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Ana Paula Calvo, Zuleica Schincariol e Leila Reinert

resumO Este artigo apresenta uma pesquisa em processo, que objetiva estudar as relações entre o

design gráfico e a poesia concreta paulista, a partir do campo do design. Define como objeto de es- tudo as edições da revista-livro Noigandres, dado seu caráter referencial, pois dá visibilidade à origem da poesia concreta e possibilita verificar o trabalho colaborativo entre artistas-designers e poetas. Partindo da realização de documentação fotográfica e videográfica das publicações, a pesquisa inves- tiga a dimensão tipográfica, a concepção do projeto e a materialização do objeto gráfico. As análises dessa documentação apontaram para a necessidade de esmiuçamento desse processo de construção, a fim de esclarecer escolhas projetuais e poéticas. Como esta fase da investigação dá-se via depoi- mentos audiovisuais dos que atuaram no processo, reflete sobre implicações de procedimentos metodológicos para as entrevistas.

palavras-chave: Design gráfico; Poesia concreta; Tipografia; Audiovisual; Noigandres; Imagem.

aBstraCt This paper presents a research in progress, which aims to study the relations between

graphic design and concrete poetry, from the design point of view. The research defines as object the Noigandres publications, because they have referential features: they make the concrete poetry origins visible and they allow the observation of the collaborative work between designers-artists and poets. The research deals with the typographic dimension, the design conception and the materiality of the graphic object, and was initiated by photographic and videographic documentation. The documenta- tion analysis pointed to a thorough examination of the graphic object design process, searching to elucidate design and poetical choices. As this research stage deals with audiovisual statements of the authors who acted in the process, it discusses methodological procedures to guide the interviews.

apresentaÇÃO e COntextualIzaÇÃO da pesQuIsa

O artigo expõe síntese de análise das revistas-livro Noigandres, objeto de estudo da pesquisa sobre as articu- lações entre o design gráfico e a poesia concreta paulista, a partir do campo do design. Discute, em seguida, questões metodológicas relacionadas à história oral e ao documentário, considerado via antropologia visual, pois há necessidade de pensar procedimentos sobre a realização de entrevistas em registro audiovisual, dado o caminho em que foi direcionada a pesquisa, ao finalizar-se essa etapa analítica.

As Noigandres, fruto de trabalho colaborativo entre poetas com a participação de artistas/designers, deram visibilidade ao processo de construção da poesia concreta paulista. Foram produzidas em um período de intensificação das ações que visavam uma mudança de direção para os valores construtivos, com posiciona- mentos enfáticos, que colocavam em diálogo design, artes visuais e poesia.

Vale lembrar que, desde o final da década de 1940, idéias e formas construtivas circulavam simultaneamente entre os artistas que constituiriam o concretismo, do Grupo Ruptura, e nos novos museus idealizados como centros de difusão e formação: Museu de Arte e Museu de Arte Moderna de São Paulo. No Masp, o curso de desenho industrial do Instituto de Arte Contemporânea, de 1951, atuava como importante centro irradiador das vertentes construtivas do design. Há intersecção entre os integrantes do Grupo Ruptura e membros do IAC, conseqüentemente pensamentos coincidentes. No MAM, a I Bienal realizada no calor dos debates entre figuração e abstração, polarizando posicionamentos frente ao caráter regional e internacional da arte, é fa- tor significativo na definição do direcionamento pelos valores internacionais e construtivos. Para o design, é relevante a seleção do cartaz que vai apresentar a mostra internacional de arte e arquitetura, fez visível a orientação concretista de Antônio Maluf, então estudante do IAC. Além disso, muitos artistas concretos tin- ham relações diretas com o design e atividades ligadas à indústria1.

Produção e publicação de quatro edições da Noigandres, entre 1952 e 1958, acompanham o estreitamento do diálogo concreto. A aproximação fundamental desde a exposição e o lançamento do manifesto do Grupo Ruptura (fig.1), gera estratégias, reflexões, realizações conjuntas: poemas-cartazes, pinturas e esculturas in- tegrariam a I Exposição Nacional de Arte Concreta, aberta em 1956 no MAM de São Paulo.

