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O Rio Grande do Sul sob o comando de Flores da Cunha e o Brasil pós “Revolução” de 1930

2. A POLÍTICA GAÚCHA NA INTERVENTORIA FLORES DA CUNHA:

2.2 DERRUBAR O PAULISTA, E DEPOIS O GAÚCHO: AS CAMPANHAS ARMADAS E A

2.2.1 O Rio Grande do Sul sob o comando de Flores da Cunha e o Brasil pós “Revolução” de 1930

A nomeação de Flores da Cunha, apesar de não abalar a unificação da política rio- grandense, não foi consensual por parte dos libertadores. Recorrendo aos relatos de Mem de Sá, percebemos certa frieza do correligionário libertador em relação ao nome do então interventor. Essa rejeição também se explica pelo alijamento das instâncias de poder que o PL sofreu, já que, como partícipes do movimento revolucionário, esperavam receber alguma parcela de poder. Nos dizeres de Mem de Sá, os libertadores deveriam ocupar de uma a duas pastas no secretariado. Entretanto, Flores da Cunha nomeou um libertador que “não contava com a simpatia dos correligionários, não obstante a tradição maragata de sua família. E, sem rebuliços, dizia aos íntimos e conhecidos: antes que ‘eles’ me indiquem um ‘venta-rasgada’, escolho eu um homem de minha feição”54, segundo as memórias deste libertador.

Quase imediatamente, diversas insatisfações surgiram por parte da FUG, muito ligadas ao processo de crescente centralização política e administrativa. Isso se explica, se levarmos em conta que a estrutura da Primeira República foi marcada pela descentralização política e administrativa perante a União, com acentuada autonomia regional acoplada ao

53 FONTOURA, João Neves da. Memórias: A Aliança Liberal e a Revolução de 1930. Porto Alegre: Editora do

Globo, 1963, p. 469-477. Afirmações semelhantes sobre a ocupação de cargo no governo e seu rompimento com Vargas se encontram em um livro mais antigo de João Neves, Accuso! Rio de Janeiro: [s. n.], 1933, p. 8 e p. 14.

fortalecimento do poder oligárquico dos estados. Conforme Ruben Oliven, a partir de 1930 se acentua uma crescente centralização, em diversos níveis, que era gestada já nas primeiras décadas do século. Mas, a partir da “Revolução”, passou a ter uma dimensão mais ampla. Nesse período, Oliven identifica que “um aparelho de Estado mais centralizado é criado e que o poder se desloca crescentemente do âmbito regional para o nacional”. Segundo o autor, pelo viés econômico, o Estado abole impostos interestaduais e passa a intervir mais na economia, fazendo com que parte do excedente criado pelas oligarquias agrárias fosse usada para políticas de industrialização; no plano social, ocorre o surgimento do Ministério do Trabalho e de uma legislação social, além da criação do Ministério da Educação, com o papel de influir na formação da nacionalidade.55

Do ponto de vista político, podemos afirmar que a partir de 1930 ocorreu o vagaroso deslocamento de poder de uma antiga classe para novos segmentos emergentes. De acordo com Aspásia Camargo, houve uma renovação da elite partidária56, concatenada em três eixos: 1. Brusco ou gradual alijamento dos processos oligárquicos característicos da Primeira República. 2. Deslocamento, do segundo para o primeiro plano, das gerações políticas mais novas, até então bloqueadas pelas tradicionais lideranças regionais. 3. Incorporação da jovem oficialidade tenentista nos quadros de direção política, dando origem a uma nova classe política. Essa insatisfação no período 1930-1937 fez parte de um processo mais amplo, pois, ainda segundo Camargo, essa fase pode ser chamada como de confronto, marcado por alianças e conflitos entre os segmentos que tomam o poder.57

Já a politóloga Maria Campelo de Souza menciona que a ordem centralizadora “ocorreu de maneira gradual mediante a montagem de mecanismos jurídico-institucionais e políticos destinados a viabilizar o controle do poder central sobre as esferas da economia”. Esses mecanismos, que, segundo ela, já iniciaram na década de 1920, “tomaram forma como uma engrenagem de controle político à distância sobre as estruturas políticas regionais preexistentes, subordinando-as ao mesmo tempo em que as deixavam à solta na esfera do controle social”, sendo esse processo de desmantelamento inserido nos limites de uma

55 OLIVEN, op. cit., p. 39.

56 “Elite partidária” é definida por esse trabalho à semelhança daquilo que Serge Berstein, op. cit., p. 83, definiu

acerca de quem detém o poder em um partido político. Pois esse autor explicita que supostamente o poder pertence ao conjunto de membros que designam seus chefes. Entretanto, a simples existência de um partido mostra as distorções disso, pois, com sua organização estruturada, secreta uma oligarquia de dirigentes profissionais que se tornam quase inamovíveis, representam o partido aos olhos da opinião pública e parecem dirigir a agremiação sem restrições. O surgimento dessa oligarquia, para Berstein, é inevitável em um partido político.

