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DE QUE FALAMOS AFINAL?

IMAGEM, IMAGENS E DISPOSITIVOS DE QUE FALAMOS AFINAL?

A imagem tem sido alvo de múltiplas abordagens por parte das ciências sociais e humanas. Distintas áreas disciplinares e correntes epistemológicas têm vindo a contribuir para a construção da imagem enquanto op- erador heurístico e conceito científico. Ainda assim, dado o seu largo espectro conceptual a imagem parece tudo abarcar deixando-nos com uma ingrata sensação de nada incluir. Essa tem sido, aliás, uma crítica re- corrente que os mais cépticos dirigem às denominadas pesquisas visuais. A riqueza da imagem parece mais propensa a uma retórica do poético do que, propriamente, do científico. A velha dicotomia arte versus ciên- cia ganha novos contornos e exige uma reavaliação quando consideramos a possibilidade de integração dos dados e narrativas visuais no corpus analítico e retórico das ciências sociais.

A imagem em ciências sociais tem sido pensada e debatida em função de uma duplicidade que remete para dissemelhantes colocações epistemológicas com óbvias consequências para a forma como esta é concep- tualmente desenhada. A imagem ora é invocada enquanto objecto de investigação, ora é resgatada enquan- to aparato metodológico, enunciado científico com alcance heurístico (Banks, 2000; Morphy e Banks, 1997). No primeiro caso, são os objectos e linguagens visuais produzidos pelo homem em comunidade que são alvo de exploração1, enquanto no segundo caso, é o investigador que se assume como produtor de linguagens e narrativas visuais que pretendem, de alguma forma, retratar o real2. Embora reclamando desiguais con- cepções da imagem, ambas parecem prisioneiras da mesma incapacidade para problematizarem a própria categoria conceptual sob a qual trabalham, tomando como adquirida a unicidade de variados objectos que, supostamente, compartilham uma mesma qualidade imagética. Mas que propriedades são estas que todos assumimos aprioristicamente como auto-evidentes mas que dificilmente resistem a um escrutínio mais mi- nucioso? O que é facto é que desconstruir a categoria implica lançar dúvidas, cisões e ainda mais resistências a uma abordagem visual que tem, tantas vezes, deparado com obstáculos imensos.

Parte das resistências académicas à introdução da imagem estão relacionadas com as propriedades que lhe são atribuídas enquanto dispositivo analítico. A imagem é frequentemente tida por polissémica e superficial. Geralmente os obstáculos são interpretados como o resultado do logocentrismo de uma academia relutante em aceitar metodologias e dados analíticos menos usuais. Todavia, as dúvidas e suspeições que se levantam poderão, também, estar relacionadas com a natureza dúbia da própria categoria conceptual imagem que parece conter uma enorme variedade de objectos.

A aparente simplicidade da imagem é a fonte de todas a incertezas e problemas. A imagem é densa porque múltipla. Sob a reunião dos múltiplos enunciados visuais entrevemos significativas distâncias semânticas, ideológicas e tecnológicas. Que afinidade existe entre uma fotografia digital e uma pintura a óleo, para além do facto de ambas constituírem formatos de representação visual? Que proximidade existe entre o vídeo, a tatuagem e a ilustração? Não estarão o vídeo e o cinema mais próximos da vivência quotidiana, da imersão sensorial no mundo, quando a pintura e a ilustração remetem para usufrutos mais contemplativos da ima- gem, para um olhar mais racionalizado3. Acontece, ainda, que o desenvolvimento e multiplicação dos apara- tos tecnológicos geram diferentes géneros de imagem, complexificando ainda mais a tentativa de identificar uma matriz comum e partilhada entre os variados formatos expressivos. Encontramo-nos, pois, perante um mosaico complexo de linguagens, dispositivos, tecnologias, circuitos comunicacionais e sistemas simbólicos

1 Por exemplo pintura, banda desenhada, cinema, fotografia, etc.

2 Como instrumentos mais comum temos a fotografia e o vídeo produzidos em contextos etnográficos.

3 Importa aqui fazer uma referência ao estudioso da comunicação John Fiske (1992, 1998) que entende a cultura popular como estando mais próxima do quotidiano e da imersão sensorial quando a cultura erudita, da qual as artes plásticas convencionais fariam parte está mais próxima do usufruto distante, contemplativo e racionalizado. Não por acaso o vídeo, a televisão e o cinema, se afirmam como instrumentos privilegiados desta cultura popular de massas.

que se entrecruzam e transfiguram tornando difícil assinalar uma noção estável de imagem.