Para evidenciar o design nesse diálogo, a proposta de estudo da revista-livro noigandres, relaciona-se di- retamente com a orientação da concepção do projeto e os processos de produção que dão materialidade a esse objeto gráfico, sua condição física, tangível. É o olhar do designer, sempre imerso no embate entre teoria e prática, que procura articular discurso e projeto, conceituação e realização material. Dada à es- pecificidade desse objeto de estudo, é privilegiada a dimensão tipográfica, entendida como características do design do tipo, sua composição, configuração no campo gráfico e processo técnico de reprodutibilidade. A tipografia dá espessura ao texto e condensa sentidos. “Quando escrita a linguagem é capturada em uma forma visual e espacial, permanente e material”, diz Willi Kunz (2002: 8). Os atributos físicos, que a linguagem escrita e a tipografia apresentam, encarnam posicionamentos, valores, escolhas, processo de produção, que por sua vez vinculam-se a condições e circunstâncias históricas. Segundo Joana Druck- er (1994: 44 – tradução nossa), “o aspecto visual encarnado que letras, palavras, inscrições apresentam como evidência”, têm “inflexão histórica”. A forma é “capaz de significar” e é “parte de um código cultural”. A identificação dos atributos físicos manifestados em quatro edições da Noigandres foi realizada a partir da observação detalhada dos originais e da documentação fotográfica completa de cada edição. A análise relaciona esses atributos ao contexto histórico, apoiando-se em fontes primárias – como imagens, manifes- tos, artigos publicados em revistas e jornais, considerando conteúdos visuais e textuais – e estudos críticos.

1 Sobre as relações com o contexto histórico ver: SCHINCARIOL, Zuleica; REINERT, Leila; CALVO, Ana Paula “O design gráfico e a poesia concreta na revista-livro Noigandres” (2008), em Anais do IV Fórum de Pesquisa da FAU UPM. São Paulo: FAU UPM, e SCHIN-

prOJetO gráfICO das nOIgandres: sÍntese da análIse e QuestÕes

Em sua materialização, o objeto gráfico Noigandres evidencia, na sucessão das edições, escolhas direciona- das aos valores construtivos dados pela relação colaborativa entre artistas/designers e poetas. No intuito de tentar desvencilhar manifestações geradas simultaneamente – pertinentes tanto ao âmbito da poesia como do design –, a análise priorizou aspectos essenciais que possam explicitar o projeto gráfico editorial, como soluções para capa, elementos pré e pós-textuais, páginas de aberturas, seleção tipográfica, disposição na página, relações entre capa e miolo e na seqüência das páginas.

Apresentamos aqui uma síntese da análise realizada, enfatizando as questões que emergiram desse procedi- mento2.Só foi possível fazer emergir algumas dessas questões, considerando as possibilidades e restrições da reprodutibilidade técnica. O processo de composição com tipos móveis de metal e impressão tipográfica pouco participa contemporaneamente do cotidiano do projeto, foi importante para o estudo a reaproxi- mação com o universo desse modo de produção. Visitas a uma pequena oficina do Brás, registradas em fotografias e vídeo, permitiram restabelecer o contato com profissionais e saberes hoje quase esquecidos3. Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos editaram quatro números da Noigandres4, onde publicaram como grupo suas experimentações poéticas, que iriam resultar na poesia concreta. O “poema concreto típico” (Bandeira 2006) ou da fase ortodoxa (Aguilar 2005) é caracterizado por “brevidade, sintaxe por justaposição, ritmo fônico-plástico, construído pela paronomásia e pela diagramação que procura ‘iso- morficamente’ estabelecer relações conceituais com o que diz o texto” (Bandeira 2006: 131).

2 Ver análise detalhada com imagens das Noigandres em SCHINCARIOL, Zuleica; REINERT, Leila; CALVO, Ana Paula. “O design grá- fico e a poesia concreta na revista-livro Noigandres”, em Anais do IV Fórum de Pesquisa da FAU UPM. São Paulo: FAU UPM, 2008 e SCHINCARIOL, Zuleica; REINERT, Leila “Tipografia e materialidade na revista-livro Noigandres”, em Anais do V Congresso Interna-

cional de Pesquisa em Design. São Paulo: FAAC UNESP, 2009.

