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Harold Brooks (1980): Novas formas de aproximações

Entre 1979 e 1980, Harold G. Brooks, outro célebre crítico shakespeareano, dedicou-se à discussão Sêneca e Shakespeare. Não se trata de uma tomada de posição dentro da discussão. Seus dois textos, ―Richard III, Unhistorical Amplifications: The Women’s Scenes and Seneca‖ e ―Richard III: Antecedents of Clarence’s Dream‖, escritos na mesma época, possuem algumas características novas. Ambos se situam em apenas uma peça de Shakespeare; cada artigo busca limitar a investigação, o primeiro às cenas envolvendo as mulheres das peças e o segundo tratando da narração do pesadelo que Clarence tem enquanto está preso na torre. Tal abordagem, essencialmente restritiva, não havia sido discutida com uma tradição que, apesar dos três ataques, permanecia estável em seu principal pilar, John W. Cunliffe.

Enquanto ocorre a inovação em se restringir o objeto da análise, ainda há uma carga da metodologia antiga aliada às outras formas de se tratar as relações entre os dois autores. Isto é bem perceptível no texto no qual Brooks trata do Duque de Clarence, em um breve artigo publicado na Shakespeare Survey de 1979. As aproximações são feitas por passagens paralelas, analogias, semelhanças de contexto e palavras muito próximas, relações que valem tanto para Sêneca como para, Ovídio, Virgílio ou um poeta contemporâneo de Shakespeare, Edmund Spenser.

O texto levanta as mais diversas possibilidades, Brooks chega à conclusão de que, quanto ao pesadelo, há a prevalência da fonte Faerie Queene127 (1590) de Edmund Spenser. Porém, sua abordagem para qualquer outra possibilidade entre as elencadas poderia ser proposta no final, e ainda assim, seria tão convincente como aquela que fora escolhida. Ocorreria uma negação à influência de Sêneca por sua opção a um autor e livro coêtaneo de Shakespeare e Ricardo III? Esta seria uma forma de tratar a questão bem enquadrada ao se pensar no universo – não muito distante – de Howard Baker e G. K. Hunter. No entanto, não se trata de uma negação ou uma afirmação, mas de um estudo de

127 Faerie Quenne: Longa obra épica de Edmund Spenser, escrita entre 1590 e 1609 (Cf. ROCHE, 1978, p. 7).

Extremamente simbólica e alegórica, a obra divide-se em muitos livros, cada um lidando com um tipo de virtude.

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fontes, no qual Sêneca é, conscientemente, mais uma opção. Apesar de o tragediógrafo latino ocupar a maior parte do texto, a opção foi por Faerie Queene.

Segundo Brooks, o episódio de Clarence é um evento ficcional, pois não há nas crônicas ou em algum lugar uma fonte sobre esse evento.128 Já para o sonho que antecede a batalha de Bosworth – na qual o Rei Ricardo III será derrotado por Henrique Richmond – há, em Holinshed, a referência.129 Uma das partes mais importantes – e também complexas – do relato do irmão de Eduardo IV é o seu diálogo com uma tradição bem difundida na época, que trata da visão em sonho do inferno. É possível encontrar essas referências em Induction (1554?), de Thomas Sackville, e no fantasma de Andrea da Spanish Tragedy, de Thomas Kyd. Também está presente em outras representações literárias, como no Livro VI da Eneida, e na Odisseia.130 Com exceção da obra de Homero, todas as outras obras elencadas por Brooks aparecem quase juntas quando Baker fez a defesa da tradição inglesa, opondo-se à influência de Sêneca.

Em Sêneca existem cerca de 25 passagens que descrevem o Hades, a maioria delas em Hercules Furens. Na obra possivelmente senequiana, Otávia131, há uma passagem semelhante de um pesadelo e o relato do que fora sonhado.132 Cassandra em Agamemnon tem uma visão de seus familiares enquanto que os rituais feitos em Édipo permitem que Creonte seja interpelado pelo rei assassinado de Tebas, Laio. Harold Brooks após tratar do episódio do pesadelo de Clarence, chega à conclusão de que se trata de um eco spenceriano e não, como aponta ao longo do seu texto, algo senequiano. Tanto o relato do Duque aprisionado, quanto outros dois eventos de Ricardo III não são encontrados em nenhum outro lugar. Essas cenas – sem precedentes diretos – tornam-se os alvos das análises do crítico. Essa escolha é fundamental para dar ao crítico certo isolamento histórico e distância da maior e mais influenciadora fonte de Shakespeare, a obra do historiador Raphael Holinshed, trabalhando com momentos de riqueza poética histórica.

