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O modus vivendi: uma análise sobre a assinatura do pacto, o funcionamento durante os primeiros meses

3. A POLÍTICA RIO-GRANDENSE ENTRE FÓRMULAS E DISSIDÊNCIAS

3.2 O ACORDO DE 17 DE JANEIRO: A NOVA PEÇA NO JOGO

3.2.1 O modus vivendi: uma análise sobre a assinatura do pacto, o funcionamento durante os primeiros meses

nacional

Quando o acordo foi assinado, “durante a emocionante cerimônia pública no Legislativo rio-grandense, Flores e Borges, depois de um período de mais de três anos de relações pessoais rompidas, abraçaram-se em prantos”.300 FUG e PRL, na solenidade ocorrida na Assembleia Legislativa, assinam um pacto denominado de modus vivendi, em 17 de janeiro. O acordo previa, em primeiro tópico, que os partidos teriam “completa autonomia e liberdade de ação política em tudo que não contrarie o disposto” no documento. Inicialmente, a deliberação já indicava que não havia acordos de ordem política, mantendo tanto FUG quanto PRL sua independência. O segundo tópico tratava de um projeto de lei que seria enviado para a Assembleia Legislativa. Este, com oito artigos, que preconizavam, dentre outras assertivas, que os secretários ocupariam a posição de auxiliares diretos do governador, se reuniriam uma vez ou mais por semana, e lavrariam uma ata das reuniões. Assentava, no

298 ABREU, L. A., op. cit.; ELÍBIO JR., op. cit. 299 ABREU, L. A., op. cit., p. 118-119.

secretariado, a implantação de um presidente, que auxiliaria Flores da Cunha na sua organização, e coordenaria a atividade administrativa das secretarias, fiscalizando a execução do orçamento. Dava ao Legislativo estadual o direito de convocar qualquer secretário para prestar aos deputados informações sobre questões previamente determinadas, sendo a ausência sem justificativa considerada crime de responsabilidade. Por fim, o secretariado, depois de constituído, apresentaria seu programa de governo.301

Já os partidos envolvidos concordavam em assinar um acordo com onze cláusulas, que estabelecia a luta em conjunto pela estabilidade das instituições, tendo em vista o levante comunista de novembro, na capital e no norte do país. Assegurava também a readmissão dos funcionários afastados ou transferidos por motivos políticos, contando o tempo de afastamento como antiguidade. Para isso, seria constituída uma comissão, formada por dois representantes frenteunistas e dois republicanos liberais, sob a presidência de um desempatador. A polícia seria reformada, criando o policiamento de carreira, com a vedação de critérios partidários para ocupar o cargo. O chefe de polícia seria escolhido entre o governador e o presidente do secretariado.302

Já as autoridades policiais nos municípios em que a FUG havia vencido seriam nomeadas pelo prefeito. Na cláusula quarta, havia a previsão de apurar responsabilidades de funcionários que exercessem pressões partidárias sobre quaisquer cidadãos, por uma junta composta por membros da FUG e do PRL. Além disso, se efetuaria, com policiais considerados isentos, inquéritos com referência a fatos criminosos de natureza política cometidos no último pleito municipal; seriam criados concursos para promoção e admissão de funcionários, e haveria a garantia de direitos de imprensa, reunião, associação e propaganda. Destacando-se aqui que as únicas propostas sem caráter partidário previam suprimir os entraves fiscais que impedissem a circulação de riquezas, e privilégios à livre concorrência, a desenvolver as vias de comunicação, e a preservar o equilíbrio orçamentário. Por fim, o acordo finalizava condicionando o presidente do secretariado a contatar a FUG para designar o nome de seus representantes para fazer parte do governo, sendo estes mantidos apenas enquanto os partidos os confiassem nos cargos.303

301 Correio do Povo, Porto Alegre, MCSHJC, 18.01.1936. 302 Idem. O documento, na íntegra, pode ser visto no anexo IV.

303 Idem. A Lei do Secretariado, nº 566, seria promulgada em 1º de fevereiro de 1936. O presidente do

secretariado, que, conforme o artigo 3º, seria nomeado pelo governador, recaiu em Darcy Azambuja, que acumularia essa função junto à de Secretário do Interior. Sua escolha foi promulgada com a lei nº 6159, da mesma data que a lei anterior. Correio do Povo, Porto Alegre, MCSHJC, 02.02.1936.

