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No continente europeu, o gerenciamento de risco de cheias não se resume ao estudo da probabilidade de um evento de cheia ocorrer. Na verdade, ele consiste na combinação dos estudos hidrológicos, das modelagens hidrodinâmicas, das avaliações de prejuízos, além de outros estudos, para a obtenção de diversos indicadores ou funções que podem servir como ferramenta para tomada de decisão. Exemplos delas, que são resultados dos estudos hidrológicos, hidráulicos e de prejuízos econômicos, são as curvas de probabilidade x prejuízo. Essas curvas fornecem o prejuízo para um evento que ocorre uma vez a cada n anos. A área sob o gráfico representa o prejuízo esperado total de cheias por ano, para todos os tipos de cheia. Ela permite, portanto, avaliar os benefícios obtidos por diversos projetos, dado o tempo de recorrência usado para o dimensionamento. Essa curva pode ser vista na Figura 3.2.

Nas décadas passadas, os estudos de drenagem urbana eram focados nas avaliações técnicas de métodos de proteção de cheias. Porém, devido à expansão e intensificação

do uso do solo, do crescimento dos prejuízos potenciais em planícies de inundação e do crescimento dos conflitos entre o uso econômico do solo e as políticas de proteção de cheias, os aspectos sócio-econômicos passaram a fazer parte das avaliações de cheias (SCHANZE, 2002 apud MESSNER & MEYER, 2005). Nesse contexto, surgem os métodos de gerenciamento de risco de cheias e as metodologias de análise de risco, que em resumo mostram as áreas que podem sofrer maiores prejuízos devido a enchentes.

A vulnerabilidade é o potencial de prejuízos socio-econômicos e ambientais de uma região, para um evento de cheia (CUTTER, 1996; MITCHELL, 1989). Quanto maior a exposição de uma região a cheias e quanto maior a quantidade de prejuízos possíveis e de ativos expostos, maior a vulnerabilidade dessa região. A vulnerabilidade é expressa, geralmente, através de elementos em risco, de indicadores de exposição e de indicadores de suscetibilidade (MESSNER & MEYER, 2005), conforme mostra a Figura 3.3.

Figura 3.2: Exemplo de curva de probabilidade x prejuízo.

Figura 3.3: Tipos e construção de indicadores de vulnerabilidade.

Fonte: Adaptado de MESSNER & MEYER., 2005.

Os elementos em risco são o grupo de ativos que podem ser prejudicados com a cheia. Eles podem ser sociais, econômicos e ecológicos. Os principais são pessoas, domicílios, firmas, produção econômica, prédios públicos e privados, infraestrutura pública, patrimônio cultural, espécies ecológicas e paisagens. Eles podem ser quantificados monetariamente ou não-monetariamente, constituindo o chamado potencial de prejuízos.

Os indicadores de exposição são aqueles relacionados à exposição e às características da cheia. Os itens que compõem esse indicador podem ser vistos na Figura 3.3.

Os indicadores de suscetibilidade medem a sensibilidade dos elementos em risco e como eles se comportam na ocorrência de uma cheia. Esses indicadores são influenciados por características da região, como materiais de construção utilizados, número de andares dos edifícios, características da formação da cheia e forma como a população e o poder público reagem à cheia. Dentro da reação à cheia, podem ser

incluídas características como a consciência, a preparação, a superação e a recuperação da cheia. Esses itens têm relação com características demográficas e sociais, como educação, idade e gênero da população (BLAIKIE et al., 1994; WATTS/BOHLE, 1993; HEWITT, 1997; SMITH, 2001), e com características administrativas da região, como número de edifícios protegidos por medidas de controle, número de pessoas com seguros contra cheias, número de pessoas preparadas para agir durante as enchentes, qualidade das obras realizadas para o controle do evento e organização dos órgãos gerenciadores da região (GREEN et al., 1994). Dentro dessa categoria, indicadores técnicos de suscetibilidade medem a habilidade de recuperação e a fraqueza da infraestrutura de abastecimento de água, de esgotamento sanitário, de telecomunicações e de energia aos eventos de cheias (GASSER & SNITOFSKY, 1990; PLATT, 1990).

