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Talvez os dois nomes mais importantes de autores latinos durante esse período tenham pouca relação com a época por meio de uma obra dramática, mas não há dúvida de que o imaginário elisabetano está repleto de referências às obras de Virgílio e de Ovídio.

Virgílio

A presença de Virgílio está, como foi visto, diretamente ligada à inserção do blank verse na obra dramática e poética inglesa, como uma ferramenta poderosa nas últimas décadas do período Elisabetano. O interesse pelos temas da Eneida parecem se concentrar em duas ocorrências principais: A Guerra de Troia e a história de Eneias e Dido. A guerra de Troia é tema de um retrato muito peculiar feito por Shakespeare em Troilus e Créssida167 (1603). A Rainha de Cartago foi protagonista de uma das tragédias de Marlowe, Dido, Rainha de Cartago168 (1594). Segundo Marlene Soares dos Santos, a Eneida fora a obra mais lida e admirada durante o Renascimento Inglês, em especial pelo fato da crença que os ingleses descendiam de Bruto, o bisneto de Enéias, e, consequentemente admiravam a cultura latina, além que, sua principal cidade, Londres, em uma dimensão mítica, seria uma nova Troia169 que antes se chamara Troynovant, como pode ser observado em peças como Locrine e em obras poéticas como na Faerie Queene de Spenser entre outros locais.

167 Troilus and Cressida (Troilus e Créssida): peça escrita por Shakespeare em 1603 (Cf. CREWE, 2000, p.

xxxi), conta alguns acontecimentos sobre a guerra de Troia. Localiza-se, temporalmente, no sétimo ano dos confrontos. Os valores de guerreiros e heróis já estão totalmente fora de uso, restando apenas Heitor a seguir um código de honra estrito. Aquiles e Ájax são apresentados como possíveis rivais, orgulhosos e mais preocupados com a fama que obtiveram que com o andamento da guerra. Troilus, um dos filhos de Príamo, perde a esposa Créssida em um acordo marcial que previa a troca por um de seus irmãos que fora capturado e ele nada pode fazer a respeito.

168 Dido, Queen of Cartago (Dido, Rainha de Cartago): peça escrita por Marlowe em 1604 e publicada

postumamente (MARLOWE, 2009, p. 109). Seu enredo segue o segundo livro da Eneida, de Virgílio. Eneias é recebido em Cartago, narra a seus anfitriões sobre como Troia caíra. Cupido, por meio de uma intriga entre os deuses, é trocado de lugar com o filho de Eneias; ao carregá-lo, Dido fica perdidamente apaixonada por Eneias. Ele precisa seguir os desígnios dos deuses e ela tenta segurá-lo em Cartago. Quando finalmente Eneias ―escapa‖, Dido não vê mais razão para viver e se atira no fogo, seguida de sua ama e um admirador declarado de Dido, ao qual ela vive desprezando depois de ter sido atingida pelo Cupido.

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Noble Britons sprong from Trojans bold,

And Troynovant was built of old Troy's ashes cold (Faerie Queene, Book III, Canto IX, verso 38)

Ao se observarem os livros da Eneida que foram traduzidos, observa-se que os seis primeiros aparecem mais, com maior destaque para o segundo, quarto e sexto livro. Além de Marlowe, o motivo da Guerra de Troia, bem como seus personagens e pequenos trechos aparecem com frequência na obra de Shakespeare, como se pode ver em Troilus e Créssida cujo cenário da ação é Troia, e em Hamlet, quando Hamlet pede aos atores que recitem versos sobre a morte de Príamo. Outro tema presente é a catábase, do grego katábásis: ato de descer, um tópos literário muito antigo sobre a descida às regiões infernais. Na Eneida está presente no livro VI, quando Eneias desce guiado pela Sibila. Outro autor latino que precisa ser considerado é Ovídio, que ao lado de Sêneca e Virgílio compõem um tipo de unidade na reflexão artística desse período.

Ovídio

Havia uma estima e uma atração tão forte por Ovídio durante a Renascença, que se torna difícil trabalhar e identificar as obras que com ele dialogaram, e acabaram, por si mesmas, metamorfoseando o autor das famosas Metamorfoses. Seu alcance não se limita a um grupo de autores e obras em um determinado lugar, mas atingiu toda uma época.170 Sobre esta recepção Colin Burrow é extremamente sintético e persuasivo:

Ovid, however, had many forms in Early Modern Europe: he was allegorized in commentaries, plundered for rhetorical ornaments in text books, plagiarized in mythological handbooks, read as smut, transformed into highly self-conscious narrative art, and drilled into schoolboys almost every day of their lives.171

170 MARTINDALE. Shakespeare and the uses of Antiquity, 1994, p. 45. 171

―Ovídio, no entanto, tinha muitas formas na Europa do início da Idade Moderna: ele foi usado como alegoria em comentários, tomado para ornamentos retóricos em livros de texto, plagiado em manuais sobre mitologia, lido como obscenidade, transformado em arte narrativa altamente autoconsciente e exercitado nos estudantes em quase todos os dias de suas vidas.‖ (Tradução minha). BURROW. ‗Re-Embodying Ovid: Renaissance Afterlives‘, 2002, p. 303-4.

