• Nenhum resultado encontrado

P ARTE II H ISTÓRIAS DE V IDA E D IMENSÕES R EFLEXIVAS

1.1 A noção da “Montagem” aplicada às Fotografi as

P ARTE II H ISTÓRIAS DE V IDA E D IMENSÕES R EFLEXIVAS

FOTOBIOGRAFIA: Por uma Metodologia da Estética em Antropologia

77

Temos geralmente uma visão distorcida do conceito de “montagem” que, pensamos, ser reservada ao mundo cinematográfi co. O fato de o termo evocar logo uma operação decisiva da arte cinematográfi ca, não deve, no entanto, signifi car a necessidade de confi ná-lo neste único universo cultural e no horizonte deste singular suporte imagético. Tratamos da “montagem” de uma peça teatral, da “montagem” de um jornal ou revista, da “montagem” de uma jóia, da “montagem” de uma empresa, da “montagem” de um governo, de uma equipe de futebol, de uma barraca ou de uma lona de circo... Fala-se de “montagem” evocando um buquê de fl ores ou até o cabeleireiro, que não ignora a bela “montagem” de uma “mise en plis”. Monta-se um ateliê, monta-se um romance, monta-se uma máquina... A própria palavra “fotomontagem” é defi nida pelo dicionário Houaiss como “técnica de reunir duas ou mais imagens distintas para criar uma nova composição”.

Partindo, desta vez, de outro universo de criação, a literatura, Muriel Pic, num artigo bem inspirado, intitulado “Littérature et ‘connaissance par le montage’” (2006, p.147-177) torna a defi nição ainda mais clara quando escreve: “O ‘conhecimento pela montagem’ convida a repensar as relações da literatura e da memória, do legível e do visível, do imaginário e da história” (PIC, 2006, p.148). Em torno da questão da montagem gravitam fi guras intelectuais, ‘constelações de autores’, entre os quais, destacamos Walter Benjamim, Aby Warburg e Georges Bataille, cada um deles, tendo, desde o Livro das Passagens ao Atlas Mnemosyne e à

revista Documents, descoberto na montagem uma metodologia e um modo de conhecimento

[grifos nossos]” (PIC, 2006,p.148-149).

Não excluiremos deste modo o conceito de “montagem” falando de Fotobiografi as. Isso basta, também, para lembrar ao leitor que, tanto o conceito como nós, somos complexas montagens de tempo e de espaço, um cumprido fi lme, a nossa existência, que tem, porém, “começo e fi m”. Estamos apenas de passagem, em perpétuo processo de montagem, de

desmontagem, de remontagem numa sociedade, que para se manter viva, precisa, sempre, se

reorganizar e se remodelar.

As “histórias de vida” que estudamos - priorizando as imagens - representam deste ponto de vista, no nosso entendimento, pequenos fi lmes compostos por fotogramas (20, 10, 03 imagens) que, efetivamente, os informantes se dispuseram a “montar”, por meio de fotografi as, que eles próprios escolheram e organizaram.

Se nos propusemos, todavia, a discutir aqui alguns aspectos da “montagem” relacionados a imagens fotográfi cas, será por uma tríplice razão básica:

FOTOBIOGRAFIA: Por uma Metodologia da Estética em Antropologia

78

A primeira consiste no fato que, em nenhum momento desta pesquisa, pedimos aos

nossos informantes para ordenar os pequenos pacotes de 20, 10 e 03 fotografi as. Essas cinco pessoas idosas foram as responsáveis – os montadores – pelas suas respectivas e efetivas montagens, portanto, isso signifi ca, pelos menos, que, para elas, tais ordenações têm, naturalmente, um valor memorial e afetivo signifi cativo e, provavelmente, hierarquizado.

A segunda e a terceira razões dizem respeito ao observado que os informantes

submeteram-se também a uma tríplice operação: a ordenação de um conjunto de 20 fotografi as, depois de 10 e fi nalmente de 3 fotografi as, híbridas, já que, em ambas, tratavam-se ao mesmo tempo de operações de desmontagem (de corte), além de uma operação de remontagem, isto é, de uma nova reunião organizada e signifi cativa de fotografi as. As operações revelaram, de um lado, “evidentes perdas”, e de outro, “acentuados reforços” de um provável movimento existencial. Em outras palavras, entendemos que a montagem é sempre uma operação de ordem processual de “seleção, de modifi cação e de articulação de partes heterogêneas já existentes” (FONTANILLE e PÉRINEAU, 2002, vol. 7, p. 7-14).

Se for verdade que uma imagem colocada ao lado de outra (ou de outras) sugere e proporciona novos lugares passíveis de perceptos e de afetos, há de se convir que o conhecimento por imagem pode diferir de uma montagem para outra, por via de novas

confi gurações formais. As mensagens, consequentemente, que emanarão desses sucessivos

e múltiplos (re)arranjos – diversifi cados, reorganizados, cada vez mais, no caso, rarefeitos (20,10,03) permitem pensar que os traços principais das histórias de vida que procuramos revelar, privilegiando o conhecimento por imagens – tomaram confi gurações de ordens diferenciadas. Fato que pode enriquecer a qualidade das “histórias de vida”, preferencialmente encaradas a partir de um sistema de imagens que condensa, ao mesmo tempo em que vai revelando – de modo mais preciso que em relação à fala – uma realidade vivida.

Essas operações de montagem, desmontagem e remontagem, no nosso caso, poderiam nos reconduzir aos importantes experimentos do conhecido “Efeito Koulechov” o qual revelou e demonstrou, - tornando-se legendário - que, quando dois planos se justapõem ou quando um plano se coloca entre dois outros nasce ou se expressa algo que não estava contido em nenhuma dos planos tomados separadamente (EISENSTEIN, 2002b). Fascinado por esta descoberta, Eisenstein não cessará de explorar e de teorizar os recursos expressivos (grifos nossos), considerando o fi lme como um discurso articulado que se pode elaborar minuciosamente a

fi m de convencer e de conquistar os espíritos. A unicidade desta linguagem é para Eisenstein,

o ‘fragmento’ que não é necessariamente igual ao “plano”, mas que é um elemento da cadeia fílmica, capaz de ser decomposto em diversos outros elementos, tais como luminosidade,