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E este pensamento vale bem Um pífano

C APÍTULO 3 I MAGEM –E SCRITA NAS F OTOBIOGRAFIAS

3.3 Imagem–Memória

Eluard fala da “página” – “sobre todas as páginas lidas, sobre todas as páginas brancas, escrevo o teu nome”– no segundo quarteto do poema, e Christin tem razão de fi rmar sua tese central a partir daquilo que escreve o poeta. Resta que o mesmo cita, antes e depois, outros suportes, não apenas reservado ao surgimento da escrita, mas, ao contrário, abertos à inscrição de outras lembranças na nossa memória e imaginário. Com outras palavras, nas nossas histórias de vida. “Escrevo o teu nome sobre meus cadernos escolares, sobre a minha carteira, sobre o eco da minha infância”; “Escrevo o teu nome sobre a areia e sobre a neve” [um nome que o vento, provavelmente, levará ou que a neve derreterá]; “Escrevo o teu nome sobre a árvore, sobre a coroa dos reis, sobre ninhos”. “Escrevo o teu nome sobre a selva e sobre o deserto [onde provavelmente se perderá... e será desta vez um dos esquecimentos de nossa memória, isto é, de nossa história de vida]. E outros suportes ainda “para escrever o teu nome”: pedras, sangue, armas, cinzas, imagens douradas. E se essas “imagens douradas” fossem precisamente as fotografi as, essas iluminâncias, com intensidade maior ou menor, tecem nossas histórias de vida, semelhantemente a estrelas e a constelações que, num céu noturno, convidam a terra e o céu a se unirem num diálogo sem fi m?

Os suportes de nossas memórias são múltiplos como são as escritas humanas. Não que a nossa abóbada memorial seja da mesma natureza que a abóboda celestial e de seus discursos possíveis com os deuses. Nossa abóbada é sim, a tela nobre sobre a qual se depositam, dialogam e até se enfrentam nossas lembranças verdadeiramente vividas: a memória é o suporte, fundamentalmente, imagético e imaginário de nossas histórias de vida. Essas lembranças não são apenas de ordem racional, mas são geralmente – e inconscientemente – os espaços e expressões de nossas sensibilidades e paixões ante a vida. A vida humana torna-se, deste modo, uma história de vida, quando se propõe a reconhecer a memória de seus signos, intervalos, interstícios e esquecimentos.

Da mesma maneira que a escrita não poderia se tornar visível sem “suporte”, sem um “fundo”, sem uma “tela”, as imagens escolhidas e organizadas por nossos informantes, em três momentos diferentes, não poderiam ser eleitas, não fosse a pré-existência fundamental de uma “tela”, de um “fundo” para essas fi gurações materiais que, no caso, são, predominantemente, fotografi as. Nessas histórias de vida, as fi guras/imagens escolhidas não se limitam então a meras fotografi as. Essas “escolhas diversas” (20, 10 e 3) são de certo modo – e em todas as operações de seleção e montagem – aparições repentinas, raios, estouros

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oriundos de um “fundo” mais complexo e sempre em estado de vivência. Este “fundo”, esta “tela”, esta “superfície”, constelada por mil lembranças, chamamos de memória. É a partir desta memória que, em três momentos diferentes – e com intensidade e em contextos diversos – as fotografi as passaram a ser escolhidas, re-escolhidas ou eliminadas.

Essa metáfora, retomada à problemática levantada pela emergência da escritura, fi ca assim transposta à questão das histórias de vida, quando priorizarmos a imagem (as fotografi as, em especial). A metáfora ainda nos conduz a duas outras refl exões. A primeira, quais são as relações que as fotografi as – escolhidas e montadas – em três operações sucessivas, entretêm tanto em nível de suas “fi guras” como no tocante a “intervalos” e “interstícios” com que se apresentam? Segunda, o que poderiam vir a signifi car os interstícios deixados a cada nova escolha e, de outro lado, quais as novas dinâmicas que vão se estabelecendo, tanto entre esses interstícios as fotografi as eliminadas), como entre as fotografi as que subsistiram (ver mais adiante detalhes sobre as histórias das fotografi as excluídas em Memória de Memória p. 131).

Tomaremos o exemplo de Seo Moacir para tornar exequível o que acabamos de dizer. No caso deste informante, vemos que entre sua primeira e segunda escolhas e montagens, ele enaltece – na sua memória constelar – 20 imagens, todas as que dizem respeito a sua vida de trabalhador, inclusive como fotógrafo correspondente. Realça, desta maneira, da primeira para a segunda escolha e destaca o que considera de mais essencial na sua vida. Lembramos que Seo Moacir é negro e que nos confi ou ter sido o primeiro homem negro a se casar na Igreja da cidade, em 1960, com Dona Ivete Teodoro, com uma mulher branca, com quem teve cinco fi lhas: Maria Cristina, Kátia Maria, Márcia Regina, Silvia Maria e Rosa Maria.

Quais as temáticas das três fotografi as fi nais por ele escolhidas e montadas? A primeira fotografi a nos mostra Seo Moacir trabalhando na parte fi nal da casa que seu pai ajudou fi nanceiramente a construir e que ia se tornar a moradia dele e de sua família. A segunda fotografi a escolhida é a da esposa de Moacir, grávida da primeira fi lha, a Maria Cristina, por volta de 1962, logo após o casamento, fotografada numa estrutura que fala de elevação, não apenas porque foi fotografada numa espécie de escada, mas, sobretudo, na medida em que leva no seu ventre, uma esperança de outra existência humana, sua fi lha, Maria Cristina. A terceira fotografi a (colorida) nos remete a sua segunda fi lha, que se cursou Faculdade de Educação Física, acompanhada do pai – o qual, profundamente feliz, olha para a objetiva – e da mãe, a fi lha Kátia deixa aparente o canudo que acabava de receber. Existe, deste modo, na escolha das três fotografi as fi nais uma dupla sensação: a de uma construção/criação (a casa, as fi lhas, a educação dada) e a de uma elevação (racial e social): um homem negro, casado com a mulher branca, consegue fazer, ao longo de suas vidas, tantas caminhadas, no meio de

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CAPÍTULO 3 - IMAGEM–ESCRITANAS FOTOBIOGRAFIAS

pedras, do papel, da cinza, e sobre os quais souberam escrever “seu nome”, sua “dignidade”, sua “Liberdade” - o título dado, por Paul Eluard, ao seu poema.

Por meio de fotografi as, de suas interferências, interstícios e diálogos, cada vez mais apurados, na abóboda neuronal e no seu imaginário vivo, as imagens escolhidas por Seo Moacir, evocam e representam a quintessência de sua história de vida. Será que, nesse caso e nessas circunstâncias, o que ele nos deixa (como se fosse um segredo ou uma jóia que até não imaginava) não seria mais importante ou, pelo menos, de outra natureza que os comentários que teria, eventualmente, tecidos em torno delas? Eis uma questão que levantamos em torno das chamadas “histórias de vida”.

Vejamos então essas três fotografi as escolhidas por Seo Moacir, procurando descobrir, na montagem que ele fez, outra estética visual que o duplo visual - que a escrita é - nunca soubera acompanhar e fi gurar com a mesma intensidade sensorial.

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