Cordeiro de Farias, Getúlio Vargas e Loureiro da Silva, já no Estado Novo. Sem data. CPDOC

Darcy Azambuja (1º), Lindolfo Collor (2º), Borges de Medeiros, (3º) e Flores da Cunha (4º), no momento da assinatura do modus vivendi. 1936. Correio do Povo/MCSHJC

Reunião da FUG. E/D, Lindolfo Collor (7º), João Neves (9º) e Batista Lusardo (10º). Sentados, Borges de Medeiros (3º), Raul Pilla (4º) e Maurício Cardoso (5º). Sem data. CPDOC

Palácio do governo estadual na década de 1930. ClicRBS

A campanha sucessória de 1937. Charge de J. Carlos. 1937. CPDOC

Vemos, nas disposições do modus vivendi, semelhanças com as ideias de Paim, naquilo que tange ao conselho de secretário de estado e em sua reunião semanal; na garantia de duas pastas para a oposição; na elaboração de um programa a ser apresentado na Assembleia Legislativa; na responsabilidade dos secretários; na manutenção do direito de voto do governador e na demissão do secretário que discordasse do chefe do executivo estadual. Não queremos dizer que as ideias de Paim foram pioneiras, afinal, algumas dessas propostas já estavam presentes nas primeiras propostas da FUG, não sendo originárias do político do PRR. Queremos salientar que houve permanência e adaptação de determinadas pautas entre as duas fórmulas debatidas até o pacto definitivo.

Aprovado como projeto de lei simples, a implantação da chefia do secretariado não implicou em uma reforma constitucional. As duas vagas que a oposição ocuparia no executivo seriam as secretarias da fazenda e da agricultura, que possuíam bastante relevância na administração estadual. Dentro da lógica de composição da FUG, cada pasta iria ser controlada por um dos dois partidos. Pelo PL, a indicação inicial foi para Walter Jobim assumir a secretaria da agricultura, mas Flores da Cunha apelaria para Raul Pilla tomar parte nesta pasta, fazendo com que seu pedido de meses atrás agora fosse concretizado. Mas, para isso, Pilla exigiu que Lindolfo Collor assumisse a vaga republicana, que, por sinal, já havia sido convidado por Flores da Cunha. Dependendo da aprovação do PRR, e recusando inicialmente o convite, o ex-ministro do trabalho voltou atrás, e aceitou a incumbência de ser o secretário da fazenda.304 Tomariam posse, junto com os outros novos secretários, em 3 de fevereiro. O presidente do secretariado, conforme previsto pelo acordo, seria Darcy Azambuja, secretário do interior. Outrossim, desde a primeira reunião, pelo menos três eixos do pacto norteariam a preocupação do secretariado: a execução do orçamento, a criação da polícia de carreira e a readmissão dos funcionários, estas duas últimas tinham sido uma preocupação constante.

Já vimos como o acordo foi elaborado no papel – mas como funcionou na prática? Na verdade, ao menos de janeiro até maio, podemos dizer que funcionou sem maiores problemas. Contudo, deve ficar claro ao leitor que seu funcionamento sem cisões foi brevíssimo, de apenas cinco meses!

304 Correio do Povo, Porto Alegre, MCSHJC, 15.01.1936; ALC, 17.01.1936, CPDOC, LC c 1936.01.17/1.

Antônio Avelange Padilha Bueno ressaltou que Raul Pilla era de origem urbana, o que seria, para o autor, uma contradição do líder do PL, justificável pela força da base política dos libertadores entre os proprietários de terras. Cf. BUENO, Antônio Avelange Padilha. Raul Pilla: aspectos de uma biografia política. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006, p. 121.

