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4. Vila Chã e os seus pescadores

4.3. As atividades agro-marítimas em Vila Chã

4.4.1. O grupo dos pescadores

Como ficou dito anteriormente, os lavradores e os pescadores formavam duas comunidades distintas, opostas, sem ligação social. Isto também porque os pescadores tinham uma marcadacoesão socio-funcional e uma forte imagem de grupo, reforçadapela componente familiar e a memória coletiva de naufrágios e tragédias que acabam por afetar toda a gente e criam uma grande solidariedade intracomunitária (MARTINS 1999: 240/241). O pescador é “melancólico e sonhador, tímido e ousado ao mesmo tempo, a alma simples e bondosa, de fé enternecedora (…)” (NETTO, 1949: 21). O poder político e a igreja colocaram-se do lado dos lavradores, que muitas vezes

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se opuseram aos pescadores (FILGUEIRAS 1984) e que, apesar de ter havido um período em que a situação se inverteu, hoje e quase sempre estiveram em clara prevalência sobre aqueles. Bom exemplo desta separação são os laços de matrimónioconstituídos dentro da comunidade, principalmente na dos pescadores que não viam com bons olhos a ligação com um lavrador ou com uma filha destes (FILGUEIRAS 1981: 350). Aliás, em Vila do Conde há, entre a comunidade piscatória “uma linguagem tão própria e caraterística, que não é ao primeiro contacto que qualquer de nós conseguirá entendê-la” (NETTO, 1949: 1). Os pescadores tinham essa linguagem própria especialmente no Norte do concelho, sendo as Caxinas o centro desta particularidade. No sul a diferenciação era mais esbatida, centrando-se em Vila Chã essa menor especificidade, diferença que denuncia a proximidade anteriormente referida entre pescadores e lavradores no Sul do concelho e o isolamento das duas classes sempre vivido no Norte.

Outras particularidades singularizavam os marítimos: o funeral dos pescadores costuma ser bastante vivido havendo “grandes prantos” (NETTO, 1949: 26) e fazendo- seo cortejo fúnebre com homens, enquanto as mulheres levam mortalha de santos. Os lavradores, pelo contrário, tinham um funeral bastante silencioso e o cortejo levava “os estandartes de todas as confrarias a que o defunto pertencia. Vão também os associados com paramentos e opas.” (NETTO, 1949: 63). A alimentação não tinha horário estabelecido para a gente do mar, as refeições eramfeitas quando o trabalho permitiaporque esperam por mudanças no tempo e marés para as suas atividades, que não tinham a regularidade da lavoura.As mulheres usavam,em meados do século XX,camisa, colete, saia, saiote, avental, blusa e xaile, um lenço à cabeça e argolas ou meia-libras em ouro e uma volta com uma fisga. Os homens, por sua vez, vestiam camisa, ceroulas, calças, camiseta, casaca, samarra e um chapéu (NETTO, 1949: 28/29).

Os pescadores têm caraterísticas únicas que lhes advêm da própria particularidade da pesca, esta cria “um padrão sociocultural diferente dos agricultores, pastores e trabalhadores industriais” (AMORIM2001: 118).A obtenção de recursos para a subsistência fica extremamente dependente de fatores externos, como o estado do tempo e do mar e a quantidade de indivíduos de uma espécie e os seus fluxos. Entre outros aspetos, o pescador tem que ser capaz de conseguir gerir extremamente bem os ganhos, para que em boas épocas haja algum dinheiro extra acumulável, a ser usado nas alturas que ficam sem pescar. Segundo Lacerda Lobo, os únicos verdadeiros pescadores eram

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os que tinham a capacidade de se adaptar a diferentes tipos de pesca e de condições para fazerem desta “uma atividade continuada”. Para ele, os únicos que mereciam ser classificados nesta categoria estavam a Norte do Porto, pois eram muito móveis e pescavam em diferentes locais (AMORIM 2001: 116). O exemplo máximo desta identidade será a do Poveiro, tipificada de forma algo mítica por Santos Graça, pois enraizou-se de tal maneira na comunidade que a afasta de qualquer outra profissão ou adaptação (AMORIM 2001: 115).

Baldaque da Silva considera o pescador “o operário que, quase sem capital, pode conseguir mais resultados do seu trabalho, (…)” (SILVA 1892: 19). No entanto, como foi dito, por fatores externos há uma grande probabilidade de as coisas não correrem bem e o pescador perder tudo, sendo obrigado a pedir esmola, e até por vezes perdem a vida. É “um obreiro incansável, destemido e prestabilíssimo, mas humilde e desventuroso” (SILVA 1892: 427) o que, como adiante veremos, não incentiva os jovens a seguirem por esta via profissional.

