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De Henri Focillon (1881-1943) a Warburg: a Vida das Formas (notas de leitura)

E este pensamento vale bem Um pífano

2.5 De Henri Focillon (1881-1943) a Warburg: a Vida das Formas (notas de leitura)

Diante de tal contexto de refl exões em torno da fórmula, nos deparamos com a necessidade também de citar – para minimamente fi nalizar nossos questionamentos – o sistema de relações da chamada “vida das formas”, a partir da obra de Henri Focillon.

Com este autor mergulhamos na ideia de que “a vida age como criadora de formas”. Para ele, a vida natural não pode ser analisada sem uma relação entre as formas: “as relações formais numa obra e entre várias obras constituem uma ordem, uma metáfora do universo” (FOCILLON, 1983 p.12-13).

Essa complexidade, natural, para Focillon, se coloca pelo fato de que forma é ao mesmo tempo “matéria e espírito” e “forma e conteúdo”. Entrar no mundo das formas, portanto, é uma tentativa de alcançar aquilo que é único, que se afi rma como um todo e absoluto,

pertencendo, simultaneamente, a um complexo sistema de relações (Ibidem, p. 11).

“A menor obra de arte valerá mais do que uma coleção inteira de comentários e memórias feitos pelos artistas mais conscientes do seu trabalho e mais hábeis a manejar as

palavras” (Ibidem, p. 13). Para o autor, teremos sempre a tentação de procurar para a forma

um signifi cado diferente do que ela tem e de confundir a noção de forma com a de imagem – que implica a representação de um objeto – e, sobretudo, com a de signo. Enquanto o signo signifi ca algo, a forma não tem signifi cado para além de si própria. “O conteúdo fundamental

da forma é um conteúdo formal...” (Ibidem, p. 13).

Para Focillon, as formas vivem no espaço, na matéria e também vivem no espírito. “A vida das formas no espírito, pressente-se logo, não é decalcada da vida das imagens e da

recordação” (Ibidem, p. 75). A exterioridade da forma é o seu princípio interno e a sua vida no

espírito é uma preparação para a vida no espaço.

Por fi m, numa tentativa de substantivar a forma, o autor nos oferece: “As formas são mais ou menos intelecto, imaginação, memória, sensibilidade, instinto, caráter; são mais ou menos vigor muscular, espessura ou fl uidez do sangue. Operam, contudo, sobre estes dados como educadoras, não lhes dando um momento de repouso; criam no animal humano

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CAPÍTULO 2 - FORMAS FOTOBIO-GRÁFICAS (“FORMASQUE PENSAM”)

Por que deveríamos, então, duvidar das potencialidades que levam os componentes sígnicos de uma imagem ou de várias imagens, ao se associarem? O que teriam a nos oferecer em termos de ideações de outra ordem (em termos de formas, de traços, de cores, de movimentos, de vazios, de relevos, de interações, de outras pontuações sígnicas e signifi cativas)? São questões que mereceriam ainda aprofundamento e para as quais encontramos como referência importantes trabalhos como o excelente resumo do livro de Focillon feito por outro historiador da arte, Louis Grodecki (1968, vol.7, p.71-72).

Escreve:

“O caráter essencial da obra de arte é, para Focillon, o fato de que ela tem uma forma, e que sua principal signifi cação é formal; ela não é um signo (embora possa ser legitimamente interpretada como tal), mas uma realidade, reunindo nela, dados materiais, espaciais ou visuais, e mentais, que são originais e autônomos, no sentido de que não resultam das condições externas à criação e não refl etem atividades não artísticas [...] Se a obra de arte pode e deve ser estudada na sua realidade presente, e de certo modo “estático” enquanto interpretação da matéria (material, instrumento, processo...) e interpretação do espaço real ou fi gurado (dimensão, volume, luz, cor...), ela somente será entendida no contexto, reconhecida como ‘um fato histórico’, acontecimento posto sobre o percurso de um desenvolvimento. Ela é, sempre, o ponto de chegada e o ponto de partida de experiências ligadas entre elas. Essas ‘genealogias´ , formais e complexas, esses encadeamentos que Focillon chama de ‘metamorfoses’ dão forma a sua verdadeira signifi cação, pois se cada obra de arte é ’única’, ela participa da universalidade da evolução”.

