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Em meio a uma cultura tão vasta, da qual foram selecionados alguns itens, e a partir da leitura de suas concepções dentro do mundo elisabetano, foi possível perceber a imensidão e a quantidade de variações e possibilidades que o resgate de alguns temas trouxeram à reflexão da questão da influência. A recepção de Sêneca, muito ignorada na maioria dos textos e autores discutidos no capítulo anterior, passou a receber atenção recentemente e, por meio dos demais autores e itens aqui levantados, passou a incorporar outras questões, como a fusão cultural em seus diversos nuances.

A discussão político-moral presente nas obras que mesclam tragédia e biografia, como no Mirror for Magistrates, aponta para os diversos caminhos para os quais a Fortuna pode levar o indivíduo, como, por exemplo, a falta de merecimento pelo destino trágico, traço observado em muitas tragédias desse período, porém ausente no didatismo daquelas escritas por Sêneca. A justiça poética deste é substituída pela justiça imparcial da Fortuna, que golpeia culpados e inocentes, permeada pelas leituras e reflexões da Consolação da Filosofia, de Boécio. Essa discussão é muito ampla, alcançando também os ―themes‖ feitos com a reflexão moral das fábulas de Ovídio. Ainda assim, se for observada a tradição trágica, a posição de Sêneca é intermediária entre os deuses que decidem aquilo que acontecera ao herói antes mesmo de seu nascimento, o didatismo de erro-punição senequiano e a distribuição de infortúnios àqueles que erram ou não vistos em Shakespeare. Posição análoga é a recuperação de Sêneca, em uma época em que as interdições artísticas contra a vontade própria – com as peças de moralidade – vão sendo substituídas pelas novas formas, nos Interlúdios, por aqueles que fazem parte de uma nova geração, nascida e educada para servir aos desejos do Rei e também, desta forma, satisfazer suas próprias vontades em sintonia com a época na qual Sêneca fora traduzido. Assim, a recuperação pode ser vista como a posição intermediária do homem entre o Feudalismo e um Capitalismo desenvolvido.

A impressão deixada pelo estudo do verso branco foi de um recurso utilizado em sintonia – e talvez com a troca de experiências – entre poetas italianos e ingleses que tentavam encontrar um correspondente em suas línguas para o hexâmetro dactílico

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virgiliano. Um resgate a um autor latino diferente de Sêneca e que acaba por ser uma métrica diferente da usada na própria tradução do tragediógrafo. Além disso, o formato obtém sucesso e persiste após a era elisabetana como John Milton. Atribuir o verso branco dramático a Sêneca torna-se algo pouco provável diante do que fora levantado. Outro fator é o aparecimento desta métrica na dramaturgia no mesmo período em que as obras de Sêneca estavam com seus hendecassílabos e outros formatos que não o blank verse. A opção em não usar o estilo do autor em sua própria tradução não seria algo estranho visto a imensa capacidade de síntese de tendências diversas.

O uso do tirano, por exemplo, demonstrou que a concepção elisabetana não comporta a maioria dos personagens ‗tiranos‘. O dano ao bem-comum e a ilegitimidade na sucessão mostraram-se como um grande divisor entre o modelo senequiano e o do século XVI. Lico se mostrou o mais próximo do modelo utilizado na Inglaterra, porém, por sua participação curta no enredo e por se tratar de uma personagem secundária, a leitura da tirania em Sêneca sob as luzes do século XVI torna-se ineficaz, restando a palavra tirano apenas como predicado de um déspota que faz uso abusivo do poder. Toda a literatura de espelhos de príncipe e a discussão política expandida por obras como o Mirror for Magistrates tornam o assunto da tirania e seus representantes nas artes, entre elas na arte dramática, algo que não necessitaria e retém muito pouco dos tiranos senequianos, pois os próprios tiranos nas tragédias seguem a concepção de sua própria época, como foi visto com Ricardo III e Macbeth. Sem deixar de lado, claro, os próprios exemplos e manifestos contra a tirania, como La Boétie.

