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T S Eliot (1927): Preocupação com a Tradição

O poeta e dramaturgo americano Thomas Stearns Eliot também se interessou pela questão, em especial pelas traduções para o inglês feitas durante o período elisabetano. Em 1927, reeditou a compilação de todas as tragédias de Sêneca, publicadas por Thomas Newton no final do século XVI. Essas traduções eram de difícil acesso. As edições da década de 60 do século XVI, bem como a compilação das obras, estavam com as suas únicas edições em museus e a única reimpressão, feita pela The Spencer Society cerca de 40 anos antes, eram muito escassas. Todos esses fatores contribuíam para a falta de atenção dada às traduções.32 Segundo o poeta, essas obras têm ―[a] considerable poetic charm and quite adequate accuracy, with occasional flashes of real beauty‖.33

Sobre Sêneca e os elisabetanos, Eliot escreveu dois ensaios datados de 1927. Assim como Cunliffe, ele é incisivo ao afirmar, inicialmente, que ―No author exercised a wider or deeper influence upon the Elizabethan mind or upon the Elizabethan form of tragedy than did Seneca‖34

, porém essa impressão vai aos poucos tomando outros contornos, ainda favoráveis a uma influência, mas não mais tão ortodoxa. Ao mesmo tempo em que mantém a tradição, é ponderado ao colocar, de forma sutil, alguns problemas no método e como essa questão vinha sendo tratada, ao dizer, sabiamente, que primeiro se deve ter uma boa impressão sobre o que vem a ser a tragédia de Sêneca para que sua influência não nos influencie.35 Ou mesmo em outro ensaio, quando diz que a influência é muito mais clara no outro que nas peças originais, pois o que é visto no elisabetano é diferente do próprio Sêneca.36 Em ambos os casos, Eliot preocupa-se pelo que se entende pelo dramaturgo latino e o valor dado a ele no início do século XX.

Ele aponta três problemas para se falar de Sêneca no século XVI: o caráter, as virtudes e os vícios das próprias tragédias latinas; as direções em que as traduções

32 SPEARING. Op. cit., p. vii-viii.

33 ―Um encanto poético considerável dotado de uma precisão boa e muito adequada, além de toques

ocasionais de verdadeira beleza‖ (Tradução minha). ELIOT. ―Seneca in Elizabethan Translation‖, 1958a [1927], p. 65-6.

34 ―Nenhum autor exerceu uma influência mais abrangente ou profunda sobre a mente elisabetana ou sobre as

forma da tragédia elisabetana como fez Sêneca‖ (Tradução minha). ELIOT. Op. cit., 1958a [1927], p. 65.

35 ELIOT. Op. cit., 1958a [1927], p. 76. 36

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influenciaram o drama elisabetano; e por fim, a história dessas obras, o seu papel em ampliar a importância de Sêneca, além do seu aspecto poético.37 Tais ponderações pertinentes seriam tratadas por alguns estudiosos com o passar do tempo.

Dialogando com os trabalhos de seu tempo, Eliot faz o julgamento sobre alguns pontos atribuídos a Sêneca que foram desenvolvidos nessa discussão: a tragédia dos horrores foi superestimada, assim como a falta de elaboração sobre a linguagem bombástica e a negligência sobre a influência no pensamento. Enquanto alguns atribuíam a Sêneca aquilo que não era agradável no drama elisabetano, Eliot considera que, se esses tipos de representações violentas fossem tão peculiares, Sêneca não teria sido recebido como foi. Eliot também comenta os horrores das tragédias de Shakespeare e Marlowe como Titus Andronicus38 (1590-3) e Jew of Malta39 (1589), que, sem dúvida, ―would have made the living Seneca shudder with genuine aesthetic horror‖.40

Situando-se nessas peças que têm a vingança como tema principal, Eliot faz considerações pouco convincentes sobre o tema da vingança: as peças clássicas, como o Tiestes41, de Sêneca, fazem parte de uma série de tragédias cujo desfecho baseado na vingança é bem conhecido por todos. Já Hamlet (1602) e Titus Andronicus, de Shakespeare, ou a Spanish Tragedy42 (1592), de Thomas Kyd, não

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ELIOT. Op. cit., 1958a [1927], p. 65.