No entanto, apesar do caráter “parlamentarista”, o poder do executivo, centrado em Flores da Cunha, não sofreu muitos abalos com a fórmula pacificadora. Elíbio Júnior, nesse sentido, defende que o equilíbrio entre forças era mais aparente do que efetivo, já que, para ele, os dispositivos do programa tornaram o executivo estadual ainda mais centralizador. Carlos Rangel avalia que Flores da Cunha era individualista e autoritário, “por isso dificilmente se ajustaria a um regime de governo que valorizava o parlamento às custas da subordinação do executivo”, afirmando que “a adesão das lideranças da FUG não era total, pois João Neves, Baptista [sic] Lusardo e Maurício Cardoso deixavam-se envolver pelo assédio governista federal, sem esquecer que ainda permaneciam abertas as feridas da ignóbil traição de 1932”. Na contramão dessas assertivas, Hélgio Trindade e Maria Izabel Noll ressaltam o papel do Legislativo que, para ambos, passou a ser mais valorizado, condicionando os secretários de estado à aprovação dos próprios partidos, e dando o poder de convocar os secretários para prestar contas.305 Esta visão, contudo, nos parece valorizar mais o pacto formal do que analisar como foi o funcionamento do modus vivendi na prática.

É interessante destacar a posição destes três trabalhos. No entanto, dentro do panorama político, seria o modus vivendi uma forma de cooptar a FUG para o lado florista, ou de “puxar” o florismo para as Oposições Coligadas? Quando foi firmado, havia incertezas sobre sua consequência no contexto político e seus “objetivos”, por todas as partes, mesmo que o modus vivendi não acarretasse, teoricamente, em compromissos políticos. Afinal, ele se estruturava em uma conjuntura atípica: o PRL era composto por getulistas e floristas, em tese, apoiadores do governo central. Flores da Cunha, por mais que estivesse rompido com Vargas, também não era um aliado das Oposições Coligadas.

Ainda assim, sua aproximação com a FUG poderia soar, para os getulistas do PRL, como uma aliança com a Frente Única, fato que insatisfaria quem estivesse ao lado do governo federal. Já para a FUG, aproximar-se do PRL poderia parecer como uma aproximação com Vargas, dentro das oposições em nível nacional, acarretando em divergências e desconfianças no bloco de oposição ao governo federal. Se na FUG, como vimos, havia um temor de distensões formando um partido único entre ela mesma, pode-se ter uma ideia daquilo que seria “aliar-se” com Flores da Cunha, pois, se os frenteunistas eram oposição a Vargas, havia entre alguns, como já frisamos, o pensamento de que o contexto político seria muito pior com o governador do Rio Grande do Sul fortalecido.

305 ELÍBIO JR, op. cit.; RANGEL, op. cit., 2001, p. 192; TRINDADE, Hélgio; NOLL, Maria Izabel. Subsídios

Esta fragilidade no interior dos partidos era sabida pelos mais próximos. Pois, se o acordo foi muito celebrado pela imprensa de vários locais do país, os políticos do estado que apoiavam a pacificação adotavam certa cautela, enquanto os discordantes não perdiam tempo em articular o desmonte do modus vivendi. Por isso, a definição de Luciano Aronne de Abreu nos parece muito pertinente. Para ele, “pode-se dizer que o principal ganho dos partidos gaúchos com este acordo foi o aumento de poder obtido por cada um deles. Porém, ao contrário do que pretendiam seus signatários, esta união partidária não significou exatamente a pacificação do estado”.306

