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O desenvolvimento das ideias da doutrina da qual o trecho supracitado do discurso de Ulisses, em Troilus e Créssida, faz parte torna-se essencial para a compreensão da relação aqui traçada entre Ordem/Desordem e Crise das Diferenças. Para uma melhor compreensão será utilizada, como referência principal, a obra de Tillyard21, The Elizabethan World Picture.

O conceito de Ordem tem seus fundamentos na classificação e hierarquização de mundo Medieval, porém, no Reinado Tudor, e especialmente após a Reforma Protestante, muitos dos detalhes foram deixados de lado. A doutrina refere-se a todos os homens, em um plano teológico superior, não importando suas convicções éticas, i.e, une homens que podem ser pensados, nesta época, como separados em grupos religiosos, como Católicos, Protestantes ou Puritanos. A ordenação tem caráter cósmico, na qual cada parte ou ente do universo possui o seu lugar determinado, desde o mais baixo dos elementos até os anjos. Nada fica de fora. Cada grupo de seres possui o seu representante maior, como o leão ou o elefante entre os animais terrestres, o golfinho22 entre os animais que vivem na água, o carvalho entre as árvores, o Sol entre os planetas, Deus entre os anjos, e claro, o Rei entre os homens. Esse mundo fortemente ordenado por diversas hierarquias estava também modificado pelo pecado humano, tratado com mais detalhes adiante, e pela esperança de redenção.23

Referências à doutrina em obras da época podem ser encontradas nas formas didáticas, como Hooker, em The Laws of Ecclesiastical Policy; Elyot, em The Governor; nas Homílias sobre Obediência, do início do reinado de Elizabeth; e no prefácio da History

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Outras obras como SPENCER, Theodore. Shakespeare and the Nature of Man. Cambridge: CUP, 2009 [1943], originalmente coetânea do trabalho de Tillyard, poderão ser adicionadas para reforçar algumas ideias aqui apresentadas. Este último é a grande referência neste assunto.

22 Embora o golfinho seja um mamífero e não um peixe, nesta classificação a diferenciação entre os animais é

feita pelo elemento em que habitam – como terra, água e ar – e também por suas semelhanças físicas, e não por conceitos e classificações biológicas que pertencem o nosso universo. Em Júlio César, de Shakespeare, Cleopatra faz referencia a esse animal para designar aquele que domina os conflitos entre os navios. Portanto, aquele que dominava as águas.

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of the World, de Raleigh; além das não-didáticas como o Hymn of Love, de Spenser e o já citado Troilus e Créssida, de Shakespeare.24

A passagem em Shakespeare é ao mesmo tempo doméstica e cósmica: a desordem nos planetas pode agitar os mares, fazer tremer a terra e provocar rebeliões na Terra; no ambiente familiar, quando a primogenitura não é mantida; nas guildas e associações, quando a hierarquia não é respeitada. Há equivalência entre Sol, Rei e primogênito da mesma forma que o confronto entre os planetas provocaria disputa entre os elementos naturais.25

ULISSES

O, when degree is shaked,

Which is the ladder to all high designs,

Then enterprise is sick! How could communities, Degrees in schools and brotherhoods in cities, Peaceful commerce from dividable shores, The primogenitive and due of birth,

Prerogative of age, crowns, sceptres, laurels, But by degree, stand in authentic place? Take but degree away, untune that string, And, hark, what discord follows!

(Troilus and Cressida, Ato I, Cena iii, versos 101-110) Se acaso se destrói a hierarquia,

Que é a escada de todo alto desígnio, Toda a empresa se abala. Como podem Classes de escolas, ou comunidades, Pacífico comércio entre cidades, A primogenitura e o nascimento, Prerrogativas, cetros e coroas

Senão por graus manter-se onde merecem? Removam-se esses graus, falhe essa nota, E vejam que discórdia! As coisas entram

(Troilus e Créssida, Ato I, Cena iii, versos 101-110)

Em Macbeth, é possível observar o alcance imenso dessas ideias, no período que se segue após o assassinato do Rei Duncan. Não somente o reinado de Macbeth, mas

24 TILLYARD. Op. cit., 1960 [1942], p. 9. 25

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nas cenas em que pessoas, ainda desconhecendo o que havia acontecido, narram sobre como a noite fora horrorosa, como animais e os elementos tiveram os mais estranhos comportamentos.

