembremo-nos de que seu livro ganhou o sugestivo título de No sense of place, ou Sem sentido de lugar, em tradução livre) e por muitas outras perspectivas adotadas nos anos 1990 não se concretizaram sobremaneira. Por mais que os meios de comunicação de massa tenham conseguido vencer as constrições do espaço e a dificuldade inerente às distâncias e tenham, igualmente, instaurado uma temporalidade imediata, a espacialidade, o movimento e a parada efêmera em determinados lugares trouxeram outras proposições em termos de comunicação e interação. As respostas que coletamos não negam o uso da localização em rede como uma forma de encontrar lugares ou outras pessoas, mas sublinha fortemente que a adoção da georreferência assume uma proposta de tornar o espaço menos frio, mais familiar e relacional – o que, a posteriori, parece levar à criação de territorialidades pessoais por meio de serviços e redes baseados em localização. Em outras palavras, o espaço é um só, mas ele não é visto, percebido e construído de maneira única.