128 BROOKS. ―Richard III: Antecedents of Clarence‘s Dream‖, 1979, p. 145.

129 Cf. HOLINSHED. Chronicles of England, Scotland and Ireland, III, 1547, p. 438. 130 BROOKS. Op. cit., 1979, p. 145.

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Octavia (Otávia): peça atribuída a Sêneca na qual se narram fatos que aconteceram em um futuro após a morte do filósofo, entre eles a morte de Otávia, esposa de Nero. Sêneca, nesta peça, é também um personagem, um conselheiro de Nero sobre o jogo do poder e as responsabilidades. Basicamente a peça trata da queda da casa de Cláudio.

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Em seu segundo artigo, ―Richard III, Unhistorical Amplifications: The Women‘s Scenes and Seneca‖, publicado em 1980, ele trata da cena do cortejo de Lady Anne por Gloucester, logo no início da peça. A última das três cenas ficcionais é o lamento do conjunto de mulheres.133 O tom já se diferencia do texto precedente, pois neste são tratadas as relações dadas como senequianas já no título do estudo; contudo, sua abordagem metodológica será distinta. Geoffrey Bullough, um estudioso minucioso das fontes de Shakespeare, em sua obra monumental Narrative and Dramatic Sources of Shakespeare (1957-75), apresenta uma vasta e rica diversidade para apontar as prováveis fontes e relações das obras shakespereanas com possíveis predecessores, tanto dramáticos quanto literários, sem se isolar em nenhum momento em uma fonte fixa ou um vício de se tentar vincular um determinado autor ao cânone shakespeareano. Sua obra fornece pistas, levanta hipóteses, entre elas Ricardo III e obras de Sêneca. Bullough aponta o cortejo de Anne e aquele feito a Megara em Hercules Furens e as lamentações de várias gerações de mulheres em As Troianas e aquele de Ricardo III.134 Os oito volumes do trabalho de Bullough apontam para um amplo ecletismo como uma característica-chave das peças de Shakespeare.

Tratando das personagens femininas, Brooks propõe que cada uma das mulheres presentes na peça de Shakespeare corresponderia a uma do tragediógrafo latino, entre Ricardo III e As Troianas. Contudo, duas das quatro seriam historicamente esperadas: Elizabeth e Anne. Na peça Henrique VI (1592)135, que faz parte da tetralogia da qual a tragédia Ricardo III é a última parte, a rainha Margaret é uma personagem essencial, mas no período coberto pela parte final, historicamente, ela já estaria morta há alguns anos. Esta intervenção é o que Brooks chama de ‗unhistorical amplification‘. Para ele, o triunfo senequiano é a quarta mulher, a Duquesa de York, ausente em todas as partes anteriores,

133 BROOKS. ‗Richard III, Unhistorical Amplifications: The Women‘s Scenes and Seneca‘, 1980, p. 721. 134

BULLOUGH. Narrative and Dramatic Sources of Shakespeare, v. III, 1960, p. 236-7; 306-17.

135 Henry VI (Henrique VI): conjunto de três peças históricas, escritas por Shakespeare, no início da último

década do século XVI (Cf. LULL, 2000, p. xxxi), que, ao lado de Ricardo III, formam a primeira tetralogia que cobre da morte de Henrique V à vitória de Henrique Richmond (Henrique VII) em Bosworth. Um detalhamento de seus acontecimentos e sua importância serão desenvolvidos no Capítulo 3.

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que ocupa um papel importante por três razões: a relação entre ela e seu filho Ricardo; sua posição entre as quatro mulheres e a figura da ―grande mãe‖.136

A relação com Sêneca ocorre com essa grande figura materna dos troianos, Hécuba, e tem início com as condenações e as profecias catastróficas relacionadas ao nascimento de Ricardo e de Páris. Nas crônicas de Holinshed e Hall, além do Mirror for Magistrates, existe a referência ao mau agouro e ao ventre.137

From forth the kennel of thy womb hath crept A hell-hound that doth hunt us all to death (Richard III, Ato IV, Cena iv, versos 47-8) Do canil do teu ventre apareceu

Um cão danado que dá caça a todos Até a morte;

(Ricardo III, Ato IV, Cena iv)138 That foul defacer of God‘s handiwork

Thy womb let loose to chase us to our graves (Richard III, Ato IV,Cena i, versos 53-4) Teu ventre vomitou-o neste mundo Para nos perseguir até o túmulo (Ricardo III, Ato IV, Cena iv)

Segundo Brooks, as correspondências entre as personagens femininas falam mais alto que qualquer tipo de paralelo e, além disso, indicam um tipo de ‗dívida‘. As demais relações são compostas pelos pares: Andrômaca e Elizabeth; Políxena e Anne; Helena e Margaret.139 Como tais personagens pertencem à dupla de obras tratadas nesta dissertação, o desenvolvimento de suas relações será discutido posteriormente.