A percepção do risco ao qual uma área está sujeita irá depender do julgamento intuitivo de pessoas e grupos sociais, diante de informações limitadas e diversas incertezas (SLOVIC, 1987). Essa percepção e a tolerância dessas pessoas serão variáveis de acordo com os grupos sociais e com diferentes regiões. Essa subjetividade, então, pode ser manipulada de acordo com iteresses políticos e podem gerar diferentes posturas do poder público. As empresas de consultoria e projetistas podem analisar a vulnerabilidade e o risco de uma região de forma que favoreça a implantação de medidas de controle de seus interesses, seja pelo custo ou pela técnica. Já o poder público pode considerar o valor e a atratividade de planícies de inundação e desconsiderar o elevado risco de cheias a que essa região está submetida. Finalmente, a população em si pode estar disposta a pagar pela solução de problemas de inundação ou considerar as enchentes locais toleráveis e de responsabilidade do governo, e não delas.

Sendo assim, formas de quantificar e avaliar o risco de enchentes, associados à vulnerabilidade e aos prejuízos de cheias, vêm sendo encorajadas na Europa. Um dos objetivos é que a subjetividade da análise seja diminuida através da transparência na divulgação dos conceitos, dos valores, das percepções prevalentes e de debates sobre o tema, de forma que as políticas e as decisões tomadas sejam mais democráticas.

Para exemplificar formas de quantificação e de avaliação de vulnerabilidade e de risco de cheias, alguns estudos nacionais e regionais estão descritos a seguir.

3.3.1 - Caso 1: Avaliação Multi-Critério através de SIG na Alemanha

Em algumas partes da Europa, o risco de uma região em relação a cheias está associado à magnitude desses eventos, ao grau de proteção ou vulnerabilidade da região e aos itens que podem ser perdidos com a enchente. A enchente considerada no estudo irá depender do grau de proteção desejado pela comunidade e pelo poder público. Já as perdas e a vulnerabilidade medidas da região irão depender do que a população e o governo consideram como fatores de risco e quais são os prejuízos a serem considerados. Para isso, diversos critérios subjetivos podem ser usados. Com tudo isso, serão propostas e executadas as medidas de controle julgadas prioritárias.

Porém, existem muitas carências na avaliação de riscos de cheias, na maior parte do continente. Entre elas, podem ser destacadas a falta de definição de uma fórmula que considere critérios ambientais conjuntamente com os sociais e econômicos, a má precisão das distribuições espaciais de riscos e benefícios de medidas e a não consideração de incertezas (MEYER, 2007).

Para melhorar, então, as avaliações já existentes e para corrigir as falhas realizadas em outras, podem ser feitas avaliações multi-critério em combinação com o geoprocessamento através dos Sistemas de Informações Geográficas (GIS ou SIG) (MALCZEWSKI, 1999 e 2006). As análises multi-critério permitem que diversos critérios de avaliação sejam ponderados e unidos para constituir um indicador que permita a tomada de decisão. Alguns critérios usados em algumas publicações estão na Tabela 3.2. Já o geoprocessamento por SIG permite a reunião de uma grande quantidade de informações espaciais e a compilação delas em mapas, reduzindo tempos de elaboração e melhorando qualidade de trabalhos. A união dessas ferramentas é mencionada por MEYER (2007) para o atendimento à “Directive on Assessment and Management of Flood Risk” (EU 2006/C311 E/02), artigo 6, que recomenda a avaliação de riscos de cheias e o mapeamento de riscos sociais, econômicos e ambientais de cheias nos países da União Europeia.

Tabela 3.2: Critérios usados em análises de riscos realizadas em algumas publicações (adaptada de MEYER, 2007).

Publicação Critério Usado

RPA, 2004

Econômico: posses, uso do solo, transporte e

desenvolvimento de negócios. Ambiental: habitats físicos, qualidade e quantidade de água, processos naturais, ambiente histórico, paisagem. Social: recreação, segurança, saúde, disponibilidade de serviços, equidade, senso comunitário. Custos.

