• Nenhum resultado encontrado

Primeiro percurso: a escolha de 20 fotografi as

C ELESTE P IRES DA C OSTA F ERRARI (CF)

2. Primeiro percurso: a escolha de 20 fotografi as

Após um período de reconhecimento mútuo entre pesquisadora e informante, o que equivale dizer a três meses, foi solicitado uma mesma tarefa a cada uma dessas cinco pessoas idosas: dedicarem-se à revisitação de fotografi as pessoais que possuíssem em seus baús com a fi nalidade de escolherem 20 imagens, das quais mais gostassem e que melhor pudessem representar as suas trajetórias de vida.

Os contatos pessoais – entre pesquisadora e informantes – se prolongaram, até o momento em que cada um se sentiu pronto para apresentar sua escolha e o que não imaginávamos plenamente, até então, comentá-las espontaneamente. Comentários de certo modo muito singulares, na medida em que decorriam e se processavam no vaivém de um olhar posto sobre cada imagem, perpassando, ao mesmo tempo, o conjunto de fotografi as. Estas apresentações, comentadas, do conjunto de 20 fotografi as dos “baús” foram integralmente gravadas e transcritas (ver Anexos). Os documentos visuais coletados neste processo foram organizados em forma de uma prancha com o conjunto de aproximadamente 20 fotografi as oferecidas pelos informantes.

Antes, no entanto, de recebermos concretamente as 20 fotografi as eleitas pelos informantes, pudemos observar por meio da leitura (relatos transcritos) dos resultados desta cumplicidade, que cada uma dessas cinco pessoas idosas realizou um trabalho que denominamos de “reconhecença”. Essa descoberta se deu a partir do momento em que passamos a seguir alguns dos movimentos de uma primeira exploração dos dados dessas entrevistas. O termo “reconhecença” pertence ao vocábulo dos marinheiros e remete ao que Houaiss (2001) designa como sendo esse(s) “aspecto(s) notório(s) de terra que permite(m) ao navegante saber em que parte do litoral está”: pode ser um promontório, um boqueirão, tal declive rochoso que corre em direção ao mar ou a uma praia de fi na areia branca...

Essa metáfora pode contribuir para compreendermos o que representou para os informantes a “tarefa” de escolher um conjunto de 20 fotografi as, dentre as centenas de outros documentos que repousavam nos seus baús. Colocados, de certo modo, ante outra paisagem – a do desenrolar de uma existência –, tiveram que navegar à procura de “reconhecenças”, no horizonte e na trama de suas vidas: aqui o “bordado de um vestido de casamento”, lá a imagem do “picadeiro de um circo onde passei minha infância” (Dona Celeste); noutra a “construção da primeira casa, graças, ao incentivo do meu pai” (Seo Moacir), ou, a lembrança do “dia da minha formatura” (Dona Maria Teresa). Investidos da capacidade única de navegar

FOTOBIOGRAFIA: Por uma Metodologia da Estética em Antropologia

28

pelas lembranças de seus baús, nossos informantes foram exercitando um apurado trabalho prévio que foi o do reconhecimento (de fi sionomias, lugares...), passando pela identifi cação (de espaços, momentos...) e, chegando, geralmente, a uma nomeação (de pessoas, locais, datas...).

Frequentemente, Dona Celeste, ao “conversar” com as suas fotografi as, utilizava sinais indicativos (de tempo, de espaço) to tipo: “aqui é...”; “aqui são...”; “aqui foi...”; “isto aqui foi...”; “olha aqui...”; “este é...”; “... e aqui foi quando...”. Em outros momentos, “dialogava” consigo própria procurando, dentro da fotografi a ou fora dela, impressões, sinais, rastros, vestígios que lhe permitissem, ora o reconhecimento, ora a identifi cação de datas, de nomes, de lugares: “Agora, eu não me lembro!”; “Que seria então isso?”; “Deixa eu ver pra cá. Aqui foi...”; “Eu não me lembro bem, mas eu acho que foi em ...”; “Como é que chamamos...(...)”

Essas “reconhecenças” são signifi cativas especialmente porque antecedem a uma “escolha” mais precisa de uma ou de outra imagem e porque, evidentemente, antecipam-se à “montagem” da série de imagens escolhidas. Constituem-se um território que valeria a pena explorar melhor se quiséssemos descobrir algumas das operações cognitivas concretas

ativadas, quando imagens e memórias se encontrem e se conjugem (BRUNO, 2003, p.74)61.

Desta forma, as entrevistas realizadas nos surpreenderam não somente por causa da longa duração da gravação, mas, sobretudo, em função dos desdobramentos aos quais tal processo conduziu e que apresentaremos a seguir.

Essa proposta, concretizada por esse primeiro movimento da pesquisa – a escolha de 20 fotografi as por parte de cada um dos cinco informantes –, levou-nos a desvendar a riqueza metodológica da articulação da fotografi a com o registro verbal. Deparamo-nos com a profundidade de diferentes leituras que os resultados coletados em campo poderiam nos oferecer, em torno das entrevistas (relatos orais) e de fotos avulsas, pequenos retratos e álbuns cheios de histórias, guardados, neste caso de pesquisa, por pessoas velhas. Experiências, até então cravadas no silêncio singular da fotografi a, foram se rompendo pelo desvendamento e voz que emergem da memória da pessoa idosa, num momento de vida em que suas lembranças se cruzam com o tempo do envelhecimento.

6 Na dissertação de mestrado apresentamos mais detalhes e oferecemos exemplos de todo o processo de “reco-

nhecença” realizado pelos nossos informantes. Ver: capítulo 2 Primeiros Olhares: Movimentos de um Percurso, (p. 74) de Retratos da Velhice: um duplo percurso metodológico e cognitivo.

FOTOBIOGRAFIA: Por uma Metodologia da Estética em Antropologia

29

Entramos, desta forma, no universo dos baús fotográfi cos e dessas fotografi as selecionadas, guiados pelo idoso, nosso informante, e seguimos uma viagem com cada um deles. Fomos transportados para um fi lme de vida, às vezes, muito próximo do quadro da fotografi a, como numa cena de cinema que surge na tela, e noutras distante da imagem, para temáticas e horizontes talvez visualmente inalcançáveis. Descobríamos, no entanto, que histórias, que permaneciam nos entreatos de um quadro para outro, de uma fotografi a escolhida, para outra, eram reveladas pela ausência-presença da imagem, uma particularidade potencial da visualidade, quando numa viagem traçada pelos caminhos de uma memória-viva.

Acompanhamos esta viagem e seguimos o percurso desta memória, mergulhando nas sucessivas camadas da fotografi a e articulação desses fragmentos visuais e desses relatos orais num processo de construção e de narração de uma história de vida.

FOTOBIOGRAFIA: Por uma Metodologia da Estética em Antropologia

30