Falando de “metamorfoses”, logo, sentimos todo o potencial de aproximações entre Focillon e seu contemporâneo alemão, Aby Warburg, o qual sonhava (e, parcialmente, realizou) seu Mnemosyne, uma história da arte sem palavras. Aby Warburg é outro importante interlocutor no tocante à questão da “forma que pensa”. Para não nos alongarmos demasiadamente sobre um assunto remetemos a questionamentos levantados pelo próprio

Warburg, redescoberto por Georges Didi-Huberman193.

***

19 De imediato, remetemos a um artigo (no prelo) de Etienne Samain: Aby Warburg. Mnemosyne, pulsões e

arquivos culturais advindos das imagens. In: SAMAIN, Etienne (org). O quê [como] Pensam as Imagens,

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Podemos, após essas refl exões voltar às nossas cinco histórias de vida. Em que medida – é esta a fi nalidade de toda essa refl exão –, as três montagens (20,10 e 3), elas também, chegam a se tornar: “formas que pensam”. Se tomarmos os processos de montagem dos três conjuntos de fotografi as escolhidas pelo Seo Moacir, notar-se-á, de um lado, que ao ter de reduzir o conjunto de 20 para 10 fotografi as, o informante eliminou – como já foi dito – todas as fotografi as que diziam respeito a sua vida profi ssional, ao seu eu profi ssional. Devia sim, nas últimas três fotografi as selecionadas, falar (na ordem: da construção de sua casa, que foi proporcionada com a ajuda do pai; da situação de sua esposa, enquanto grávida, o fato sendo realçado na medida em que ela se encontra em situação de elevação, nos degraus de um acesso a uma ponte sobre um rio; quanto à terceira, ele centraliza a fi gura dele, como pai, sorridente e orgulhoso, ao lado de uma de suas três fi lhas, que segura, nas mãos, o diploma de formatura. Ao fazer estes movimentos de escolha, o Seo Moacir não renunciava ao seu eu, mas o situava numa dimensão mais externa: dele com o cosmos. Com efeito, as três fotografi as têm em comum de nos falar de “construção”, de “criação e ascensão” e de “crescimento intelectual”.

Em outras palavras, toda a vida do Seo Moacir poderia também se resumir em torno de três palavras: ascensão, esperança e perpetuação. Sem esquecer que a terceira fotografi a que centraliza Seo Moacir entre duas mulheres: a esposa branca e a fi lha mulata, sendo ele, o único negro presente àquela solenidade. Poder-se-ia, ainda, levantar outra questão: ao examinar as três fotografi as [Ver: Dobra 3B], onde o Seo Moacir, além de afastar todas as fotografi as referentes ao seu trabalho [1a 6], tinha também excluído a fotografi a da formatura de sua fi lha e duas de sua infância. O que vem a explicar a reinclusão da fotografi a de formatura nas três fotografi as fi nais? Talvez, nunca saibamos.

Repensando enfi m as montagens de Dona Celeste, vê-se claramente que ela passa, da família do circo (CF02), imediatamente seguida para a cena de casamento e para um projeto de constituição de uma família mais universal. Para terminar, (CF25), ela, durante a homenagem póstuma ao seu marido, que dá nome ao hospital municipal.

Diferentemente de Seo Moacir, Seo Manoel Rodrigues Seixas, nas três fotografi as fi nais escolhidas [Ver: Dobra 3B], traça três momentos importantes, que pontuam sua existência: a primeira fotografi a remete a sua primeira educadora, a professora Maria Aparecida e a sua primeira infância; a segunda, diz respeito a um acidente de locomotiva, ocorrido durante sua vida adulta como ferroviário, episódio que muito o abalou; e a terceira, marca a apoteose de sua vida pública, quando na condição de vice-presidente saúda o ex- governador de São Paulo, Paulo Maluf.