Infelizmente, com as alterações climáticas, a profissão de pescador é uma das que mais sofre (alterações na costa, nos ritmos e tamanhos dos cardumes, etc.) e, se considerarmos em conjunto a pesada legislação, necessária mas um pouco castradora que se aplicou a esta prática, temos um mundo de pesca artesanal do qual não é possível viver, levando os pescadores a optar por mudar de profissão e de vida, ou a transferir-se para uma pesca industrial, em portos importantes, ou ainda a emigrarem, tentando também a pesca ou tendo que recorrer a outros modos de vida(SOUTO 2003: 10). No entanto, esta emigração acaba por ser vantajosa a longo prazo. No regresso, os emigrantes trazem mais capacidade económica para investir, tanto nas habitações – que depois são muitas vezes alugadas para férias – como em novos aparelhos e embarcaçõeseficazes e rentáveis (SOUTO 2003: 10), que muitas vezes conheceram quando estavam fora.

O elemento de organização social básico que há nestas comunidades é a “propriedade do barco e das redes (…)” (AMORIM 2001: 119) e o conhecimento ou descoberta de mares férteis, que está muito ligado ao mérito da categoria de arrais.

O trabalho do pescador é hoje sazonal, está sujeito aos constrangimentos legais, ao tipo de peixe que abunda em cada época do ano e ao facto de a maioria dos pescadores ter já uma avançada idade, saindo ao mar apenas de março a outubro, fugindo assim ao inverno mais rigoroso. Em Vila Chã, no século XIX, apesar de se realizar todo o ano, a época mais própria para a pesca da sardinha era de outubro a fevereiro. De novembro a

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janeiro era a época da lagosta e de agosto a outubro a vez do pilado. Havia diversos peixes que eram pescados de outubro a dezembro e o mexilhão, apanhado a pé, procurava-se todo o ano (ALMEIDA, ROQUETE 1890: 132). Algumas das espécies capturadas não se pescavam em quantidade mas o valor comercial que atingiam era muito alto, atribuindo-lhe grande importância económica (INIP 1885).

No caso da sardinha, o barco saía ao pôr do sol e regressava na madrugada seguinte, sendo que, com o tempo que ficam parados e se as condições do mar fossem propícias, daria cerca de 12h de trabalho diário, em cerca de 150 dias dedicados à sardinha. A outros tipos de peixe (lampreia, sável, salmão, …) que eram pescados tanto à linha como com as rascas, os pescadores dedicam-lhes cerca de 6h diárias, num total de 180 dias por ano. Em relação à lagosta, as horas eram igualmente 6h diárias, mas apenas em cerca de 70 jornadas por ano. Por fim também apanham o sargaço, durante todo o verão (exceto dias santos) e só durante a baixa-mar (ALMEIDA, ROQUETE 1890: 132).

A atividade que ocupava o pescador durante o tempo que estava em terraera a manutenção do barco e dos apetrechos de pesca, até porque as redes de linho e ticum precisavam de ser frequentemente reparadas, lavadas e encascadas, e por isso os pescadores e as mulheres da sua família, todos se envolviam no seu conserto(ALMEIDA, ROQUETE 1890: 132).

Vila Chã, como foi dito anteriormente, tinha pescadores a tempo inteiro e lavradores que também pescavam, sendo que o número de pescadores de rio e de mar andariam pelos 354, em 1890.

Uns anos depois, a força de trabalho de Vila Chã traduz-se em: Quadro 9 Força de trabalho de Vila Chã

O autor não refere a partir de que idade eram considerados homens.

Homens Rapazes com +12 anos Mulheres Raparigas com + 12 anos

100 42 12 12

65 Fonte: ALMEIDA, ROQUETE 1890: 133

Na pesca costeira era normal uma companha ter seis homens, dois barcos e uma rede. Cada membro contribuía com uma parte dos elementos essenciais para a pesca (redes, barco, apetrechos, …) e assim a divisão dos lucros era feita por quinhões iguais (ALMEIDA, ROQUETE 1890: 134). Para a pesca da sardinha a situação seria semelhante, mas as companhas não eram planeadas e usavam-se duas redes. A divisão do lucro era feita de igual modo, mesmo por mulheres.