Um outro problema impende sobre as imagens contemporâneas. A imagem parece, de alguma forma, so- brevalorizada no contexto de uma sociedade ocularcêntrica e de uma cultura visual assente na sumptuosi- dade tecnológica e na capacidade de difusão planetária de bens simbólicos imateriais. Isto não significa, antes pelo contrário, que neguemos a ascendente centralidade da tecnologia e da visualidade para a forma como construímos sentido e comunicamos nos dias de hoje. No entanto, tal não nos deverá impedir de olhar objectiva e criticamente para o papel que estas desempenham enquanto utensílios científicos detalhando, igualmente até que ponto a ciência não prolonga uma ideologia ocularcêntrica e tecnocrática.

Imagem, Imagens

Comecemos, então, pelo mais elementar. A imagem. Como detectá-la, como interpretá-la? Tal questão pres- supõe que sob a pluralidade de objectos detectamos um edifício comum, um património semântico e uma linguagem com energia agregadora. O autor W. T. Mitchell (1986) sustenta que devemos encarar as imagens como uma grande família, passível de ser estudada a partir da sua árvore genealógica. A partir da imagem enquanto semelhança4 define cinco grandes ramos: imagem gráfica (desenhos, estátuas, etc.); imagem óp- tica (espelhos, projecções, etc.); imagem perceptiva (aparências, informação sensorial, etc.); imagem mental (memórias, ideias, sonhos, etc.) e imagem verbal (metáforas, descrições, etc.). Porém, adianta que existe uma versão legítima de imagem que aponta para aquelas que assim são denominadas no seu sentido literal (as imagens gráficas e ópticas) que se distinguem daquelas que são entendidas no sentido metafórico (ima- gens perceptivas, mentais e verbais)5.

As imagens foram produzidas “de princípio, para evocar a aparência de algo ausente”, diz-nos John Berg- er (1999: 14). Este autor, na sua obra Modos de ver (1999), trata a imagem enquanto “imagem feita pelo homem”, revelando algo essencial para o nosso debate: a natureza construída e processual do acto que dá origem às representações visuais. As imagens seriam, assim, mecanismos de representação que através do princípio da analogia simbolizam um qualquer referente:

«Uma imagem é uma vista que foi recriada ou reproduzida. É uma aparência, ou um conjunto de aparên- cias, que foi isolada do local e do tempo em que primeiro se deu o seu aparecimento, e conservada – por alguns momentos ou por uns séculos» (Berger, 1999: 13)

A qualidade representacional6 e, portanto, fabricada da imagem conduz-nos a uma disjunção entre natureza e cultura, remetendo a presença das imagens para o domínio da cultura. Deste modo, as imagens não esca- pam a um modelo cultural em que processos, convenções, tecnologias e códigos tomam parte, decretando um quadro de produção. Encarar a imagem enquanto construção subentende que a encaramos enquanto signo imbuído de conteúdo cultural. Ou seja, devemos partir do pressuposto que esta, independentemente dos objectivos do seu produtor, nos comunica algo através de códigos culturalmente significativos. Aqui re-

4 O sentido de imagem enquanto representação visual (gráfica, pictórica), enquanto objecto material, análogo ou similar a um qualquer real, apesar de ser o mais comum, tende a ocultar toda uma tradição em que o sentido literal de imagem remete para uma noção não-pictórica. A ideia de imagem em tradições antigas que utilizam o termo para evocar a criação do homem à imagem e semelhança de Deus, envolvem uma similaridade de natureza espiritual. A verdadeira e literal imagem seria a mental e espiritual, a imprópria seria a imagem figurativa, derivação da imagem espiritual e que é apreendida pelos sentidos humanos (Mitchel, 1986; Joly, 2001)

5 Normalmente, no seu ramo ilegítimo as imagens caracterizam-se pelo facto de não serem estáveis ou permanentes como as imagens reais, serem por vezes abstracções sem correspondente real, não serem exclusivamente visuais podendo envolver todos os sentidos humanos. Contudo, o mesmo autor defende que estes contrastes são suspeitos e não totalmente correctos.

side o principal interesse das imagens enquanto objecto de estudo e análise em ciências sociais, na medida em que o seu significado histórico, simbólico, textual, social e cultural, é revelador de particulares momen- tos, de dinâmicas socioculturais ou de modos de comunicação, servindo para entender melhor o homem em sociedade. Falar de imagem implica, consequentemente, falar de comunicação. Há, por isso, que considerar a existência de uma linguagem (visual) e de uma série de signos (visuais), bem como de um processo em que tomam parte diferentes intervenientes.