38 Titus Andronicus: Peça do período inicial de Shakespeare. Escrita possivelmente entre 1590 e 1593 (Cf.

McDONALD, 2000, p. xxix), próxima da Comédia dos Erros e Henrique VI Parte I. Conta a história de Titus, um general romano que retorna da guerra vitorioso, mas com muitas perdas para sua própria família. Cabe a ele escolher o próximo sucessor do imperador romano. Seu nome é cotado para que seja o próximo. Contudo, ele recusa e aponta o primogênito, Saturnino, como o sucessor de direito. O casamento entre o novo imperador e a rainha dos Godos, Tamora, capturada nas guerras e oferecida ao governante, fornece condições para que os danos causados a ela sejam vingados causando muita dor para Titus. Uma série de vinganças torna essa peça peculiar pelo seu tom macabro, ao mesmo tempo em que retrata uma decadência de valores seguida da restauração, pela violência em diversos graus de intensidade, de uma ordem moral, civil e familiar. A mais marcante delas é, ao final da peça, o banquete oferecido à Tamora e ao Imperador, no qual os dois filhos da rainha são servidos como prato principal por Titus e sua filha.

39 Jew of Malta: Peça escrita por Christopher Marlowe, em torno de 1589. (Cf. CHAMBERS, 2009, p. 424).

Conta a história de um mercador judeu chamado Barrabas. Após uma tomada de impostos pelo governo de Malta, Barrabas fica completamente pobre e planeja sua vingança contra aqueles que o prejudicaram.

40

―teriam feito o verdadeiro Sêneca estremecer com genuíno horror estético.‖ (Tradução minha). ELIOT. Op. cit., 1958a [1927], p. 79.

41 Thyestes (Tiestes): Peça de Sêneca que conta a história dos irmãos Atreu e Tiestes. Este último finge ajudar

o irmão, quando, na verdade, pretende se vingar dele por coisas acontecidas na passado. Sua vingança é servir ambos os filhos como refeição ao infortunado Atreu, que desconhece o que está acontecendo. A peça é circundada pelo espírito de vingança logo no seu início, quando Tantalus, avô de Atreu e Tiestes, fala das maldições que envolvem sua casa.

42 The Spanish Tragedy: Peça escrita por Thomas Kyd, em torno de 1592 (Cf. GURR, 2009, p. xix). Possui

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possuem essa característica, caracterizando-se como peças de investigação e vingança. Esse tipo de enredo não é o explorado nas peças de Sêneca que recontam mitos gregos, com belas narrações e descrições repletas de efeitos verbais.43

Discordando da relação com a obra de Kyd ou Hamlet, a influência de Sêneca se restringiria a obras anteriores, como Gorboduc44 (1562), Gismond of Salerme45 (1567-8) e Jocasta46 (1566), produzidos nos Inns da Corte na mesma época, entre 1559 e 1567, em que as tragédias latinas estavam sendo traduzidas para círculos sociais semelhantes. Ainda sobre essas três peças, as duas primeiras, somadas a Locrine47 (1594)48, teriam influenciado o drama popular, sendo The Misfortunes of Arthur já tardia para esse movimento.49 De forma muito sutil, Eliot parece atacar a tese central do livro de Cunliffe e de toda essa tradição que envolve exatamente a peça de Thomas Hughes, The Misfortunes of Arthur, e levantar certo ceticismo sobre a abrangência de Sêneca no drama inglês.