Formavam a companha da lagosta duas a quatro pessoas e, como na pesca á linha, por exemplo da faneca, os lucros eram em separados, isolando-se aquilo que cada um pesca (ALMEIDA, ROQUETE 1890: 135).

No Inquérito de 1890 ficou o registo, através dos impostos pagos, da captura anual de:

289.000 sardinhas

26.995kg de peixe diverso

61.426kg de marisco (inclui o pilado)

A maioria destes produtosconsumiam-se localmente e, quando havia excesso, eramvendidos para Matosinhos e Póvoa e a lagosta ia para o Porto (ALMEIDA, ROQUETE 1890: 140).

No início do século XIX, do total de 900.000kgs de peixe pescado no ano de referência, um terço viria a ser salgado e/ou seco e exportado para Trás-os-Montes e o restante, fresco, além dos sítios já mencionados, ia para Braga, Guimarães e Minho,

0 20 40 60 80 100 120 140 160 Sardinha Peixe diverso

Lagosta Pilado Molusco (a pé)

Gráfico 3 Força de trabaho em Vila Chã

Raparigas Rapazes Mulheres Homens

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(LOBO 1812: 271) pagando-se ainda, em 1812, a décima, 2/10 do lucro de todo o peixe pescado montante repartido igualmente entre a Real Casa de Bragança e as Religiosas Beneditinas de Vila do Conde.

O arrais, ou mestre, é o responsável pela embarcação e elementos que nela se encontrem, incluindo o seu comportamento, e também pela logística. Se a remuneração é dada por quinhões, recebe um pouco mais devido às tarefas que realiza. As capacidades necessárias para ser arrais granjeavam-lhes um grande prestígio e estavano topo da hierarquia social local (AMORIM MADUREIRA 2001: 78). Os arrais tinham contacto com o mar desde muito novos e reuniam vastos conhecimentos e uma enorme experiência que lhes dava a capacidade de lidar com este elemento, eos capacitavapara a transmitir aos mais novos, sendo pessoas muito respeitadas. Os arrais têm quase uma tendência de linhagem, que se relacionada, precisamente, com o precoce contacto com o mar e a transmissão de conhecimentos (AMORIM MADUREIRA 2001: 79).

A formação académica, apesar de vários esforços em sentido contrário, não tem praticamente qualquer influência sobre este assunto. Apesar de ultimamente haver escolas profissionais, escolaridade mínima obrigatória, exames, …, o arrais é ainda valorizado pelo conhecimento empírico que tem do mar e da navegação, o uso que faz das artes e o domínio e aperfeiçoamento das técnicas, … que coloca uma companha em vantagem sobre outrae dita o sucesso da pescaria, quando o recurso que usam é um bem comum(AMORIM MADUREIRA 2001: 79). Uma das capacidades “exigida” ao arrais era o conhecimento sobre os melhores locais para pescar – apelidavam-nos mascatos, que é o pássaro usado como indicador do local onde estão os cardumes, pois consegue identifica-los desde o alto, caraterística que o arrais devia partilhar.

Estes pesqueiros, conhecidos como mares,receberam o nome de quem o descobriu, de alguma caraterística física ou de uma terra próxima. São localizados por triangulação com referências terrestres (pode ser uma rocha, um farol, uma casa, a torre sineira de uma igreja, …) e mantidos em segredo, para que outros pescadores não usem esta fonte de lucro. Por este motivo, há mares que são redescobertos e rebatizados várias vezes (MARTINS 1999: 235). Esta “toma de posse” de porções de mar passa a ter contornos de herança, ou seja, “os mestres atuais da pesca local e costeira [pescam] nos mesmos fundos que os pais, tios e avós.” (MARTINS 1999: 236). Estes mares, conforme as caraterísticas e o peixe que têm, indicam o tipo de aparelho a usar. Podem ser Profundos – com mais de 200 braças, ou seja, cerca de 440metros – a Beirada de Fora – que fica

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entre as 58 e as 63 braças, entre perto dos 130 e dos 140 metros – as Pedras da Faneca – que têm cerca de 38 braças, que não chega ao 85 metros – e a Beirada de Terra – que fica pelas 20 braças, ou seja quase 45 metros (MARTINS 1999: 245). Os fundos são identificados por uma sonda artesanal, ou seja, uma pedra ou um bocado de chumbo, preso com um fio, que é untado com sebo, depois baixado ao mar por vária vezes e logo recolhidopara analisar o que traz agarrado (areia, pequenas pedras, algas, …).

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