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GRUPO DE REFLEXÃO APLICADO AO ENSINO MÉDICO

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muito difícil fazer uma delimitação precisa entre grupo operativo e grupo terapêutico pela razão de que eles se tangenciam e, muitas vezes, se imbricam. Assim, todas as modalidades de grupos terapêuticos funcionam de acordo com os princípios gerais dos grupos operativos, enquanto estes, reciprocamente, exer­ cem, indiretamente, uma inequívoca ação terapêutica.

O termo "grupo operativo" é muito genérico, sendo que, em essência, desig­ na mais propriamente uma ideologia do que uma técnica especifica. Essa ideolo­ gia, lato sensu, visa sempre a um aprendizado conectado com uma mudança psicológica (atitudes), especialmente a de aprender a aprender.

Dessa forma, o grupo operativo comporta muitas variações técnicas e táticas e, conseqüentemente, muitas subdenominações; no entanto, pelas razões expos­ tas no Capítulo 6, vamos utilizar o nome de "Grupo de reflexão".

Pela crescente importância que essa técnica vem desempenhando na área do ensino-aprendizagem, e pela razão de comprovar que os fenômenos do campo grupai também se reproduzem em grupos que não têm uma finalidade terapêuti­ ca precípua — apesar de, como antes foi dito, ela promover modificações psicoló­ gicas —vamos exemplificar, mais detalhadamente, o funcionamento de um grupo de reflexão que durou dois anos e que foi realizado com médicos residentes de um hospital-escola com a finalidade de promover um programa de educação médica continuada (PEC)(5).

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EXEM PLO PRÁTICO (N2 7)

A ilustração que segue refere-se à primeira reunião. Uma semana antes, os médicos foram comunicados de que a “Residência" propiciaria um PEC com vistas à relação médico-paciente e que a participação ao mesmo não era obrigatória.

De um total de 30 residentes, aproximadamente um pouco mais da metade se fazia presente, entre homens e mulheres, todos muito jovens. Além deles, o médico-chefe, diretamente responsável pelo ensino, e eu, como coordenador do grupo de reflexão.

Na hora aprazada, me apresentei e fiz um curto preâmbulo para destacar que a nossa atividade seria a de, em conjunto, refletirmos acerca das inter-rela- ções que o médico tem com o doente, a doença, colegas, familiares do doente, assim como a Medicina em geral, a partir de relatos de quaisquer situações que eles trouxessem, da forma mais livre possível.

Seguiu-se um silêncio, enquanto todos me olhavam expectantes, alguns com canetas e bloco de anotações à mostra. No momento em que me pareceu que davam sinais de inquietação crescente, fiz a primeira observação, assinalando que, justiflcadamente, estavam algo aturdidos, pois era uma situação nova com a qual não estavam familiarizados e, por isso mesmo, tendiam a se proteger no que já conheciam, isto é, num clima próprio de aula magistral. Sorriram e fez-se a sugestão para que dispuséssemos as cadeiras em círculo, a fim de “aquecer mais”, como disse um deles.

Assim foi feito, com algum alarido descontraído, após o que se seguiu um novo silêncio tenso, até que uma residente perguntou que tipo de caso eu preferia que fosse trazido. Repassei a pergunta ao grupo, o qual respondeu, com manifes­ tações tímidas, que eu é que entendia disso e que deveria orientá-los. Fiz minha segunda observação: a de que, num nível lógico eles sabiam, porque havíamos combinado, que qualquer assunto serviria como porta de entrada para as nossas reflexões, mas que, naquele momento, diante de uma situação desconhecida, estavam operando num nível pré-lógico, ou seja, não estavam conseguindo usar a sua plena liberdade. Assim, conferiam-me o papel de "grande” que sabe tudo, enquanto eles ficariam com o papel de “pequenos", precisando pedir permissão e orientação para as suas iniciativas.

A maioria assentia com a cabeça e a mesma residente disse que queria discutir um caso clínico que a embaraçava muito: tratava-se de uma sua pa­ ciente, mulher jovem que se queixava de frigidez sexual. A médica não sabia o que fazer, “nem me sentia médica e me vi impelida a dar conselhos e aulinhas”. Com pequenos estimulos meus, alguns outros participantes trouxeram situa­ ções e angústias semelhantes em outros pacientes seus. A seguir, o grupo manifestou a esperança de que eu tivesse alguma “dica” para solucionar tais casos. Observei-lhes que talvez os decepcionasse, mas eu não tinha dicas má­ gicas para dar, e até, por outro lado, lhes perguntava se, ao invés de derramar meus conhecimentos (aulinhas), não topariam fazermos uma reflexão conjunta

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acerca do que estaria se passando com as referidas pacientes frígidas no fundo da personalidade delas, como um todo.