PENNING-ROWSELL et al., 2003

Risco para a vida; modo de falha; confiabilidade; impactos sócio-econômico local, ambientais positivos e ambientais negativos; perdas por cheias; outros benefícios; custos; manutenção; razão benefício-custo.

BROUWER & VAN EK, 2004

Ambiental: conservação da natureza. Econômico: custos (mudança de uso do solo,

pagamentos compensatórios agrícolas, proteção de infraestrutura, operação e manutenção). Benefícios (prejuízos evitados, recreacionais). Social: cartão qualitativo de pontos (impacto em funções, percepção de mudança de paisagem, percepção de risco, esforços de comunicação, possibilidades de participação).

BANA E COSTA et al., 2004

Ambiental: água (5), solo (2), fauna e flora (1), paisagem (2). Social: percepção de risco, efeitos na fábrica social, saúde pública. Técnico: complexidade de intervenção e manutenção e nível de proteção.

OLFERT, 2006

Efeitos hidrológicos e hidráulicos, critérios ecológicos, água (biológicos, hidromorfológicos, químicos), social (saúde, estabilidade, cultural, herança natural), econômico (prejuízo médio anual, custos diretos e indiretos).

DE BRUIJN, 2005

Pessoas (afetadas e casualidades), econômico (prejuízo médio anual, custos e oportunidades), ambiental

(mudança na área natural, paisagem), flexibilidade, robustez.

AKTER & SIMONOVIC, 2005

Social: envolvimento comunitário (participação, liderança, etc.) e montante de perdas sociais (econômicas, saúde, estresse, segurança e controle).

TKACH & SIMONOVIC, 1997 Profundidade de cheias, prejuízo a prédios, benefícios de

inundar áreas áreas a montante.

Sobre esse tipo de análise, unindo avaliação multi-critério à sistemas de informações geográficas, existe um estudo piloto, realizado no rio Mulde, na Saxônia, Alemanha, disponível em MEYER (2007). Nesse estudo, tentou-se identificar áreas com alto risco agregado.

O objetivo do estudo foi analisar a distribuição dos riscos econômicos, ecológicos e sociais imediatamente após uma cheia, identificando áreas que necessitam de gerenciamento e de medidas de proteção. Através do estudo, também é possível identificar o impacto das medidas sobre os critérios e sobre o mapa de risco.

Os critérios escolhidos foram os econômicos, sociais e ambientais. Os econômicos se resumem ao prejuízo médio anual. Os sociais são a população afetada média anual e a probabilidade de pontos sociais importantes, como hospitais e escolas, serem afetados. Os critérios ambientais foram a erosão potencial de material, o acúmulo potencial de material e a inundação de biótopos oligotróficos. Eles foram escolhidos pela sua importância para a região e para manter a formulação simples e aplicável.

A base para a avaliação foi a Equação 3.1, descrita a seguir (GOULDBY & SAMUELS, 2005):

Risco = Probabilidade x Consequência Negativa (3.1)

A probabilidade da fórmula é determinada por curvas de probabilidade x prejuízo. As consequências negativas foram determinadas por critérios monetários e quantitativos, dependendo da variável. Já as inundações foram caracterizadas através de modelo hidrodinâmico.

Foram feitas, no estudo, ponderações e escolhas de pesos para cada item de cada critério. E, para cada critério e cada peso, foram feitas análises de sensibilidade para a verificação da importância da variação de cada um sobre a variação do resultado geral.

Através do estudo foi possível incluir riscos monetários e não-monetários em um indicador, verificar a distribuição espacial do risco da cheia e lidar com as incertezas do estudo através das ponderações e das análises de sensibilidade.