Figura1: manifesto ruptura, lançado na abertura da exposição do grupo no MAM de São Paulo, em 1952.

o grid quadricular e a forma essencial e abstrata da Futura bold são imediatamente associados a essa proposição poética. Mas, nem sempre foi assim, como a própria definição da palavra Noigandres – “tomada como sinônimo de poesia em progresso, como lema de experimentação e pesquisa poética em equipe” (Campos,A.; Campos,H.; Pigna- tari 2006: 259) – tanto a poesia, quanto o projeto gráfico acontecem progressivamente.

Figura 2: Noigandres 1, capa e página de rosto/sumário, na qual é possível observar a pre-

sença conjunta de três diferentes tipos serifados que compõem os textos.

(Coleção da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin)

Figura 3: Noigandres 1, aberturas de seções e configuração de páginas com poemas.

(Coleção da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin) Ana Paula Calvo, Zuleica Schincariol e Leila Reinert

Figura 4: Revista Habitat n. 1, 1951, projetada pela arquiteta e designer Lina Bo Bardi.

Figura 5: Noigandres 1, detalhe de texto composto na página de rosto/sumário, com tipos móveis provenientes de três famílias distintas.

(Coleção da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin)

A Noigandres 1, publicada em 1952, apresenta manifestações gráficas distantes de princípios construtivos, transparecem, inclusive, indícios da inexistência de um projeto total. Se confrontada com a primeira edição da revista Habitat, de 1950, a diferença torna-se nítida. A composição de Décio Pignatari para a capa enfatiza a escrita manual, é a expressão caligráfica acentuada como imagem que se impõe, proporcionando relações com o fazer artesanal da escritura (fig. 2, 3 e 4).

No miolo, apesar da clara subdivisão entre as partes da publicação e organização hierárquica da tipografia, a ordenação e configuração do espaço gráfico apresentam-se sem definição muito precisa e rigorosa. Os elementos textuais são compostos com tipos serifados originários de três famílias distintas: a Bodoni é a escolha principal, a que compõe todos os poemas, complementada por uma transicional, próxima ao design da Cochin e outra,tendendo um pouco ao decorativo (fig.2, 3 e 5). Essa seleção, ao contrário de intenções relativas à estrutura formal dos caracteres, parece ser guiada pela necessidade de distinções entre pesos e corpos dos tipos, o que indicaria indisponibilidade de muitas variações dentro da mesma família tipográfica. Mas, se a impressão foi realizada na Empresa Gráfica Revista dos Tribunais, detentora de amplos recursos gráficos no período (Hallewell 2005), o que teria definido o processo de produção gráfica? É intrigante ainda,

Figura 6: Noigandres 2, capa, página de rosto/sumário. Aberturas de seções reverberam a solução para a capa, configuração de páginas com poemas, compostos com dois tipos sem serifa distintos. (Coleção da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin)

Figura 7: Noigandres 2, detalhe de Lygia Fingers de augusto de campos, da série Poeta- menos, composto no tipo Kabel. (Coleção da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin)

Figura 8: Noigandres 2, detalhe de Ciropéia ou a Educação do Príncipe de Haroldo de campos, composto com outrotipo sem serifa, próximo da Franklin Gothic. (Coleção da Bibli- oteca Brasiliana Guita e José Mindlin)

cia de projeto integral – como já observado – e mesmo que as escolhas fossem mediadas pelo tipógrafo, ele incorporaria um saber relacionado à tradição gráfica do livro, que não aparece nessa edição.

A partir da Noigandres 2, publicada em 1955, escolhas e soluções tomam direcionamento construtivo, quan- do já está ativo o intercâmbio entre artistas-designers e poetas. Este número tem a colaboração de Maurí- cio Nogueira Lima, ex-aluno do curso de desenho industrial do IAC e membro do Grupo Ruptura. O projeto gráfico traz essencialidade, assimetria, campo gráfico ativo, proporções dinâmicas para as margens. Uma configuração articulada ao formato do suporte relaciona as configurações de capa e separação entre seções no miolo, o que se assemelha à proposição do cartaz premiado de Antônio Maluf, onde o suporte torna-se protagonista e gera toda a composição.

