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InterfaCes flusserIanas entre as Imagens tÉCnICas

3. IMAGEM, TéCNICA E ARTE

Uma vez compreendida a “natureza” formal da imagem técnica e sua origem no pensamento numérico, devemos analisar como se estruturam os modelos de conhecimento, comportamento e vivência na cultura midiática contemporânea. Para isso devemos regredir novamente à origem da modernidade a fim de contex-

tualizar a ordem das três categorias durante e depois do período histórico.

No prisma da comunicologia, as imagens técnicas se estabelecem como “barragens” que sugam para seu interior o universo das imagens tradicionais e dos textos históricos. Neste ato de devoração há uma dis- solução e reorganização dos papéis da ciência, da técnica e da arte como estabelecidos no período histórico. A invenção da imagem técnica foi, de acordo com Flusser, uma solução encontrada para a crise originada no esgotamento e a respectiva perda de sentido do código da escrita. Como vimos acima, esta teve sua primeira derrota durante a modernidade quando perdeu o prestígio para os números e desde então vem mostrando sua decadência.

De acordo com o comunicólogo, a escrita foi inventada para substituir a consciência e o comportamento mágico das imagens tradicionais em detrimento da consciência esclarecida dos textos históricos. Os textos lineares explicam as imagens, desenrolam cenas em processos e organizam os eventos em relações causais. O mundo passa a ser vivenciado de modo causal e progressivamente manipulável. O objetivo dos textos era esclarecer e simultaneamente banir as imagens como formas de conhecimento e comportamento da cultura.10 Por mais que este tenha sido o objetivo desde o início, houve um longo embate entre o código da imagem com o da escrita.

A consciência histórica se generalizou somente após a invenção da imprensa e a introdução da escola obrigatória, expulsando as imagens para “guetos chamados ‘museus’ e ‘exposições’, deixando de influir na vida cotidiana”11. Mas a massificação da consciência histórica criou uma nova elite composta por cientistas. Com isso a cultura se divide em três ramos: o pensamento histórico massificado, o pensamento científico formal e a imaginação margin- alizada. Para compreendermos a imagem técnica devemos nos ater as diferenças entre o pensamento científico e imagético.

De acordo com Flusser, a distinção entre ciência e arte é fruto da reformulação dos conceitos “teoria” e “prática”. Dos gregos até a idade média “teoria” era a contemplação de formas “dadas” e “prática” sua apli- cação. Não havia diferença entre teoria (episteme) e prática (techne). O cientista avistava as formas sob as aparências e o artista as aplicava sobre a matéria. O termo informação tem origem neste contexto: a forma ideal “sapato” era impressa sobre a matéria “couro”. O que a modernidade fez foi romper radicalmente com esse elo.

Para a ciência moderna (a ciência sensu stricto), “teoria” não mais é visão de formas “dadas”, mas criação de formas “feitas”. As formas deixam de ser “idéias” e passam a ser “modelos”. A ciência cria modelos a fim de captar as aparências, explicá-las e alterá-las. […] Tal reformulação da “teoria” exige nova práxis (téc- nica), e toda nova técnica provoca nova teoria. E isto implica curiosa reformulação do conceito de “arte”. Surge um tipo de práxis, jamais visto antes, que não participa diretamente da dialética “ciência-técnica” e que consiste na criação de formas estéticas, isto é: vivenciadas. Tais formas não têm valor epistemológico no significado científico do termo.12

Nesta concepção, a técnica se encarregava de desenvolver através da ciência, modelos de comportamento, e a arte deveria formular modelos de vivência (modelos estéticos), posto em outros termos, a técnica buscava pelo “bom” enquanto a arte buscava o “belo”. Diferenciava-se os bens culturais “úteis” dos “agradáveis”. Flusser cita o exemplo da faca que contém o modelo de comportamento “assim devo cortar”, enquanto a pintura contém o modelo de vivência “assim vivencio a aurora”. A conseqüência de tal prática em larga escala

10 Id. 2002, p.9-10 11 Ibid., p.17

foram as “desagradáveis cidades industriais e a inutilidade da arte moderna”.13

Atualmente, na era dos aparelhos e das imagens técnicas, a divisão moderna entre as três categorias tornou- se insustentável e demasiadamente abstrata. A prática fotográfica foi o primeiro meio a evidenciar tal fato. Na foto não se trata apenas de uma imagem no sentido moderno do termo, mas de uma imagem produzida pela técnica. Se na modernidade a técnica era prática orientada por teoria e a produção de imagens artísti- cas era prática sem teoria, pois fruto da “inspiração”, a distinção entre técnica e arte perde seu sentido. De acordo com Flusser, a fotografia evidencia a volta a indistinção pré-moderna entre teoria e prática, com a exceção que desta vez informar não é mais imprimir idéias imutáveis sobre matéria, mas projetar modelos programados. Como vimos anteriormente, imagens técnicas são projeções de pontos calculados e computa- dos por aparelhos. Estes mosaicos planos são simultaneamente modelos de conhecimento, comportamento e vivência. Uma capa de revista feminina com a foto de uma modelo comunica a um determinado segmento da sociedade, o que é uma “mulher”, como ela deve se vestir, e do que deve gostar.

Nesta fusão dos três modelos, o que determina e qualifica a categoria de uma imagem é a mídia que a vin- cula. Vejamos o exemplo dado por Flusser. A fotografia do homem pisando na lua é arte quando exposta na galeria de arte; ciência quando analisada no laboratório astronômico; política quando pendurada no gabi- nete do consulado americano.14 O que este exemplo mostra é o deslocamento de poder do produtor para o meio de comunicação. O controle não está mais nas mãos do fotógrafo ou cinegrafista, mas no contexto que a imagem se inscreve. Isto significa que uma vez produzida, a imagem se torna autônoma com virtualidades programadas que podem se atualizar toda vez que retornam a uma mídia diferente. Flusser nos mostra assim que criticar uma imagem apenas por seu conteúdo sem considerar as intenções do meio que a vincula é ato ingênuo e ultrapassado.

As questões levantadas acima são apenas breves considerações do extenso e instigante universo flusseriano. Se bem sucedido, o artigo deveria sensibilizar os leitores a uma interpretação mais abrangente da obra de Flusser que enfatiza a importância da imagem para a compreensão e a crítica da cultura contemporânea. Neste sentido a grande contribuição de Flusser foi ter analisado as estruturas formais e existenciais que sus- tentam e conduzem a cultura humana, inserindo a imagem técnica no centro desta questão mostrando que atualmente é ela que orienta nosso modo de pensar, escolher e sentir.

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FlUsser, Vilém (1998a) Vom Subjekt zum Projekt. Menschwerdung. Frankfurt/M: Fischer Verlag. FlUsser, Vilém (1998b) Ficções filosóficas. São Paulo: Edusp.

FlUsser, Vilém (1998c) Europäische Kunst, 1991. In: Standpunkte: Texte zur Fotografie. Göttinger: European Photography.

FlUsser, Vilém (2000) Ins Universum der Technischen Bilder. Göttinger: European Photography.

FlUsser, Vilém (2002) Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

FlUsser, Vilém (2007) Kommunikologie. Frankfurt/M: Fischer.

FlUsser, Vilém (2008) O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume. FlUsser, Vilém (2009) Komnmunikologie weiter denken. Frankfurt/M: Fischer Verlag.

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