Já com relação aos fantasmas a situação difere um pouco. É possível perceber uma extensa discussão sobre a natureza desses seres mediada por anos e mais anos de disputas teológicas, mudanças na religião nacional, além de séculos de relatos e superstições das mais variadas. Contudo, no uso dramático dessa figura tão marcante é possível observar dois tipos de fantasmas; o ornamental, como o de Kyd, que fica às margens dos acontecimentos, como os fantasmas do drama senequiano; o segundo tipo seria o fantasma como o de Hamlet, dotado de objetividade, que interage com os personagens e possui vontades e desejos que movem toda a ação da peça. O primeiro tipo é claramente herdeiro da tradição trágica clássica, cujo representante anterior é Sêneca. Já o

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posterior é uma evolução, algo que se mescla ao anterior com toda a carga de seu mundo e suprime suas falhas dramáticas. Desta forma, para o fantasma, o uso dramático provê aproximações, em um senso geral, entre as obras do século XVI, em especial de 1560-1590, enquanto que sua concepção geral seja a de um mundo que vivenciou a Reforma e possui disparidades pneumatológicas para entender os fenômenos sobrenaturais.

A referência a Virgílio e Ovídio mostrou-se, como era esperado, imensamente superior e de maior amplitude que Sêneca, seja em quantidade de traduções e adaptações, como em quantidade de reedições, além da variação de formatos. A inclusão de Ovídio na educação e as obras que fazem ―expansões‖ de sua obra alinham-se com toda a tradição literária inglesa, que recorre a exercícios de julgamento moral sobre seus objetos. Virgílio está especialmente relacionado ao resgate imensurável dos episódios narrados nos seus livros mais traduzidos pelos ingleses, o tema de Troia e a história de Enéias e Dido nos livros II e IV. Do sexto livro é absorvido o fenômeno da descida aos infernos. Ovídio forneceu material para que o julgamento da história ou dos atos mais individualizados, como a censura, encontrassem uma expressão metamorfoseada para se exprimirem sob um texto protegido pela obscuridade. A abrangência desses dois autores é infinitamente maior que Sêneca, o que deu a possibilidade – não seguida – a Hunter de determinar aquilo que era comum aos tragediógrafo e ao fabulista somente para Ovídio. Não se trata de substituições, nem de fazer opções imparciais a um ou outro nome, mas, sim, de compreender todo o fenômeno, como foi a postura crítica adotada ao longo do capítulo, de buscar por uma mescla entre o popular e o clássico, entre aquilo que poderia ser resgatado de uma antiguidade e uma tradição longínqua e elementos de festividades e costumes locais, tornando-se um produto estético de elevado valor, cujos sabores são identificados, mas cuja proporção não é clara em meio a tantos ingredientes que compõem a grande massa que acaba se tornando o drama do período Elisabetano.

O Estoicismo, que encontra sua representação nessa época pelos neo-estoicos, não fora analisado, pois seu caráter é imediatamente diluível na constatação acima. Um resgate de uma doutrina filosófica clássica em outro período, séculos mais tarde, que adicionará suas leituras, suas vivências, seu mundo para tornar essa filosofia aplicável e

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relevante àqueles que a resgataram, novamente misturando – pelo próprio ato de resgate – os elementos modernos aos antigos.

Todos esses itens discutidos anteriormente, a história conflituosa da Influência e a verificação do funcionamento dos principais itens no universo ao qual eles foram apontados formam um preâmbulo que prepara o leitor para uma análise cuidadosa da influência de Sêneca a partir de um par de obras. A atual posição já desmitificou muito daquilo que, por costume, se tem como algo aceito. A complexidade do debate equivale à complicação do elemento no próprio mundo elisabetano. A atribuição a Sêneca parece ser – no momento desta reflexão – um escape, uma fórmula que evita a busca de certas concepções complexas e dotadas de muitos caminhos sem respostas exatas no mundo de Shakespeare. Como resultado acaba-se não encontrando os locais em que Sêneca provavelmente se faz presente ou ausente, pois o próprio debate acaba se desenvolvendo em uma espiral ou de forma muito abrangente, mas não nas peças individualizadas. Não sugiro ignorância do historicismo por parte dos envolvidos na discussão, apenas que seus focos foram diferentes bem como suas metodologias variam (formando o que chamei acima de espiral), impedindo muitas vezes de se olhar para a própria história da literatura. A obra de Sêneca escolhida para comparação é As Troianas, que será discutida como uma possível influência para uma das peças iniciais de Shakespeare, Ricardo III (1592).

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