As colocações e hipóteses que passaram a fazer giraram em tomo de possí­ veis medos de suas pacientes frigidas, tanto os antigos e internos, como os atuais ligados à realidade do risco de gravidez, doenças, aborto; e a não-confiabilidade desses pacientes em relação aos respectivos companheiros.

O trabalho grupai vinha se desenvolvendo em uma atmosfera algo fria e tímida, pois só uma minoria participava verbalmente. Fiz um assinalamento, sob a forma de lhes questionar, se, de certa maneira, não teriam escolhido o enfoque em mulheres frígidas como um modo, não intencional é claro, de me comunicar que também o grupo se sentia frigido em relação à nossa atividade, à nossa “relação”, porque, a exemplo dos pacientes, também eles estavam sentido medo e não sabiam se podiam confiar no parceiro: eu.

A resposta não se fez esperar. Sabiam que eu era psicanalista e, como tal, deveria ter uma capacidade de raio X, e assim poder devassar a intimidade de cada um, ou até, como expressou um dos que até então estava silencioso, se o meu propósito oculto não seria o de querer tratá-los. Outros verbalizaram a des­ confiança de que eu estivesse a mando da direção para observá-los e depois "dedar" os mais loucos, que então seriam expulsos da Residência. Seguiram-se outras manifestações nessa linha, já agora em um clima acalorado, com o grupo, aos poucos, retomando a vontade de querer entender o que se passava e o que fazer com aquelas pacientes.

Ao término da hora combinada, encerrei o grupo de reflexão com uma ob­ servação final: a de que eles poderíam compreender melhor o problema da frigidez se cada um tivesse a capacidade de empatia, isto é, de poder colocar-se dentro da patologia das pacientes. Para tanto, poderíam sentir em si mesmos o quanto também eles haviam começado muito frígidos e, à medida que foram atenuando o medo e a desconfiança, foram deixando aparecer as reais capacidades de uma participação quente.

O exemplo que utilizei pode dar uma equivocada idéia de que a tônica prevalente dessa técnica seria a da interpretação transferenciai. Ainda que o objetivo maior seja o de tocar as emoções de cada um, somente recorremos ao clareamento transferenciai propriamente dito, e, assim mesmo, ao grupo como um todo, e nunca aos indivíduos isoladamente, quando, como no exemplo acima, as ansiedades pré-tarefa estão intensificadas e tão emergentes que obstaculiza- riam a tarefa, caso não fossem removidas.

A vinheta que segue de uma posterior reunião desse mesmo grupo de refle­ xão mostra com mais fidelidade como é o seu processamento habitual.

A atividade começa com um residente propondo que o grupo discuta a atitude que deve ser tomada diante de “pacientes nervosos, que não colaboram e ainda ofendem os médicos”. Segue-se, por parte de alguns, o aporte de distintas situações clínicas dessa natureza, até que a atenção de todos fica centralizada no relato de um episódio, ocorrido há pouco, em que uma paciente muito nervosa

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estava dando um “show” na enfermaria, somente porque a sua cirurgia — salpin- gectomia — fora adiada. Ela alegava que já se submetera à tricotomia, que só bem depois do horário previsto para a cirurgia é que lhe deram uma explicação que não a satisfizera (disseram que a cirurgia anterior se prolongara demais e que não havia outra sala. O que não lhe foi dito é que a desorganização provinha de uma briga interna entre a equipe médica) e que ninguém sabia dizer-lhe quando faria a tal cirurgia. No prontuário constava que sempre fora nervosa e que tinha um problema de tireóide. Foi-lhe dada "uma boa chamada", um aumento da dosagem de tranqüilizantes e solicitada uma investigação quanto a uma possível tireotoxicose.

No grupo, após uma troca de pontos de vista, um residente disse que queria trocar "para um assunto completamente diferente", pois não podia deixar de relatar uma situação que o estava indignando. Passou, então, a criticar, de forma acerba, a conduta do professor X que reiteradamente chegava às 9 horas para uma atividade de ensino marcada para as 8. "Ele manda que nós ocupemos a hora inicial para a leitura dos prontuários, com fins de posterior discussão. Isso é embuste dele, é desculpa para poder ficar dormindo mais. Ele nos enrola e quando chega muito tarde ainda toma a iniciativa de nos criticar, antes. E nós, trouxas, temos que acordar cedo, ficar bem quietinhos e ainda ouvir desaforos”.