Se alguns líderes da oposição, como Arthur Bernardes, imediatamente destacaram que o pacto no Rio Grande do Sul em nada afetava o posicionamento da FUG de oposição ao governo federal307, outras figuras expressivas ficariam ressabiadas. João Neves da Fontoura, em uma linguagem formal, possivelmente procurando distanciar-se da condição de membro da FUG, mas falando como líder da minoria parlamentar, enviou um questionário ao Diretório Central do PL e à Comissão Central do PRR, indagando se a FUG continuaria integrada na minoria parlamentar, se aceitaria alguma composição político-administrativa ou outro tipo de pacto isolado com Vargas, passando para a maioria parlamentar. Também indagava se propendia a apoiar alguma candidatura lançada pelo Catete.308

Da mesma forma que este questionamento demonstra o ceticismo com o modus vivendi regional dentro das oposições nacionais, o paulista Júlio de Mesquita também pediu esclarecimentos para Raul Pilla. Este precisou justificar-se, alegando que o tratado não tinha finalidades fora do estado, e que, segundo Pilla,

o que influiu esclusivamente [sic] em nosso espírito, ao aceitarmos finalmente as reiteradas ofertas de paz e colaboração, foi assegurar ao nosso estado um período de relativa tranquilidade e boa ordem. [...]. Mas não menos verdadeiro é que nós não o assinamos com outra intenção, muito embora admita que poderão utilizá-lo como instrumento nas atuais combinações da política nacional. [...]. A mesma errônea e viciosa interpretação sofreu uma tentativa anterior [...], à fórmula José Maria dos Santos aplicada ao governo federal. [...]. Fracassou [...] porque ninguém se podia convencer de que a iniciativa não visasse moveis imediatos e concretos, como a anulação política do presidente Getúlio Vargas, o combate a política paulista, etc. Entretanto, nada mais claro era do que o pensamento inspirador da fórmula: fazer uma tentativa para melhorar o nosso viciado regime democrático.309

306 ABREU, L. A., op. cit., p. 112.

307 Correio do Povo, Porto Alegre, MCSHJC, 23.01.1936. Outro mineiro que elogiaria o pacto seria Virgílio de

Melo Franco: “congratulo-me ainda uma vez com V.Excia. e com os demais chefes rio-grandenses, fazendo votos para que o salutar exemplo da terra de Castilhos e de Silveira Martins, frutifique para a tranquilidade e o bem do Brasil”, afirmou para Raul Pilla. ARP, 29.01.1936, NUPERGS, doc. nº 002/1209.

308 ARP, 27.01.1936, NUPERGS, doc. nº 002/1207. 309 ARP, 26.01.1936, NUPERGS, doc. nº 002/1206.

Mesmo que não admitisse para Mesquita, Pilla queria, com o acordo regional, um pacto em nível nacional. Isso fica evidente quando notamos que os entendimentos no Rio Grande do Sul só saíram do papel quando a Fórmula Pilla foi proposta ao governo federal. Além disso, também porque a FUG tentaria levar o modelo implantado no Rio Grande do Sul para o plano nacional outras vezes. Ou seja, usava o estado como um “test drive”, como se diz popularmente, para viabilizar um pacto nacional.

Aliás, aquilo que confirma essa assertiva é a própria carta enviada por Pilla a Getúlio Vargas, no dia do acordo, alegando que, na prática, estava o governo estadual responsável perante a Assembleia Legislativa, com o intuito de aperfeiçoar o regime democrático do país, e que este exemplo iria facilitar a ação já tentada na esfera federal. Por outro lado, isso era visto com ceticismo por alguns políticos situacionistas, como o governador baiano Juracy Magalhães, que acreditava ter o modus vivendi gaúcho a finalidade de controlar a sucessão presidencial. E não era uma hipótese que não era “absurda”. Afinal, Flores da Cunha, especialmente depois do acordo, passou a levantar a discussão sucessória, mostrando simpatia por Antônio Carlos, naquele momento. Aliás, isso irritou Vargas, profundamente: “nenhum dos governadores ou dos políticos que me apoiavam se havia ocupado disso e já o Flores andava um verdadeiro fuxico de comadre mexeriqueira”.310

3.2.2 A fragilidade do modus vivendi: A sucessão presidencial, o boicote de Getúlio Vargas e