OLD MAN:

Threescore and ten I can remember well: Within the volume of which time I have seen

Hours dreadful and things strange; but this sore night Hath trifled former knowings.

[...]

ROSS:

And Duncan's horses a thing most strange and certain Beauteous and swift, the minions of their race,

Turn'd wild in nature, broke their stalls, flung out, Contending 'gainst obedience, as they would make War with mankind.

(Macbeth, Ato II, Cena iv, 1-4; 14-18)

O VELHO:

Setenta anos vivi e guardo memória De horas terríveis e de estranhas coisas. Mas são todas nonadas se as comparo A esta noite espantosa. […]

ROSS:

[...] E, coisa muito Estranha e certa, os dois córceis de Duncan, Soberbos e velozes, os mais belos

De sua raça, enfurecidos subita- mente, despedaçaram suas baias, Lançaram-se ao ar livre, refugando Toda obediência, como em declarada Guerra ao gênero humano.

(Macbeth, Ato II, Cena iv)

Paralelamente à ordem, no plano teológico, está o tema do pecado e da salvação. É possível ver esses temas em diversos locais que tratam da revolta dos anjos, a criação do mundo, a tentação e queda do homem, a redenção e a regeneração através de Cristo. Embora um erro possa ser justificado, o contexto sempre o condenará, como por

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exemplo, na Duchess of Malfi26 (1612-3) ―Indeed all the violence of Elizabethan drama has nothing to do with dissolution of moral Standards: on the contrary, it can afford to indulge itself just because those standards were so powerful‖.27

A desordem e o caos são o produto do pecado que tenta perpetuamente retornar. Esta postura dupla (ordem/desordem) encontra duas fortes fontes: uma religiosa, baseada no Gênesis, no qual o homem, após a queda, afastou-se da perfeição, tornando-se corrompido, assim como em algum nível o universo que o circunda, embora a virtude permaneça; a outra é platônica, na qual o universo seria uma cópia, uma configuração derivada de um universo das formas perfeitas e dos paradigmas, logo, sujeito a imperfeições. Para ambas o homem poderia ir além de suas deficiências e alcançar a perfeição dos céus. A partir desta dupla visão os elisabetanos poderiam combinar extremos de otimismo e pessimismo sobre a ordem de seu mundo.28 A manutenção da ordem, sempre ameaçada pela desordem, tem as mais diversas representações no universo elisabetano. Como foi discutido no capítulo anterior, por exemplo, com relação à figura do tirano, mesmo sendo um governante mau, está ali por desejo divino, é representante maior dos homens, e rebelar-se contra ele contraria a obediência teologicamente imposta, além de corresponder a um sério pecado e, consequentemente, instaurar a desordem. O usurpador, por outro lado, passa a ser o maior motivo de rebelião, pois ele roubou um local sagrado e pode estabelecer uma época de caos, cabendo à população restaurar um herdeiro digno de usar a coroa e remediar a ordem. Nesse caso gera-se a desordem que significa a recuperação de uma ordem em um universo já desordenado pela presença do próprio usurpador.