Imagens e dIspOsItIvOs

As imagens, sendo construções humanas, estão fadadas a uma existência fundada em convenções discur- sivas, em esquemas técnicos e tecnológicos mobilizados com o intuito de representarem simbolicamente algo. A imagem é por isso, invariavelmente, um media (ou está dependente de suportes mediáticos). Neste sentido, podemos entender que a imagem é o dispositivo, relembrando a célebre ideia de McLuhan (2008 [1964]) para quem o “meio é a mensagem”. Esquecemos frequentemente esta máxima de McLuhan que chamava a atenção para o poder dos dispositivos, dos formatos mediáticos que determinam fortemente o significado que atribuímos às mensagens.

Os dispositivos fazem as imagens, cunham-nas com determinadas especificidades não apenas de natureza técnica mas igualmente simbólica e ideológica. Isto porque as tecnologias nunca são neutras, operam sobre uma matriz cultural e ideológica particular, retratam de alguma forma modos de conceber e de manipular o mundo. Daí que as gramáticas comunicacionais, constituídas por ordens de signos e sistemas de comuni- cação, operem num cenário social e cultural que lhes concede sentido e funcionalidade. Fora dessa circun- scrição perdem a sua razão de ser (ou pelo menos vêem-na alterada).

Os dispositivos fazem as imagens afirmei-o. Os dispositivos designam o quadro simbólico e cognitivo que regula as expectativas relativamente aos conteúdos bem como as convenções mobilizadas para os decifrar. Uma mesma imagem reproduzida através de mecanismos e suportes diversos adquire tonalidades especiais e exige da parte do espectador atitudes dissemelhantes. Um exemplo. Uma pintura a óleo é tomada de forma dissemelhante se for observada enquanto original num museu, se for reproduzida nas páginas de uma revista ou se for apresentada na televisão. Sendo o conteúdo constante, o seu significado cambia em função do suporte e do cenário.

As expectativas e convenções sociais não se resumem às imagens mas também aos dispositivos. Cada mé- dium e contexto cerimonial de consumo prescreve balizas cognitivas e culturais que definem a forma como devemos entender o cenário comunicativo e estético que enforma a relação que estabelecemos com os dispositivos. Ou seja, quando nos deslocamos ao cinema ou quando nos sentamos em frente ao ecrã do computador ou da televisão, inscrevemos estes actos num conjunto de acções socialmente significativas que designam o quadro funcional e simbólico da imagem e do seu consumo. Assistir a um filme no cinema é diferente de ver um filme na televisão, no computador ou no leitor de MP4, sendo radicalmente distinto da experiência visual proporcionada pela ida a um museu ou uma galeria para observar obras pictóricas.

Deste modo, à família de imagens detectada por Mitchell teríamos de acrescentar toda uma genealogia de dispositivos técnicos e tecnológicos através dos quais as representações visuais têm sido criadas e ofer- tadas ao olhar dos outros. Pintura, gravura, fotografia, cinema ou videojogos apresentam-se como ordens simbólico-tecnológicas que consagram determinados modos de fazer, utilizar e entender as imagens. Há, por isso, uma relação de dependência entre as imagens e os seus dispositivos. A natureza íntima da imagem está, assim, subordinada aos seus dispositivos, sendo que a mutação dos últimos acarreta profundas revisões no modo como a primeira é experienciada e interpretada. Em última análise isto equivale a afirmar que a es- Ricardo Campos