Tomaremos o exemplo do conjunto de 20 fotografi as de Seo Manoel como uma metáfora visual de um pequeno fi lme, já que o informante nos indicou a forma vertical (como

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a de uma tira de fotogramas de um fi lme) como sendo a mais apropriada para a sua história de vida. Neste formato vertical, nos tornamos mais sensível para observar, entre outras evidências, que todas as fotografi as escolhidas por Seo Manoel têm o formato “paisagem” (horizontal) e não “retrato” (vertical), como se nosso informante, no seu trem, mirasse sempre a extensão da linha do horizonte dos trilhos da ferrovia. Não por acaso, o próprio informante justifi ca a sua escolha pela forma vertical com os seguintes dizeres:

“Gostei da vertical. É, porque aqui né, essa locomotiva tá aqui... Ficou à esquerda. Pra visão é melhor aqui né... é o negócio do olhar né. Você já fi xa o olhar, logo de cara já... Elas todas, é, fi cou... é uma sequência né?

Nota-se que para o informante o vertical está associado à ideia da locomotiva; ao

olhar de cima (do trem) para o horizonte (da paisagem vista dos trilhos); à fi xação do olhar;

à sequência. Propomos olhar para o fotograma a seguir, então, na forma vertical (a eleita pelo informante) como o fl uxo, de um fi lme que passa. Aproximamos foto-a-foto, quadro- a-quadro, como se não houvesse “cortes”, mas emendas, formas que se juntam, dialogam, associam-se, aproximam-se ou distanciam-se. E nos perguntamos: “o que pensam as imagens (a forma) das fotografi as de Seo Manoel?” Pensariam o que Seo Manoel não necessariamente pensou?

Eis algumas refl exões que poderíamos fazer em torno desses arranjos. Certo é que podem nos oferecer muitas outras possibilidades, que deixaremos a cargo de futuros pesquisadores.

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Representação do conjunto de fotografi as escolhido e ordenado por Seo Manoel no formato de uma tira de fotograma de um

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Capítulo 3

I

MAGEM

–E

SCRITA NAS

F

OTOBIOGRAFIAS

“A análise da escrita, muitas vezes faz a economia de uma refl exão aprofundada sobre seus laços com a imagem. De tal modo, que os debates que ela suscita na cultura ocidental raramente levaram em conta, até o presente, que esta cultura possui um sistema de escrita peculiar: o alfabeto”. (Marianne

Simon-Oikawa, 2001)201

Ao longo de nossa pesquisa, temos insistido, várias vezes, sobre o fato de que sem jamais, renegar o verbal, demos prioridade às imagens na criação de outro modo de pensar e de realizar histórias de vida. No capítulo que abrimos, trataremos de um duplo assunto.

Num primeiro momento, procuraremos esboçar algumas refl exões sobre as relações entre imagem e escrita, conscientes de que tudo o que se encarna numa história de vida, confi gura nosso pensamento e molda nossas lembranças e é veiculado por nossos órgãos sensoriais e pelos contextos socioculturais nos quais estamos inseridos.

E num segundo momento, metaforicamente, estabeleceremos outra relação, desta vez, entre lembranças, essas outras imagens – geralmente afetivas – e, no nosso caso, reveladas por meio de fotografi as, quando afl oram sobre o tecido sempre ativo de nossa memória, lugar e suporte de outra escrita vivencial.

20 Ver o Prefácio do livro L’écriture réinventée: Formes visuelles de l’écrit en Occident et en Extréme Orient.

Atas do Colóquio organizado por Marianne Simon-Oikawa na Casa Franco-Japonesa. Tóquio: 6-8 de novembro de 2001. Paris: Publicação do Centro CEEI (Centro de Estudos da Escrita e da Imagem), da Universidade de Paris Diderot – Paris 7. A autora remete aos trabalhos de Anne-Marie Christin (dir.) Histoire de L’écriture. De l’idéogramma ou Multimedia. Paris, Flammarion, 2001 e da mesma autora, ao L’image écrite ou la déraison

graphique. Paris, Flammarion, 1995 (Reedição 2001). Ver também o site do Centro de Estudos da Escrita e da

Imagem, disponível em http://www.ceei-paris7.fr . Neste mesmo Prefácio, Marianne Simon-Oikawa acrescen- tará: “O alfabeto ocidental que se fundamenta sobre uma análise binária da língua em vogais e consoantes, não leva em conta o suporte sobre o qual essa escrita está inscrita, nem seus aspectos gráfi cos [...] diferentemente da escrita japonesa que soube conservar plenamente viva a parte visual do signo escrito” (p.8).

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