A Ordem poderia ser representada de três formas distintas: uma cadeia de seres, planos correspondentes e uma dança cósmica. A corrente, a Chain of Being (Cadeia dos Seres), é uma ideia que encontra seu início em Platão, no Timeu.Partindo dos pés de Deus ao mais simplório dos seres inanimados, cada ser, com exceção dos extremos, sempre

26 Duchess of Malfi: peça escrita por John Webster em torno de 1612-3 (Cf. MARCUS, 2009, p. 5). Trata de

uma história de amor entre uma duquesa viúva que deseja se casar novamente, mas é proibida pelos irmãos. A peça segue um ciclo interminável de vinganças e proibições, terminando em muitas mortes. O contexto essencialmente patriarcal é o grande responsável pela instauração da ordem/desordem.

27 ―Na verdade toda a violência do drama Elisabetano não tem nada a ver com a dissolução de padrões morais,

pelo contrário, ele tem recursos para tolerá-los, exatamente porque esses padrões eram fortes demais.‖ (Tradução minha). TILLYARD. Op. cit., 1960 [1942], p. 19-20.

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possui um que está acima e outro abaixo, portanto, nenhum deles ficaria ausente desta corrente, cabendo a cada um o seu lugar em uma longa cadeia de existências. Uma vez estabelecida a posição, existe a possibilidade de mudança, pois essa corrente também funciona como uma escada.29

A ideia de que cada um tem o seu lugar definido também pode ser encontrada novamente em Platão30, na República, em que cada cidadão tem o seu lugar na pólis platônica. O tema da escada dos seres é visto também no humanista florentino Pico Della Mirandola (1463-1494), no Discorso sulla Dignitá dell’uomo (Discurso sobre a Dignidade do Homem), com ideias amalgamadas de Platão e Plotino entre tantos outros, apresentando o ser humano na posição intermediária: entre bestas e anjos, podendo, então, regenerar-se e aproximar-se de Deus, ou degenerar e aproximar-se dos animais.

Segundo Tillyard, na Tempestade Shakespeare demonstra cuidado com a cadeia dos seres, uma vez que Caliban tem sua forma animal que não chega à humana, enquanto Próspero, pelo aprendizado, não consegue transpor a barreira da humanidade. A lição de Próspero acaba sendo que ele jamais se livrará do Caliban que vive dentro dele, isto é, suas limitações com o elo inferior da corrente.31

A divisão do universo naquela época também tem características muito peculiares. Ele divide-se em sete ou nove esferas, variando de acordo com o tempo ou a fonte, seguindo a concepção geocêntrica da Terra no espaço. Deus está além das estrelas, enquanto os homens estão abaixo da Lua. O satélite natural da Terra tem um papel importante para a compreensão do plano celeste. Tudo que está acima dela é perfeito, imutável. A Lua por si só é mutável; logo, aquilo que está abaixo dela conserva essa característica, do mal, do imperfeito e do decaído, isto é, o chamado reino sublunar. As divisões hierárquicas para cima da Lua tornam-se mais confusas, uma vez que, após a Reforma, muitos detalhes foram deixados de lado, mas a ideia geral seria a de pelo menos um tipo de anjo para cada esfera celeste, e para cada divisão a sua nota musical própria. Em

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TILLYARD. Op. cit., 1960 [1942], p. 19-20.

30 O diálogo de Timeu situa-se, temporalmente, no dia seguinte ao da discussão da República; logo no início,

quando se falará da cidade dos Atlantes, é feita uma recapitulação do que fora discutido anteriormente, aceitando este modo de organização do povo legendário que os diálogos Timeu e Crítias abordam.

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posição inversa à da Lua está o Primum Mobile, a mais alta das esferas.32 As concepções de planos correspondentes e dança cósmica – as outras duas formas de representação da ordem no universo elisabetano – serão retomadas de acordo com a necessidade no avançar deste capítulo.