sência da imagem é volátil e mutante, marcada por revoluções tecnológicas e de costumes que reconfiguram todo o cenário sob o qual as imagens são forjadas e disseminadas. E os media, enquanto ordens simbólico- tecnológicas, poderíamos eventualmente estender-lhes a adjectivação ideológicas, transportam uma men- sagem que nunca é transparente e que modela definitivamente o processo de comunicação e decifração. Fará, então, sentido falar de imagens sem as reconstituir em função dos dispositivos e dos circuitos mediáti- cos que as alojam? Será possível uma verdadeira Antropologia da imagem? Ou será esta, necessariamente, um agregado de diferentes antropologias, a da televisão, da pintura, da fotografia, dos videojogos, do cinema e do vídeo? A questão é o que aproxima e distancia as diferentes linguagens suportadas pelos distintos media? Cada um destes artefactos culturais descende de uma linhagem de produtos culturais que são constante- mente reinventados à luz das transformações tecnológicas e sociais. Estaremos a falar da mesma fotografia quando nos referimos aos registos fotográficos de início do século XX e aos registos digitais produzidos a par- tir de diversos engenhos como o telemóvel, a Web-câmara e a câmara fotográfica digital? Estaremos a falar da mesma imagem ou de concepções radicalmente distintas?

Tomemos como exemplo três das vertentes/segmentos clássicos da teoria da comunicação e da semiótica e que nos podem ajudar a detalhar as variações na forma como a imagem é compreendida: o produtor/autor, a mensagem/conteúdo e o receptor/espectador. Qualquer acto de comunicação envolve estas variáveis e a participação de diversos agentes que concorrem activamente para o sentido que as mensagens adquirem. Cada contexto histórico e cultural estabelece uma configuração particular para cada um destes vértices bem como para a forma como estes se articulam. Dentro destes contextos há, ainda, a considerar um conjunto de campos sociais (artístico, religioso, científico, publicitário, etc.) com limiares mais ou menos estanques e delimitados, que estabelecem formatos de produção e de troca simbólica. Estes campos sociais também se interligam e alteram em função do devir histórico, imprimindo renovadas interdependências entre os distin- tos vértices.

O autor da pintura a óleo, que até à invenção da fotografia prevaleceu como figura dominante no campo da expressão pictórica e que agia no quadro de um determinado mercado artístico, pouco tem a ver com o autor das imagens digitais contemporâneas que se multiplica em extensões tecnológicas e que produz assiduamente para diversos espectadores. O autor-profissional que domina códigos especializados detidos por um número restrito de indivíduos diferencia-se, completamente, do autor-amador, familiarizado com as tecnologias visuais e que regista aquilo que vê em amplos bancos documentais. De igual forma os circuitos de comunicação pouco têm de semelhante. Como comparar um mercado de bens artísticos originais que serviam um mercado de ostentação social, com a circulação planetária de imagens reproduzidas através dos diferentes media de massas e da internet?

Os diferentes estudos levados a cabo sobre a audiência (ou os espectadores) revelam que a actividade de recepção e consumo é, invariavelmente, fruto de uma dinâmica de construção de significado onde intervêm diferentes variáveis (Ruby, 1995; Martinez, 1992). Há, por isso, expectativas relativamente às mensagens que influem na forma como as captamos e as entendemos, porque qualquer acto comunicativo é um acto histórico e cultural, está inscrito num contexto que determina as latitudes admissíveis.

antrOpOlOgIa vIsual: OlHar as Imagens COntempOrâneas

A imagem contemporânea é uma imagem completamente distinta daquela que precedeu a invenção dos mei- os mecânicos de registo e reprodução visual. Há diferenças qualitativas e quantitativas. Qualitativas porque grande parte das imagens hoje consumidas são compostas e disseminadas através de máquinas diversas, geralmente fundadas em amplos circuitos de natureza industrial que inscrevem na imagem contemporânea

um significado particular. Quantitativas porque estes processos mecânicos permitiram a reprodução e pro- liferação de imagens sendo que, actualmente, vivemos imersos num ecossistema comunicacional saturado de signos e enunciados visuais. A imagem actual é essencialmente uma imagem mediada. Uma imagem à qual acedemos como resultado de complexas manobras tecnológicas.

A antropologia visual é, igualmente, descendente das tecnologias que operam esta ruptura com uma con- cepção de imagem enquanto artefacto original7. As tecnologias visuais de registo e reprodução de imagens, que servem de base à fotografia e ao cinema, estão na origem desta subdisciplina. Deste modo, quer as linguagens típicas da antropologia visual, quer a maioria dos objectos de estudo de natureza pictórica do nosso sistema visual remetem, em grande medida, para o carácter mediado e tecnologicamente induzido das representações visuais contemporâneas. Logo, pensar as imagens na actualidade implica ter em consideração os circuitos mediatizados e os processos de propagação e consumo de informação. Se partirmos do pres- suposto que a concepção de imagem cambia em função de uma série de variáveis histórica e culturalmente relevantes como o produtor (sistema de produção), o sistema de difusão/comunicação ou a natureza do ob- servador/espectador, então teremos de reconhecer que a condição contemporânea é extremamente com- plexa, tornando uma antropologia da imagem um empreendimento complicado. Se a invenção do daguer- reótipo e do cinematógrafo inauguraram uma era imagética, fundando todo um novo universo de produção e consumo de imagens, a recente revolução digital parece ter um impacto de igual forma profundo no modo de conceber a produção e o usufruto das imagens.