Quanto ao cortejo de Lady Anne, a relação é tratada não somente com Hercules Furens, mas também são sugeridos ecos à Fedra. Na primeira peça, sobre Hércules e seu retorno dos doze trabalhos, Lico é um tirano que tomou o governo de Tebas, depondo o Rei

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BROOKS. Op. cit., 1980, p. 723.

137 BROOKS. Op. cit., 1980, p. 723-4.

138 Todas as traduções de Richard III para a língua portuguesa são de Ana Amélia Carneiro de Mendonça (Cf.

SHAKESPEARE, 1993).

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Creonte, durante a ausência de Hércules. Solteiro, assim como Gloucester, o tirano procura um casamento nobre e tenta convencer Megara, a esposa de Hércules, a ser a rainha de Tebas ao seu lado, que o nega veementemente. Anne, em uma situação semelhante, é convencida por Ricardo. A preparação para a abordagem, a tentativa de justificar os atos do passado e o tratamento dado pelas personagens masculinas é semelhante entre os dois pretendentes.140 A viúva Anne é convencida, enquanto que Megara, não.

O elemento de Fedra, nesta mesma cena, diz respeito à sequência da espada, em que o suposto apaixonado, na tentativa de demonstrar o seu amor, oferece um punhal à pessoa amada para que ela o despoje da vida, uma vez que foi rejeitada. Neste ponto, a primeira diferença são aqueles que se ajoelham, Ricardo de um lado e do outro uma mulher, Fedra. Tanto Anne como Hipólito, diante de tal declaração, derrubam as armas. Para Brooks, ambas as semelhanças, o cortejo e a derrubada das espadas, com as duas obras de Sêneca em uma mesma cena não-histórica de Ricardo III aproximam as obras.141 É digna de nota essa conclusão, pois há o cuidado de se falar em proximidade de obras e não entre autores, algo até então praticamente inédito nessa discussão.

Tematicamente e estruturalmente são cenas semelhantes; apesar de diferirem em seu resultado e em seu contexto geral, são, ainda assim, muito semelhantes. Quando a situação é levada em consideração, percebe-se que principalmente o argumento da espada perde um pouco de sua força quando se observa que Fedra não corre tanto risco quanto Ricardo. Este matou o marido e o sogro de Anne, deixando-a sem ninguém. Ela larga a espada dizendo ―Arise, dissembler; though I wish thy death, I will not be thy executioner‖ (―Levanta, falso; quero ver-te morto, / mas não hei de ser eu o teu carrasco‖ Ato I, Cena ii, versos 187-8). Já Hipólito não tem motivos tão fortes e não se encontra em uma situação limite como a filha de Warwick. A queda da espada acontece, mas devido ao aviso do retorno de Teseu, o seu pai e esposo de Fedra. Há, nesta cena, um medo ou fraqueza, mas não há, visivelmente, a raiva e o desejo pela morte daquela em estado de paixão, e, consequentemente, o desejo de ser um carrasco.

140 BROOKS. Op. cit., 1980, p. 728-30. 141

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Brooks afirma que o episódio de Hipólito dificilmente possa ser negado como uma fonte.142 Uma provável origem sim, que funciona muito bem quando colocada junto aos elementos de Hercules Furens, e, nessa mescla de obras, conseguiu-se um bom resultado, algo que espanta o próprio Ricardo, que, ao dialogar com o leitor/espectador, após a saída de Anne, coloca seu sucesso em pauta:

Was ever woman in this humor wooed? Was ever woman in this humor won? (Richard III, Ato I, Cena ii, versos 230-1) Nesse tom, que mulher foi cortejada? Nesse tom, que mulher foi conquistada? (Ricardo III, Ato I, Cena ii)

Nem cortejada, nem conquistada, se a construção, por se diferenciar de sua provável fonte senequiana, for considerada original. As crônicas, como foi dito anteriormente, não fornecem subsídios para essa cena. A construção é ‗nova‘, a história é ampliada, demonstrando um ecletismo senequiano muito bem trabalhado em Ricardo III por Shakespeare. No entanto, pensar um cortejo com certo exagero dramático e histriônico por parte daquele que corteja como uma 'dívida' deixaria de lado os exageros cometidos por diversos apaixonados ao longo da literatura dramática ainda que, por outro lado, existam as representações de apaixonados e cortejos que são estritamente delicadas e sutis.

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