Com seus ensaios, o domínio absoluto da influência de Sêneca sobre o drama elisabetano começa a sofrer suas primeiras rachaduras, dando espaço para a primeira

Andrea, um comandante espanhol, é morto em batalha e sua amada, a princesa da Espanha, passa a ser cortejada por um de seus amigos, Horatio; porém, os interesses diplomáticos fazem com que ele seja morto para que a princesa seja entregue ao príncipe português. Este último, é o responsável pela morte de Andrea. A morte do jovem Horatio desperta a loucura em seu pai, Hierônimo, que acaba se tornando o personagem principal da peça. Após meditar muito sobre a vingança, acaba usando o recurso do teatro e a representação de uma peça sangrenta, nas quais os atores são: o próprio Hieronimo, a infeliz princesa e também os responsáveis pela morte de seu filho. De uma representação, a peça torna-se realidade e a válvula de vingança de Hierônimo e, de certa forma, a de Andrea.

43 ELIOT. Op. cit., 1958a [1927], p. 78-83.

44 Gorboduc: Primeira peça a ser escrita usando o verso branco. Composta a quatro mãos, por Thomas Norton

e Thomas Sackville, em 1562 (Cf. WINSTON, 2005, p. 11). Trata de problemas referentes à sucessão real. Conta a história do Rei Gorboduc, que, apesar dos conselhos de seus membros da corte, resolve dividir o reino entre seus dois filhos, Ferrex e Porrex. A divisão causa divergências entre os seguidores de cada um dos irmãos, que induzem cada um a recuperar/conquistar a parte do outro. O caos da guerra civil iniciada por eles atinge a família real e a população que se revolta contra o rei. Um filho mata o outro, a mãe vinga o filho perdido com a morte do outro, que havia sido condenado ao exílio. Posteriormente, ela e o rei são mortos pela população enraivecida. Sem herdeiros, sem rei e rainha, o caos reina no final da peça. A temática da divisão do reino será melhor tratada, décadas mais tarde, com o Rei Lear, de Shakespeare.

45 Gismond of Salerne: Peça escrita por diversos autores, em 1567-8 e atuada no Inner Temple e,

posteriormente, em 1591, representada sob o título de Tancred and Gismunda. Foi a primeira peça inglesa cuja temática era italiana e com dois amantes protagonistas (Cf. CUNLIFFE, 1912, p. lxxxvi-vii).

46 Jocasta: Peça escrita por Gascoigne e Kinwelmershe, em 1566 (Cf. CHAMBERS, 2009, p. 518). Elaborada

como uma tradução da Giocasta de Ludovico Dolce, esta versão seria uma tradução em língua latina da peça grega Fenícias, de Eurípedes (CUNLIFFE, 1912, p. lxxxiii-iv).

47 Locrine: Peça cuja autoria é debatida, datada de 1594 (Cf. GAUD, 1904, p. 409). Conta uma história de

vingança ambientada no período de fundação da Inglaterra.

48 Provavelmente fora escrita na década de 1580. 49

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tentativa de romper com essa tradição estabelecida por Cunliffe, procurando novas formas de compreender Sêneca nesse período. A abordagem de Eliot passa, então, a ser temática quanto à tragédia de sangue e histórica de um período em que dramas baseados em Sêneca – cuja data é coetânea das traduções – revelam traços de um movimento ainda não explorado de um possível círculo literário que possuía acesso às obras traduzidas.

Observa-se com Lucas e Eliot um momento de reflexão, pequenas pausas para se pensar o que se entende por Sêneca e os elisabetanos. Vale destacar a afirmação inicial de Eliot, embora seus textos tratem de percursos históricos e temáticos, de que nenhum autor exerceu uma influência tão abrangente e tão profunda quanto à forma da tragédia elisabetana como Sêneca. Embora sejam obras que não neguem a influência, apresentam outras hipóteses para determinados traços, e são claras ao demonstrar que não estão totalmente alinhadas com uma tradição generalizada e a favor da influência de Sêneca sobre os dramaturgos do tempo de Elizabeth I. Não tardaria para que, em pouco tempo, surgisse uma contra-influência e novas teorias para enriquecer a discussão.

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