57 CAMARGO, Aspásia. A Revolução das elites: clivagens regionais e centralização política. In: SIMPÓSIO

modernização conservadora, que abarcou, entre outros pontos, o controle técnico-burocrático sobre a economia e o fortalecimento do poder militar central. Para a autora, é na década de 1930 “que as tensões existentes na relação centro/estados vêm à tona com maior violência”.58 Essa questão centralista versus federalista vai estar presente em diferentes vieses e momentos na política nacional e gaúcha, até o golpe de 1937, explicando parte da efervescência política do período.

Nesse sentido, a assertiva de Eliane Colussi é bastante significativa sobre esse processo de transição no Rio Grande do Sul. Ela afirmou que, passada a euforia, no Rio Grande do Sul surgiu um clima de frustração em relação às políticas adotadas pelo governo getulista, e que atingiram a frente política gaúcha que sustentava a candidatura Vargas e o movimento revolucionário. Isso reacendeu, “nos primeiros anos pós-1930, as antigas divergências da tradicional bipolarização partidária no estado”.59

Efetivamente, já em dezembro de 1930 os libertadores davam sinais de insatisfação, mostrando que a aliança com Vargas seria mais efêmera do que parecia. Em um primeiro momento, já criticaram, publicamente, Aranha e Vargas pela proximidade com os tenentes e pela ausência de um posicionamento mais claro sobre a questão da constitucionalização, através do seu jornal O Estado do Rio Grande.60

Também em articulações particulares isso fica claro. Em missiva enviada a Assis Brasil por Raul Pilla, este alertou aquele sobre o “militarismo fascista” que estaria tomando o governo federal. Acusou o assentimento de Oswaldo Aranha, que, junto com Juarez Távora e João Alberto, estaria formando um “fascismo brasileiro, em que o grande presidente Getúlio iria representar o ridículo papel de Victório Manuel III”61, em alusão às legiões revolucionárias62 que começaram a surgir em novembro de 1930. Após receber de Borges de

58 SOUZA, Maria do Carmo Campello. Federalismo no Brasil: aspectos político-institucionais (1930-1964).

Revista Brasileira de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 21, nº 16, junho 2006, p. 9 et seq.

59 COLUSSI, Eliane Lucia. Estado Novo e municipalismo gaúcho. Passo Fundo: Ediupf, 1996, p. 55. 60 O Estado do Rio Grande, Porto Alegre, MCSHJC, 26.11.1930.

61 AAB, 03.12.1930. In: TRINDADE, Hélgio. (org.). Revolução de 30: Partidos e Imprensa Partidária no RS

(1928-1937). Porto Alegre: L&PM Editora, 1980.

62 As legiões revolucionárias surgidas no país seriam uma expressão do movimento tenentista da década de

1920. O grupo não era homogêneo, havendo divergências em relação à política econômica, constitucionalização, nacionalismo e fortalecimento do governo central. Havia dois perfis nesse período: os tenentes políticos, mais identificados com o perfil descrito acima, e os tenentes profissionais, que advogavam o afastamento da classe na política. A divergência entre ambos chegou ao auge quando as promoções favoreciam o primeiro grupo (picolés,

formados muito rápidos e se mostrado frios com a adesão dos tenentes profissionais ao governo provisório) em

detrimento do segundo (rabanetes, revolucionários por fora, mas brancos por dentro), que redunda na demissão do ministro da guerra e na punição aos rabanetes, pelos protestos em função do preterimento nas promoções. Cf. VIVIANI, Fabrícia Carla. Anos 30: Mesmo momento, diferentes projetos. Um projeto da direita tenentista para o Brasil. Anais do XVIII Encontro Regional de História – O Historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/ Assis, 24 a 28 de julho de 2006. CD-ROM; PANDOLFI, Dulce Chaves. Os anos 1930: as incertezas do regime.

Medeiros uma proposta de continuidade da FUG, Pilla poria em dúvida essa hipótese, usando como justificativa o argumento de que as forças civis estavam fragilizadas naquele momento. Essa visão é um contraponto àquilo que defendia Oswaldo Aranha. Este ressaltava o papel das legiões para preservar o caráter civil, tendo em vista que ele era um dos seus ideólogos, ainda durante a fase conspiratória contra Washington Luiz.63

As resistências da FUG contra as organizações tenentistas malogram sua criação no Rio Grande do Sul, assim como em São Paulo, onde são mais nítidas as divergências entre os grupos políticos civis e os tenentes.64

O que mais levantava a repulsa de Raul Pilla era que, em sua visão, a nação estava se militarizando, por isso se opunha às legiões, e defendia a constitucionalização imediata. Pilla já vinha defendendo antes da derrubada de Washington Luiz um governo transitório comandado por uma Junta Militar, que convocasse eleições em quatro meses, ou que Getúlio governasse com o compromisso de convocar a constituinte em seis meses.65 A concepção das legiões era diferente em Aranha, que as via com simpatia, e de Flores da Cunha, que tinha uma atitude neutra em relação às mesmas.