A opção por formas sem serifa, participa do caráter essencial, que é reiterado pela predominância de com- posições de textos inteiros em caixa-baixa, desconsiderando convenções estabelecidas (fig. 6). Essenciali- dade que propõe relações diretas com o projeto gráfico do Manifesto Ruptura, todo em Futura caixa-baixa, e daí com as formas elementares e o alfabeto universal de Herbert Bayer – Bauhaus. Mas, se é essa a direção indicada, por que a utilização de três tipos sem serifa e formas tipográficas com partidos distintos (fig. 7 e 8) – uma grotesca, próxima da Franklin Gothic, e duas geométricas, a Futura e a Kabel – relaciona-se com princípios e necessidades pertinentes à concepção dos poemas? Por que a opção pela Kabel nos poemas de Augusto de Campos (fig. 7), não dispunham de variações da família Futura que aparece em composições tipográficas na capa? Escolhas e decisões implicam em qual intensidade de interações e trocas entre designer e poetas? Maurício Nogueira Lima participa de todo o projeto e faz a mediação com a produção? Quais as tensões com a reprodução gráfica?

Figura 9: Noigandres 3, detalhes de duas poesias de Augusto de Campos: Morteperola todo

composto com o tipo Kabel bold e Concreto, com Futura light e Kabel bold em “certo”.

Publicada simultaneamente à I Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956, a Noigandres 3 traz poe- sia concreta para nomear as experimentações dos poetas, e soluções do design gráfico que aprofundam o caráter construtivo. O projeto gráfico ecoa os diferentes experimentos poéticos em configurações da capa, do sumário, das aberturas, propondo um “nó de relações” entre poesia e objeto gráfico. O projeto de Décio Pignatari para a capa (Bandeira 2002) parte de uma composição tipográfica em matriz ortogonal onde o texto é estruturado pelos caracteres situados como pontos, considerando suas relações formais e ritmo nos alinhamentos verticais. Toda a composição em Futura bold caixa-baixa é integrada pelo mesmo corpo e peso, Ana Paula Calvo, Zuleica Schincariol e Leila Reinert

Figura 10: Noigandres 3, capa configurada em grid quadricular; sumário configurado em relação à me- dianiz, considerando a estrutura do próprio objeto gráfico (Um lance de dados - malarmé); aberturas

desconsiderando qualquer especificação hierárquica, é a estrutura que se destaca (fig.10).

Unidade e identidade do projeto integral são enfatizadas pelo uso majoritário dos tipos da família Futura, to- dos essencialmente em caixa-baixa. Entretanto, verifica-se ainda a fonte Kabel em alguns textos (fig.9), provav- elmente para solucionar lacunas entre pesos e corpos no conjunto de tipos da Futura, quando em utilização complementar, mas seria pelo mesmo motivo que compõe totalmente alguns poemas de Augusto de Campos? Interessa notar que a composição tipográfica das Noigandres 2 e 3 foi realizada pela mesma grá- fica. Teria havido implementação nos recursos de produção ou as diferenças nas especificações tipográficas entre essas duas edições referem-se às definições de projeto gráfico e/ou poesia?

A Noigandres 4, publicada em 1958, dá corpo à “radicalização do projeto do grupo”, segundo João Bandeira (2002: 22), este objeto gráfico materializa o que por definição significaria poesia concreta da fase ortodoxa. O objeto gráfico projetado por Hermelino Fiaminghi, contém os poemas em lâminas soltas impressas em um só lado, um livro-poema e o Plano Piloto para poesia concreta em duas outras folhas. O conjunto é reunido em uma espécie de pasta, cuja face frontal traz uma composição geométrica de Fiaminghi, construída a partir de quadrados e círculos, que se articula aos elementos textuais, em Futura caixa-baixa extra bold. Coincidindo com a composição espacial dos poemas, a estrutura em grid quadriculado organiza o projeto gráfico (fig.12). Todos os textos no projeto são compostos em Futura, identificada como a forma tipográfica da poesia con- creta. A exceção é Life, livro-poema de Pignatari com tipografia projetada por Maurício Nogueira Lima, cujo design é acentuadamente ortogonal (fig.11). Aquilo que se propunha como um “nó de relações” na solução projetual da Noigandres 3, agora aparece como solução una entre a dimensão tipográfica da poesia e a di- mensão tipográfica do projeto. A Noigandres 4 evidencia a produção coletiva e afirma a relação colaborativa entre artistas/designers e poetas, note-se que nela é retomada a idéia de poemas cartazes, participantes da I Exposição Nacional de Arte Concreta.