Diferente do que fizera na primeira reunião do grupo acima transcrita, o coordenador não precisou assinalar uma possível mensagem transferenciai, por­ que o clima era de confiança e tampouco sentiu necessidade de remover obstácu­ los ao livre íluir do trabalho. Preferiu mostrar que o último assunto trazido não era "completamente diferente” dos anteriores; pelo contrário, eram iguais e se completavam . Assim, a justa indignação, diante do professor "enrolador”, era a mesma indignação que a da paciente, porque também ela se sentira enrolada, desrespeitada, oprimida e, ainda por cima, indiciada como se fosse a culpada.

O fato de os residentes se colocarem na condição da paciente indignada permitiu que entendessem — e sentissem — o “nervosismo" dela e que valorizas­ sem o quanto é importante respeitar e ser respeitado.

Os exemplos dados acima permitem uma constelação de observações relati­ vas ao campo grupai formado em um grupo de reflexão.

Na primeira ilustração pode-se observar a divagem dos planos do Conscien­ te X Inconsciente, resistência a uma situação nova, sentimentos de dependência e idealização em relação à figura do líder, simultâneos aos de medo e desconfiança dele; a compreensão da linguagem simbólica e a importância da comunicação verbal; a possibilidade da perda de papéis ("não me senti médica”); o sintoma (frigidez) indissociado do paciente como um todo somato-psíquico-social, etc.

A segunda ilustração permitiu que refletíssemos acerca das diferentes atitu­ des médicas que são possíveis diante de uma mesma situação clinica. Assim, no caso, prevaleceu o uso da projeção (a paciente foi usada como pantalha do “ner­ vosismo” da equipe médica, da repressão (xingão e aumento da sedaçáo) e a busca de causas orgânicas (investigação da tireóide). O grupo pôde concluir que tudo

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isso ocorreu por não ter havido uma empatia com as angústias da paciente (tanto as que são inevitáveis diante de qualquer submetimento cirúrgico, como as an­ gústias que se somaram por se tratar de uma mutilação no trato genital), além do afastamento prolongado de sua casa e de uma possível percepção de que ela estivesse servindo, para a equipe médica, como o marisco entre o choque do mar e do rochedo, etc.

A partir dessas reflexões — não é demais repisar: não intelectualizadas, mas sim pensadas e sentidas em si próprios — os médicos, nesse aprendizado, devem progressivamente aliar os conhecimentos e habilidades que estão adquirindo às atitudes consubstanciadas, especialmente, no desenvolvimento da capacidade de empatia.

Vale citar alguns dos fatores de dinâmica do grupo de reflexão que concor­ rem para isso. Há uma recomposição do grupo familiar (“pais e irmãos”), o que propicia a que cada um passe a entender e a respeitar mais as dificuldades e inibições dos outros e se fazer respeitar a si próprio. A possibilidade de fazer novas identificações e compartir um novo código de valores. A percepção das cargas projetivas que fazem e que sofrem permite que melhor possam reconhecer-se nos outros, diferenciar-se dos outros e a se colocarem no lugar destes. Há também o desenvolvimento do senso de identidade profissional e de alguns outros atributos que foram enumerados quando descrevemos o perfil do grupoterapeuta.

Orientação Bibliográfica

1. BLEGER, J. "Grupo operativos no ensino". Em: Temas de psicologia, pp. 53-82. 1987. 2. DELLAROSSA, A. Grupos de Rejlexión. 1979.

3. ETCHEGOYEN, H. "Psicoterapia dei Grupo en la ensenanza médica". Em: El Grupo psicológico. pp. 234-246. 1959.

4. LIBERMAN, D. “El método de indagadón operativa y su aplicación al seminário psicosomatico". Em: El Grupo Psicológico, pp. 297-309. 1959.

5. ZIMERMAN, D. E. T écn icas grupais aplicadas ao ensino médico". Em: Grupoterapia Hoje. pp. 349-358. 1986.

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7. Z1MMERMANN. D. “Aplicação da Psicoterapia de Grupo ao Ensino da Psiquiatria Dinâmica". Em: Estudos sobre Psicoterapia Analítica de Grupo. pp. 299-310. 1971.

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