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Frank Laurence Lucas, em Seneca and the Elizabethan Tragedy (1922), faz uma longa trajetória, iniciando no período dos três grandes tragediógrafos gregos, passando pelo drama latino e Idade Média até alcançar o Sêneca da tragédia Elisabetana. Ao percorrer esses momentos fica evidente a preocupação com as mudanças e atualizações do gênero, sem deixar de lado a ocasião em que o dramaturgo latino tem suas primeiras aparições no drama Tudor.

Ao tratar do período da tragédia latina, Lucas destaca a importância da mudança de mundo romano decorrente da transformação da República para o Império, a recepção e absorção de diversas culturas, que por sua vez degradaria de forma inevitável a literatura, posterior a época de Augusto. Essas ocorrências teriam tornado os escritores do primeiro século em ultraclássicos e melodramáticos, ou, no caso de Sêneca, as duas coisas.22

A opinião do autor sobre o drama senequiano era aquela em que se acredita que suas tragédias foram feitas para a recitação e não para a encenação. Essa questão polêmica foge do escopo deste trabalho, porém, é no desenvolvimento desse argumento que Lucas alcança um ponto valioso para esta proposta. A recitação teria como resultado a alternância entre monólogos melancólicos e diálogos epigramáticos divididos em interlúdios musicados pelo coro, compondo cinco partes ou atos. Desprovida de ação, o foco passa a ser a linguagem. Na Inglaterra ocorreria, segundo o autor, a percepção do próprio poder do inglês pela mente intelectualmente crua e bruta, seduzida pelas extravagâncias melodramáticas da linguagem bombástica e exagerada de Sêneca.23 Entretanto, seu argumento pode ser rebatido de diversas formas, em defesa da encenação das peças: em relação ao seu raciocínio a respeito de que a narração somada ao diálogo repleto de aforismos poderia levar ao despertar de outra língua; ou em relação ao seu julgamento que, assim como Spearing, trata o homem do século XVI como um bruto sem especificar critérios. Apesar de todos esses pontos, o argumento tem seu valor ao ser Lucas um dos

22 LUCAS. Seneca and the Elizabethan Tragedy, 1973 [1922], p. 53-4. 23

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pioneiros em tentar explicar a recepção de Sêneca nessa época por outros meios que não sejam os paralelos textuais encontrados entre as obras dos dois períodos.

Antes de se falar em influência, ele recorre à semelhança dos mundos, o bárbaro e grosseiro de Sêneca e dos Romanos e aquele da Inglaterra do século XVI. A proximidade e entendimento de mundos é o argumento fundamental do livro de Lucas, e não a existência de uma ou outra passagem paralela, relações que, segundo o próprio autor, são iguais às do tipo geométrico, pois podem ser seguidas até o infinito sem que jamais se cruzem.24

The rising infancy of English drama could find nothing in Classics so near its own level as the declining senility of Roman. Nero‘s Rome had the crudity of surfeit, Elizabethan England the crudity of hunger, his Rome the cruelty of over sophistication and decadence her England the cruelty of raw and primitive youth. […] Seneca was near enough to Renaissance exuberance to appeal to it as a model; classic enough when taken as a model, to impose upon it a wholesome sense of structure and style.25

No que se refere aos elementos que se costuma atribuir a Sêneca, os pontos de encontro que permitem ao crítico levantar a suspeita de influência e débito com o tragediógrafo latino, Lucas é muito claro ao elencar o conjunto de aspectos comuns. São eles: a ocorrência do verso branco, a divisão da peça em cinco atos, a moralização e introspecção, a linguagem retórica, a esticomítia26, o fantasma e a presença de outras ocorrências sobrenaturais.27 Essa organização é fundamental para que as obras críticas posteriores possam estabelecer discussões mais específicas sobre aspectos mais restritos das peças, ou mesmo verificar que uma ou outra obra apresenta uma maior proximidade em

24 LUCAS. Op. cit., p. 118.

25 ―A infância crescente do drama inglês não encontrou nada nos clássicos tão próximo ao seu próprio nível

como a senilidade declinante do romano. A Roma de Nero tinha a crueza do excesso, a Inglaterra elisabetana a crueza do desejo; sua Roma a crueldade sobre a grande sofisticação e decadência, sua Inglaterra a crueldade de uma juventude pura e primitiva [...] Sêneca era próximo o bastante à exuberância da Renascença para atrair para si uma referência; clássico o suficiente quando tomado como modelo, para lhe impor um sentido benfazejo de estrutura e estilo.‖ (Tradução minha). LUCAS. Op. cit., p. 108-9.