A análise dos atributos materiais das Noigandres, via informações advindas de documentação fotográfica, fontes primárias, crítica e historiografia, indica a necessidade de esmiuçamento do processo de materialização do ob- jeto gráfico. A produção da Noigandres condensa novas proposições para o design e a poesia que entrelaçam escolhas projetuais e escolhas poéticas. Esclarecer a dimensão do design passa por identificar a natureza das

Figura 11: noigandres 4, livro-poema Life de décio Pignatari. (Coleção Ésio Macedo Ribeiro)

Figura 12: Noigandres 4, face frontal da embalagem com uma composição geométrica de Hermelino Fiaminghi e lâminas com poemas-cartazes, compostos em Futura extra bold; todo o conjunto é estru- turado em grid quadricular. (Coleção Ésio Macedo Ribeiro)

escolhas do projeto. Quais as contingências de produção gráfica – saberes gráficos tradicionais, famílias tipográ- ficas existentes e disponíveis nas oficinas que realizaram as impressões, limitação de recursos econômicos para a publicação? Quais as mediações, contaminações, tensões entre artistas/designers, gráficos e poetas? A análise realizada tanto quanto as fontes estudadas não dão conta de esclarecer essas questões, o que conduz a pesquisa para ouvir os atores envolvidos no processo. Esse rumo, tomado pela pesquisa, indicou a necessidade de discutir sobre uma metodologia para as entrevistas, assim como de um corpus teórico que auxiliasse a reflexão sobre os depoimentos.

entrevIstas COm artIstas/desIgners e pOetas: reflexÕes metOdOlógICas

No início desta pesquisa realizou-se uma entrevista gravada em vídeo com um dos atores da poesia visual, cláudio Ferlauto5. A análise dessa entrevista suscitou percepções e perguntas sobre a mise en scène da en- trevista, a atuação dos personagens, os fluxos narrativos, o discurso6. Em busca de corpus teóricos que tra- balhassem essas questões e discutissem a realização do documento oral e audiovisual, bem como a construção de conhecimento a partir deles, deu-se uma aproximação com algumas das reflexões da história oral, do docu- mentário e da antropologia visual.

Em diálogo com a sociologia, psicologia e antropologia, a história oral tem travado um debate acirrado com uma parte da historiografia, na defesa do uso de depoimentos orais como evidência histórica. Parcial e ten- dencioso, pois sujeito às escolhas e recortes de seus autores, impreciso e inconsistente devido às artimanhas da memória, o depoimento oral seria de fatura diversa, teria menor credibilidade como documento histórico. No entanto, seleções, parcialidade, subjetividade são condições inerentes a qualquer documento. Walter Benjamim nos remete a esta questão:

Villemessant, o fundador do Figaro, caracterizou a essência da informação com uma fórmula famosa. “Para meus leitores”, costumava dizer, “o incêndio num sótão do Quartier Latin é mais importante que uma revolução em Madri.” Essa fórmula lapidar mostra claramente que o saber que vem de longe encon- tra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos… (Benjamin 1994: 203)

A fórmula do fundador do Figaro expõe os critérios da elaboração da página de um jornal que, décadas depois, será considerado fonte histórica “fidedigna” e “objetiva”. Saliente-se o processo de seleção e de montagem: uma notícia e não outra ocupa aquele espaço no jornal. O mesmo acontece com outros tipos de documento, aparentemente objetivos, como testamentos, relatórios ou estatísticas.

A história do Figaro sensibiliza para o fato de que o trabalho com documentos (cartas, diários, autobiogra- fias, relatórios, estatísticas, testamentos etc.) requer um processo de desmontagem, requer investigar quem fala, de que lugar social, com que intenção. Requer buscar a consistência interna dos fatos e cruzar fontes. E, ainda, investigar como tal documento se constituiu como evidência. Essa metodologia não é diversa no tra- balho com depoimentos gravados. Os aspectos distintivos dos depoimentos orais ou audiovisuais são outros. Um dos aspectos que distingue a evidência obtida por meio de entrevistas gravadas, como instrumento de investigação, é sua possibilidade de acesso a sinais que podem deixar transparecer a constituição dos signifi- cados:

5 Arquiteto, designer e professor, Ferlauto fez o design de poemas de Décio Pignatari como Femme e Poema em Esperanto, publicados em 1987. Não é intuito da pesquisa, neste momento, fazer a transcrição da entrevista, devido a seu caráter exploratório.