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É possível encontrar Ovídio em Chaucer, porém, a primeira versão das Metamorfoses data de 1483, traduzida por William Caxton. Posteriormente, em 1513, Flores de Arte Amandi foi traduzida por Wynkyn de Worde. No período Elisabetano encontra-se a Metamorfoses (1565-7), de Arthur Golding, dedicada ao Conde de Leicester. Esta é uma das várias obras que aparecerão em poucos anos, como Heroides (1567), por Tuberville; Tristia (1572), por Chuchyard, e Ibis, por Underdowne.172 A obra que mais importou ao século XVI inglês foram as Metamorfoses, assim como foi a mais influente. O Ovídio mais valorizado era aquele criador de mitos e não o poeta dos Amores.173 Contudo, este último não pode ser deixado de lado por marcar sua presença em algumas obras no final do século XVI.

As Metamorfoses marcam, inicialmente, sua presença, na educação Elisabetana, pelo seu uso nos níveis mais avançados do ensino do Latim nas escolas, geralmente através de um árduo processo de tradução e imitação. A escolha por Ovídio deve-se, principalmente, pelo fato de ser um grande fabulista, pelo qual a filosofia moral poderia ser trabalhada a partir de suas narrações. O autor estava presente também na educação retórica dos estudantes, pois, desde cedo, exercitavam o desenvolvimento dos ‗themes‘, um tipo de exercício no qual a verdade moral da fábula era trabalhada e comentada por meio de discursos e tratados.174 Segundo T. W. Baldwin, ao analisar o currículo escolar da década de 1530, para fins de exemplificação, em Winchester, constata que estes exercícios iniciavam no quinto período escolar e seguiam até, possivelmente, o sétimo, enquanto que o contato com Ovídio se dava no quarto período. Eram trabalhados e memorizados cerca de doze versos das Metamorfoses semanalmente.175

A década da bela tradução de Arthur Golding (1536-1605) é a mesma das traduções de Sêneca, que carrega consigo algumas marcas semelhantes àquelas vistas nestas e em Virgílio, como as alterações e intervenções no texto, além de utilizarem o verso de catorze sílabas. Segundo Raphael Lyne, teria sido a essa a edição que Shakespeare e Spenser teriam tido acesso. Seu caráter nacionalista é marcante quando o tradutor ao

172 LYNE. ‗Ovid in English Tranlations‘, 2002, p. 249. 173 LERNER. ‗Ovid and the Elizabethans‘, 1988, p. 126-7.

174 MASLEN. ‗Myths exploited: the metamorphoses of Ovid in early Elizabethan England‘, 2000, p. 17. 175

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escolher o nome de objetos como frutas, recorre àquelas presentes em seu cenário natal.176 Essa tradução foi imensamente popular, chegando a ser publicada seis vezes durante a vida de Shakespeare.177 Entre os poetas que carregam marcas ovidianas, encontram-se os principais nomes da época, Marlowe, Donne, Shakespeare, Chapman, Beaumont, Ben Jonson178 e Spenser.

Da mesma forma que com a recepção de Sêneca, em 1560 e posteriormente, após a publicação em língua vernacular, ocorre uma fase de retrabalho com o texto ovidiano. Porém, nesse caso, o caráter incisivo para se recorrer ao autor latino é muito mais marcante, por tratar, através da metamorfose – de personagens como Narciso, Eco, Filomela, entre outras histórias bem conhecidas de Ovídio –, de problemas e situações vivenciadas pelos próprios poetas. Porém, diferentemente de Sêneca, não será a partir da tradução de Golding que o fabulista latino terá o seu uso político. De acordo com Maslen, muitos poetas escreveram versões estendidas de mitos individuais das Metamorfoses e estabeleceram uma tradição que alcança o seu ponto máximo em 1590 com os poemas eróticos de Ovídio.179 Neste ponto, o aspecto teatral ainda permanece de lado, enquanto o poético é predominante para se entender o uso, a importância e os percursos do poeta latino na Inglaterra.