A experiência da imagem era há uns séculos atrás relativamente circunscrita e balizada por circunstâncias (cerimoniais ou culturais) claramente identificadas. Entretanto, particularmente no último século, a coab- itação com a imagem ampliou-se, vulgarizou-se, estendendo-se a uma vastidão de segmentos da nossa vida colectiva, tornando delicado identificar limiares simbólicos e cerimoniais em que se dá a convivência com as imagens (pois tudo parece repleto de imagens). No contexto das sociedades tradicionais as imagens seriam criadas e partilhadas num mesmo cenário geográfico-cultural, sendo que o eixo temporal pouco influiria so- bre os significados simbólicos e funcionais das mesmas. Estaríamos perante um tempo vagaroso, um devir histórico em que os processos de mutação tecnológica e cultural são digeridos lentamente.

As sociedades complexas dos nossos dias, muito por culpa da globalização acelerada e das metamorfoses tecnológicas, justapõem uma pluralidade de universos significantes. O rasto geográfico-cultural e simbólico (do nascimento) das imagens é estilhaçado por um sistema que tende a combinar referências e a criar híbri- dos culturais (Campos, 2008). A representação visual mediada tecnologicamente consente (aliás promove) a desincrustação espacio-temporal das imagens, na medida em que refaz constantemente, através da reprodu- tibilidade tecnológica, o tempo e o espaço das mesmas. As imagens transpõem, por isso, um espaço e tempo confinados, cruzam-se e miscigenam-se, apresentam-se sobre a forma de sedimentos de sentido justapos- tos. Esta condição está relacionada com a elevada capacidade de disseminação, produção e arquivamento de imagens, que multiplica exponencialmente o património imagético da humanidade, constituído por uma sobreposição de referenciais histórica e geograficamente plurais.

Há, por isso, que repensar as qualidades da imagem a partir de um enquadramento que confira aos media e às tecnologias um papel crucial na configuração dos artefactos visuais mas, igualmente, na definição on- tológica da imagem. As qualidades intrínsecas à imagética contemporânea derivam, em grande medida, das habilidades manifestadas pelas máquinas, determinando até onde pode ir a (re)invenção do visível.

A antropologia tem, ao longo da sua história, trabalhado com e sobre a imagem, sobre o seu conteúdo e o

7 Podemos invocar aqui o conceito celebrizado por Benjamin (1992) de aura tomado como elemento essencial à imagem e à ex- periência estética da imagem artística que precedeu a era da reprodutibilidade técnica.

seu invólucro cultural, detalhando o seu papel cerimonial, simbólico, estético ou comunicativo. No entanto, a consolidação de um corpus teórico e metodológico vocacionado para lidar com as imagens está clara- mente associado aos desenvolvimentos da antropologia visual como subdisciplina. Este ramo especializado da antropologia apesar de marcado por uma prática epistemológica dominante é atravessado por uma série de empreendimentos e perspectivas teórica-metodológicas que, apesar de distintas, invocam uma filiação comum8.

Há, em meu entender, da parte da antropologia visual uma escassez de teorização em torno dos dispositivos (do aparato técnico-ideológico) e dos espectadores, estando mais focalizada num discurso em torno ou a partir da imagem tomada como absoluto. Uma antropologia visual centrada numa concepção totalizante e a-histórica da imagem corre o risco de não captar inteiramente as variações simbólicas e culturais que esta admite, esquecendo que a imagem apenas pode ser pensada enquadrada num contexto talhado por hábitos, ideologias, modos de olhar e representar. Uma antropologia da imagem parece excessivamente aprisionada à lógica da produção, a uma ontologia da imagem tomada como a priori cultural esquecendo que a imagem só existe enquanto tal aos olhos do(s) observador(es). Uma antropologia da imagem necessita do contra- balanço epistemológico de uma antropologia dos media, mais atenta aos suportes e à relação que se constitui