3.3.2 - Caso 2: Risco e Vulnerabilidade Social na Região Alpina Italiana

As abordagens baseadas em comunidades têm o objetivo de avaliar, como forma de mitigação de cheias, a capacidade da população responder com rapidez e efetividade aos impactos desses eventos. Para isso, diversas características da população, além dos seus preparo e assimilação do problema, são avaliados. A opinião e a visão das pessoas sobre a forma de lidar com o gerenciamento de risco de cheias também é levantada, sendo obtido um parâmetro diferente do técnico. Esses itens podem influenciar índices baseados em prejuízos e perdas de cheias, quando esses indicadores forem usados em contextos culturais e sociais diferentes (DE MARCHI, 2007).

Segundo WEICHSELGARTNER (2001), a vulnerabilidade social pode ser abordada em três diferentes categorias, que são como exposição ao risco, como resposta social e como vulnerabilidade de lugares.

Já segundo BLAIKIE et al. (1994), a vulnerabilidade representa a característica de pessoas em termos de capacidade de antecipar, assimilar, resistir e se recuperar de impactos de desastres naturais.

Ainda sobre a abordagem social de avaliações de cheias, vale destacar o significado do capital social e das redes sociais (BOURDIEU, 1986), o conhecimento local da população e a construção do risco.

O capital social seria as fontes dos indivíduos e seus recursos. Já as redes sociais são as relações formais e informais entre indivíduos e estuturas sociais. Devido a esses

recursos e a essas relações, assume-se que o conhecimento local da população é um recurso possível de ser usado para mitigação de impactos de desastres.

A construção de risco é um conceito que busca a substituição da percepção de risco. Isso porque a avaliação de risco não é objetiva, nem pré-determinada, nem uma simples questão cognitiva individual. Os indicadores e parâmetros precisam ser construídos a partir do cruzamento de informações.

Para a aplicação desses conceitos, existe estudo para as regiões de Bocenago, Romagnano, Roverè della Luna, Vermiglio e Vipiteno/Sterzing, na Itália (DE MARCHI, 2007). Elas foram escolhidas por sofrerem os principais processos de cheias, com chuvas torrenciais e processos fluviais.

Foram usados, no estudo, dados do censo para a caracterização da população das regiões e para a escolha dos grupos a serem pesquisados. Os grupos de interesse escolhidos foram entrevistados, em entrevistas semi-estruturadas, com questionários padronizados para manter o tratamento estatístico adequado. Esses grupos de interesse e os stakeholders foram escolhidos de acordo com as relações entre eles e para verificar o posicionamento de diferentes partes diante das cheias. Por motivos técnicos e metodológicos, não foram usadas amostras aleatórias. Assim, foram incluídas pessoas com alguma experiência e conhecimento e foram aproveitadas informações importantes na pesquisa, com o uso de pessoas situadas em áreas com alto risco de cheias. Os dados coletados foram tratados com métodos de tabulação cruzada e de comparação de médias.

As principais variáveis sociais adotadas para a análise da vulnerabilidade e do risco social foram tipos de casa, classes econômicas, gêneros, idade, qualificação educacional, características sócio-demográficas, deslocamentos entre residência e trabalho, ocupação, renda, número de dependentes, possibilidades de evacuação e níveis de preparo, consciência e confiança, entre outros.

Os principais objetivos das pesquisas nessas regiões da Itália foram entender como encorajar o preparo e a conscientização, reduzir a vulnerabilidade e explorar as fraquezas e forças de comunidades expostas ao risco de cheias.

Os elementos de vulnerabilidade identificados nas entrevistas podem ser divididos em elementos de vulnerabilidade individual, comunitária e institucional. Os elementos de vulnerabilidade individual são a subestimação do risco, o excesso de confiança nas medidas de proteção e a cultura da auto-proteção. Os elementos de vulnerabilidade comunitária são o excesso de confiança e eficiência de serviços públicos e a tendência de perda de conhecimento local entre gerações. Os elementos institucionais são a dificuldade de coordenação de serviços, a dificuldade de comunicação de emergências, as disputas entre níveis de segurança x busca por desenvolvimento econômico e as discussões sobre a prevenção de riscos e a compensação de prejuízos.