26 Esticomítia ou stychomitia é um diálogo em versos alternados empregados em uma forte disputa. Pode ser

vista em diversas peças elisabetanas, inclusive em comédias (Cf. HUNTER, 1967, p. 25). Este recurso é muito empregado por Sêneca.

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todo o conjunto que outra. Por outro lado, ao generalizar as semelhanças entre as obras, corre-se o risco de ser abrangente demais e atribuir a qualquer tragédia com um fantasma e um crime impune o rótulo de ‗senequiana‘. Diferentemente dos paralelos que correm um ao lado do outro, para também recorrer a uma alegoria matemática, esses são os pontos de duas linhas de origens distintas que se cruzam por um momento, apesar de continuarem seus caminhos para lados diferentes. A generalização das passagens paralelas que não levam a lugar algum ressoará por muitos anos.

Percorrendo as peças de 1560 a 1608 que possuem os elementos senequianos elencados acima, praticamente todas aquelas que tratam de vingança, o autor chega à conclusão de que apenas Marston, com Antonio & Mellida28 (1599-1602) e Chapman, com Revenge of Bussy D’Ambois29

(1609-12) mostram definitivamente sinais de influência de Sêneca30 e que mesmo que Shakespeare tenha tido acesso a algum tipo de texto de Sêneca, seja original ou tradução e o tenha utilizado, a quantidade e a importância dada a eles parecem exageradas.31 No entanto, a sua preocupação com a superestimação da influência de Sêneca na obra de Shakespeare era apenas a vanguarda do que estaria por vir.

Essa obra de Lucas situa-se como um importante marco na história dos estudos sobre a influência de Sêneca no período elisabetano. Foi reeditada diversas vezes ao longo do século XX, sendo um dos mais importantes estudos sobre essa questão ainda nos seus anos iniciais. Diferentemente de seus anteriores, o achado antológico de paralelos, ao contrário de Cunliffe, é desvalorizado, sendo importante o percurso histórico de Sêneca e do gênero trágico até o período elisabetano, buscando caracterizar algumas peças dessa época como dramas ‗senequianos‘. Contudo, não existe nenhuma tentativa de exaltação do drama elisabetano ou de algum dramaturgo específico devido a isso. Pelo contrário, o traço senequiano é aquilo que não é agradável nas peças analisadas por Lucas. Seu estudo

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Antonio And Mellida: Peça escrita por John Marston em 1599-1602 (Cf. CHAMBERS, 2009, p. 429). Trata-se de uma comédia romântica. Tem sua sequência em Antonio’s Revenge.

29 Bussy D’Ambois: Peça escrita por George Chapman em 1604-7 (Cf. CHAMBERS, 2009, p. 253). Conta a

história de um aristocrata que caíra na pobreza e, em um meio turbulento e violento, procura resgatar sua própria identidade. Possui sua sequência em uma tragédia, The Revenge of Bussy D’Ambois. Nesta, datada de 1609-12 (Idem, p. 254) o irmão de Bussy se envolve com as pessoas responsáveis pela morte do irmão. A peça carrega consigo uma forte carga estóica.

30 LUCAS. Op. cit., p. 117. 31

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também difere de Spearing, por não dar quase nenhuma importância ao papel das traduções elisabetanas como instrumentos de expansão da arte trágica. Com outros objetivos, Seneca and the Elizabethan Tragedy (1922) marca a história da discussão sobre a influência do tragediógrafo latino sobre a tragédia elisabetana com percepções que ultrapassam os textos anteriores, renovando a metodologia de trabalho com essa questão.

Lucas é o primeiro entre os críticos aqui levantados que faz uso de um percurso histórico para se pensar a influência, destacando a proximidade dos mundos vistos por ele. A metodologia usada nas décadas anteriores é colocada em questão, dos paralelos chega-se aos elementos comuns, ou a um conjunto de recursos que seriam a voz de Sêneca no drama elisabetano. É válido pensar como este mesmo grupo é também uma representação daquilo que faz parte das obras trágicas em geral, como a divisão em atos e a linguagem retórica, formando o elo entre a forma propriamente da tragédia desses dois tempos.

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