Os elementos básicos não estão relacionados na Chain of Being, pois são elementos constituidores dos seres. Como elemento puro eles possuem uma hierarquia interna. O mais baixo é a terra, seguido da água, do ar e finalmente o mais elevado dos elementos é o fogo. Entre eles algumas outras características são relevantes, como o fato de o ar e fogo serem elementos que não descem e apenas sobem. Já a terra e a água jamais sobem e sempre descem. No último livro das Metamorfoses pode ser encontrado um belo relato sobre os elementos, visto na tradução elisabetana de Sandy.33 Abaixo a tradução moderna do trecho:

God and kindlier nature composed this strife; for He ripped land from sky, and sea from land,

and separated the ethereal heavens from the dense atmosphere. When he thus had released these elements and freed them from the blind heap of things, he set them each in its own place and bound them fast in harmony. The fiery weightless element that forms heaven's vault leaped up and made for itself upon the topmost height. Next came the air in lightness and in place. The earth was heavier than these and, drawing with it the grosser elements, sank to the bottom by its own weight. The streaming water took the remaining place, and held the solid land confined in its embrace.

(Metamorphoses, Livro III, versos 21-31)

Vale destacar as ideias principais levantadas. O universo ordenado, resquício do que se chama, hoje, de Idade Média, estava ainda muito presente em diversos meios de expressão artística da época, demonstrando sua vivacidade de diversas formas, por tratados, homílias, poemas e peças de teatro. Cada homem ocupa o seu lugar no universo e as relações do universo são mantidas por um frágil equilíbrio em um universo constantemente

32 TILLYARD. Op. cit., 1960 [1942], p. 37-42. 33

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ameaçado por inconstâncias próprias de um mundo, localizado abaixo da mutável Lua, e habitado por seres imperfeitos, expulsos do Paraíso, ameaçados, constantemente, pelo pecado e pela desordem. Uma vez com esta noção, a inscrição no teatro The Globe e frase célebre de Como Gostais, respectivamente, ―totus mundus agit histrionem‖ e ―all the world‘s stage, and all the men and women merely players‖34

estão relacionadas a essa visão. Essa riqueza filosófica exprime concepções de mundo extremamente importantes para a compreensão da época, sem as quais não seria possível proceder com uma análise pela Teoria Mimética, ou ela ficaria muito empobrecida. O entendimento de peças históricas, que se baseiam, naturalmente, na relação ordem e desordem, perde sua beleza estética, reduzindo-se a tramas complexas com dezenas de personagens e, geralmente, deixadas de lado por sua complexidade. Obviamente, o esforço histórico e literário é tão necessário quanto a compreensão filosófica da doutrina de ordem.

A guerra civil é uma das consequências da desordem, quando ingleses voltam- se contra os próprios ingleses, geralmente por motivos, direta ou indiretamente, relacionados à sucessão real ou ao excesso de poder ora do Rei, ora da Igreja ou de ambos. O restabelecimento do poder, do herdeiro correto, é o equivalente à retomada da ordem. Isto é, as questões relacionadas ao rei sempre envolvem toda a nação. A queda de Ricardo III, na batalha de Bosworth, e o estabelecimento dos Tudors abre, em um período sem longas guerras estrangeiras, a reflexão sobre as vidas dos reis que os precederam, em um esforço filosófico, histórico e moral de se entender a história e a política. Seu maior reflexo serão as History Plays. Tratando de reis já distantes e com mais segurança, por se abordar uma dinastia que caíra para a fundação de outra, encontra-se um terreno fértil para, nas artes, se pensar os motivos que levam à oscilação de ordem e desordem, em suas causas e consequências.

É possível perceber que, na concepção Elisabetana, toda ordem sucede a um período de desordem, ou, como aponta Girard, todo período de paz é resultado de conflitos anteriores. Ambos têm como pano de fundo uma explicação teológica, na qual o plano superior, transcendental ou religioso, procura explicações para evitar a violência, fazendo

34 Respectivamente, ―o mundo todo é um placo‖ e ―todo o mundo é um palco e todos os homens e mulheres

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uso dela mesma. O período coberto pelas peças históricas é, portanto, repleto de temas nos quais é possível identificar o desejo mimético como motivador dos conflitos.

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