Se devido ao seu forte alcance cultural, é difícil, obviamente, saber quando se recorre a Ovídio consciente ou inconscientemente180, essas expansões são um uso de quem sabe exatamente o que está fazendo com a sua fonte. O primeiro deles, de um autor desconhecido, intitulado The fable of Ovid treting of Narcissus (1560), já fornece algumas informações em seu título, como a concepção de Ovídio como fabulista além da restrição do tema em uma de suas narrativas. Sua composição também merece destaque, de suas trinta páginas, as cinco primeiras são reservadas à tradução para a língua inglesa, enquanto que são dedicadas a uma análise moral da fábula as vinte e cinco restantes, que recorrem às diferentes interpretações, como a de grandes nomes como Boccaccio e Ficino. Sua leitura

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LYNE. Op.cit., 2002, p. 252-3.

177 LERNER. ‗Op. cit., p. 121. 178 Cf. LERNER. Op. cit., p. 127-33. 179 MASLEN. Op. cit., p. 19. 180

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do mito trata dos perigos da aplicação desmedida do conhecimento, recorrendo ao personagem Tirésias, e alertando sobre os perigos das leituras erradas de textos e poema obscuros, além de identificar o lado positivo disto, pois tornar o texto obscuro protege o autor da raiva dos poderosos.181 De forma semelhante trabalharam outros autores como Thomas Peend, com The Pleasant Fable of Hermaphroditus and Salmacis (1565); George Pettie, com A Petite Pallace of Pettie his Pleasure (1576); George Gascoigne, com a sátira The Steele Glas (1576) e The Complaynt of Phylomene (1576); William Warner, com Albions England (1586); e John Marston, com The Metamorphosis of Pygmalions Image (1598).182

Maslen conclui que ―the reading and imitations of Ovid‘s Metamorphoses before Shakespeare were very much more sophisticated – and more political engaged – than scholars have often been willing to concede.‖183

Como, por exemplo, com Gascoigne, que traduzira a Jocasta – uma das obras dadas como senequianas –, no The Steele Glas, coloca o Poeta na posição de Filomela, a Poesia é Procne e a ‗Vain Delight‘ passa a ser o Rei Tereu, satirizando, de forma protegida (pois possuía um patrono ao qual também dedica essa obra) a censura com a qual conviveu durante muito tempo.

Gascoigne's characterization of the poet as rape-victim – whether male or female, dame or hermaphrodite – suggests that his poems have been subjected to a shocking act of violence on the part of his enemies, systematically ‗forced‘ in an effort to make them accommodate slanderous meanings. The Tereus figure Vain Delight chooses to ‗ravish‘ Philomene-Satire-Gascoigne as a censor could be said to have ‗ravished‘ Gascoigne's two collections, by forcibly imposing his own sexual obsessions on an innocent or ‗simple‘ text. The process began, Gascoigne claims, as an elaborate attempt on the part of his enemies to gain control of Gascoigne-Philomene's body: that is, to prevent him from exposing the sexual transgressions of the ‗Court‘ (where Vain Delight dwells) by seducing him into taking pleasure in the same transgressions. The failure of this initial attempt at seduction provoked the ravishers to

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MASLEN. Op. cit., p. 19-20.

182 Cf. MASLEN. Op. cit., p. 17-28.

183 ―a leitura e as imitações das Metamorfoses de Ovídio antes de Shakespeare eram muito mais sofisticadas –

e mais politicamente engajadas – do que os estudiosos frequentemente têm sido dispostos a conceder‖ (Tradução minha). MASLEN. Op. cit., p. 28.

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violence: ‗this traytor vaine Delight, / Cut out my tong, with Raysor of Restraynte, / Least I should wraye, this bloudy deede of his' (p. 146). But as with Lavinia, the Philomela figure in Titus Andronicus, the mutilation of Gascoigne fails to restrain him from speaking out against the crimes of his aggressors.184

Gascoigne metamorfoseia a obra, reaproveitando o mito em suas linhas mais marcantes, para que, uma vez protegido pelo escudo da poesia e de seu patrono, possa demonstrar sua indignação frente àquilo que ele chama de ‗vaine Delight‘ de seus censores. Ele lidou com uma violência imaginativa, tanto na matéria-prima da fábula, como a maneira com a qual ele representou e caracterizou seus inimigos e a si mesmo. Maslen aponta a censura como o dano que vem do prazer narcisístico causado pelas classes aristocráticas, mercantis e profissionais da Inglaterra.185

Outro autor que merece destaque é William Warner, com Albions England, que em sua obra narra, de maneira semelhante ao Mirror for Magistrates, a história da Inglaterra, não de maneira crônica, mas alegórica, recorrendo às fabulas para contar os atos dos governantes. A comparação e o julgamento moral da vida e da história inglesa passam a ganhar diferentes contornos – sempre de tom moral – para discussão e popularização, como demonstram a grande quantidade de livros e biografias que foram sendo adicionados às duas obras, que tiveram longa vida na Inglaterra. O uso não-dramático de Ovídio na Inglaterra possui, como tem sido apresentado, os mais diversos desenhos e propósitos e não é somente uma fonte de belas fábulas, como pode parecer à primeira vista.

184 ―A caracterização de Gascoigne é a do poeta como uma vítima de estupro – quer um homem ou mulher,

dama ou hermafrodita – sugere que seus poemas foram submetidos a um ato chocante de violência por parte de seus inimigos, sistematicamente ‗forçados‘ em um esforço para fazê-los acomodar significados caluniosos. A personagem Tereu, Vão Prazer, escolhe violar Filomela-Sátira-Gascoigne, da mesma forma que o censor poderia dizer ter ‗violado‘ duas coleções de Gascoigne, ao forçosamente impor suas próprias obsessões sexuais sobre um texto inocente ou ‗ingênuo‘. O processo tem início, Gascoigne afirma que seus inimigos tentam de forma elaborada ganhar o controle do corpo de Filomela-Sátira-Gascoigne: isto é, para impedi-lo de expor as transgressões sexuais da ‗Corte‘ – onde o Vão Prazer vive – o seduzindo a ter prazer nessas transgressões. A falha de sua tentativa inicial de sedução provocou os violadores para a violência: ‗este traidor Vão Prazer, / Cortem sua língua com a Lâmina da Repressão / Ao menos eu deveria escrever este seu ato sangrento‘ (p. 146). Mas, da mesma forma que Lavínia, a representação de Filomela em Titus Andronicus, a mutilação de Gascoigne falha em impedi-lo de falar contra os crimes de seus agressores.‖ (Tradução minha). MASLEN. Op. cit., p. 25-6.

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A referência à dupla Shakespeare e Ovídio, embora hoje soe um tanto estranha, devido aos gêneros com os quais os autores se destacam, deixa de o ser se for considerada a obra poética do bardo e não sua dramaturgia. Segundo T. W. Baldwin, ―Ovid was Shakspere‘s master of poetry‖, além de que ―no other poet ancient or modern receives such attention‖.186

É bem conhecido o fato de que Shakespeare, em vida, foi comparado a Ovídio, por Francis Meres, em 1598, ao dizer que ―the sweet witty soul of Ovid lives in mellifluous and honey-tongued Shakespeare‖.187 Aqui, Meres se refere a pelo menos duas obras não-dramáticas: ―Venus and Adonis‖ e ―The Rape of Lucrece‖. Possivelmente estão dentro da tradição de expansões de um mito específico de Ovídio, como em Gascoigne e Warner.

A fase dramática inicial de Shakespeare é marcada pela presença facilmente identificável de Ovídio, em uma tragédia e uma comédia, Titus Andronicus e Sonho de uma Noite de Verão, respectivamente. Na primeira, o próprio livro das Metamorfoses é carregado para dentro do palco para contar aquilo que aconteceu com Lavínia, transformando a fábula em relato e dando, talvez, o motivo de vingança ao tão abalado Titus. Segundo Maurice Hunt, de maneira muito clara, ―the leaves of a book disclose a crime hidden by the leaves of a forest‖.188 Na comédia, Shakespeare trabalha com o enredo presente no livro seis, a trágica história de Píramo e Tisbe. Novamente, há uma metamorfose, mas nessa obra trata-se de uma mudança de gênero, em que, do tom sombrio que circunda os dois jovens amantes, o desenvolvimento dos fatos torna-se cômico durante a encenação de Bottom e seus companheiros.

186 ―Ovídio era o mestre da poesia de Shakespeare [...] nenhum outro poeta antigo ou moderno recebeu tanta

atenção.‖ (Tradução minha). BALDWIN. Op. cit., Volume 2, 1944, p. 418.

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―A alma gentil e espirituosa de Ovídio vive na suave e adoçada língua de Shakespeare‖ (Tradução minha). MERES citado por LERNER. Op. cit., 1988, p. 122; MARTINDALE. Op. cit., 1994, p. 47; BURROW. Op. cit., 2002, p. 306.

188 ―As folhas do livro revelam um crime escondido pelas folhas da floresta‖. (Tradução minha). HUNT.

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