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Roçado de mandioca da variedade “João Grande”, Sítio Carpina, Apodi/RN, 2011

O plantio e o consumo de mandioca (planta arbustiva do gênero manihot) são tradições indígenas popularizadas rapidamente pelos europeus aqui aportados desde os primeiros anos da colonização. Farinhas e beijus figuravam com importância no cardápio nativo, incorporados sem dificuldade ao paladar estrangeiro como mantimentos diários, acompanhamentos versáteis dos mais diversos alimentos, capazes de fornecer suficientemente saciedade e nutrição, características que tornaram a mandioca componente básico da alimentação popular nacional. A adaptação às técnicas da cozinha portuguesa nomeou a “farinha de pau” em oposição à farinha ou “massa” do reino, à base de trigo, expressão ainda hoje adotada em alguns lares sertanejos, para a confecção de pães e bolos. Na mesa brasileira, a macaxeira cozida (mandioca doce), as tapiocas e os beijus são substitutivos do pão. Os tapuias, primitivos habitantes das terras situadas às margens do rio Apodi/Mossoró eram caçadores coletores, contudo costumavam cultivar mandioca após as chuvas (JÚNIOR, 2008), nas cercanias das casas “pobres” do sertão nordestino durante o ciclo do gado (século XVII) plantavam-se roçados de mandioca (CASCUDO, 2004) para a subsistência humana.

As casas ou “engenhos” de farinha na zona rural de Apodi, hoje em dia, são testemunhos silenciosos da vocação agrícola do município outrora produtor de mandioca, além das culturas sobreviventes de milho, feijão de corda e arroz vermelho. Não se ouve mais a agitação das alegres farinhadas do passado, responsáveis

pelo beneficiamento da colheita da mandioca e do estreitamento de laços familiares e comunitários, ressaltando aqui uma particularidade histórica das casas de farinha: são constituídas como bens particulares, porém costumam acolher do mesmo modo a produção de vários agricultores de uma determinada região. Os baixos preços obtidos pela venda das sacas de farinha desestimularam o interesse das novas gerações de produtores em sustentar a atividade, afetando a permanência de práticas destinadas a sobreviver saudosamente na memória dos mais velhos. As casas de farinha se transformaram em espaços de memória, museus involuntários onde são evocadas lembranças da vida dos avôs e avós, muitas foram desfeitas, outras ostentam seu maquinário artesanal em desuso ou fragmentado, readaptado por fim para outras funções.

A rotina das farinhadas na região do médio oeste potiguar e, conforme Cascudo (1996), no Nordeste brasileiro, guarda semelhanças com o modelo de fabricação empregado no país durante o século XVI, implica na organização do trabalho especializado de homens e mulheres, em grupos que podem compreender a participação de 12 até 30 pessoas; dependendo da quantidade de mandioca a ser beneficiada, o tempo da farinhada se alarga por até três meses. Esse grupo estruturado por familiares possuidores das roças de mandioca se amplia com o auxílio de amigos ou pessoas conhecidas, composto pelos “arrancadores” responsáveis por retirar as raízes ou “batatas” da terra; um “carroceiro” para transportar a produção até a casa de farinha; as “rapadeiras” que descascavam a mandioca jogando conversa fora ou falando da vida alheia; um “cevador” para triturá-la; um “prenseiro” para entremear a massa entre folhas de carnaúba e lidar com a prensa para livrá-la da “manipueira” (caldo amarelado e venenoso, rico em ácido cianídrico); um “forneiro” sabedor da temperatura ideal para controlar a queima da lenha, torrar a farinha e assar as tapiocas e beijus; “lavadeiras” ou “lavadores” para retirar os derradeiros vestígios de terra das raízes; ensacadores para embalar, costurar a boca dos sacos e finalmente guardar a farinha.

A presença masculina é dominante nas funções que exigem maior força física (arrancadores, carroceiro, prenseiro) e ainda em atividades particulares como o forneiro, cevador e ensacador. As mãos femininas se ocupam das funções que mais se aproximam das técnicas exercitadas no cotidiano das cozinhas: raspar ou descascar as mandiocas e lavá-las. Além disso, cabia à “dona da farinhada”, mulher agricultora proprietária do roçado, a responsabilidade de alimentar os trabalhadores envolvidos enquanto durasse o processo da farinhada oferecendo café da manhã, almoço e muitas vezes o jantar. Em algumas, a produção diária chegava a quatro carroçadas de mandioca e o trabalho iniciado por volta das 5h da manhã só se encerrava após seu total beneficiamento em torno da meia-noite. No café da manhã costumava-se servir ovos, pão de milho (cuscuz), leite, batata-doce, coalhada, café, tapioca e beiju e em menor número pães e bolachas. No almoço, feijão com toucinho, feijão com rabada, torresmo, arroz de leite, pirão, farofa do caldo da carne e cuscuz. O sacrifício de algum animal era indispensável para garantir a “mistura” das provisões, abatiam-se garrotes (bois jovens), bodes, carneiros, galinhas ou porcos. Na noite do último dia da farinhada, um marco festivo pela realização do trabalho bem-sucedido, eram ainda produzidos beijus, tapiocas ou grudes “temperados”

com sal e coco seco ralado, consumidos no local, guardados na farinha e também repartidos entre as famílias dos participantes.

Duas variedades de mandioca são cultivadas na região de Apodi: a “Manipeba” ou “Tardona” é a mais plantada, apresenta como características o crescimento lateral e o tempo maior para colheita, cerca de dois anos “para criar goma e enxugar a batata”, daí advêm seu merecido apelido. A “João Grande”, mais precoce, colhida em oito meses, de crescimento vertical, possui plantas que ultrapassam facilmente os dois metros de altura. Segundo Maria do Carmo Diógenes e João Batista de Carvalho, residentes do Sítio Mineiro, situado nas cercanias da Lagoa de Apodi, essa espécie proporciona mais farinha e menos goma. Sua família organizava farinhadas, a última realizada há cerca de 4 ou 5 anos; o abandono da atividade é justificado, além dos baixos preços de venda, pela regularidade dos períodos de estiagem que comprometem sensivelmente a produção. Em suas terras, uma casa de farinha artesanal resiste de pé, bem como todo o instrumental utilizado para a fabricação permanece preservado, um pequeno plantio de mandioca nos arredores das casas talvez represente o indício da retomada dessa tradição objetivando outros arranjos produtivos, dessa vez com o olhar voltado para o desenvolvimento do turismo rural.

Conforme Câmara Cascudo (1996), o mês de agosto era o mês das farinhadas ou da “desmancha” no agreste do Rio Grande do Norte; no sertão potiguar o período é análogo, justificado pelas técnicas de plantio e maturação das raízes de mandioca no sistema de sequeiro. Normalmente plantada no mês de janeiro, período marcado pelo início da temporada de chuvas no semiárido nordestino, durante os primeiros seis meses do ano a umidade da terra é responsável pelo crescimento das plantas e enraizamento das “batatas” (raízes), ao findar esse tempo, conseguem resistir sem prejuízos à estiagem característica do segundo semestre, quando então são cortadas para “broiar”(rebrotar), recuperar os galhos, a folhagem e encher as “batatas”, acumulando água nas raízes até a volta do período chuvoso, encerrado em meados de junho. É necessário um tempo para que a mandioca fique “enxuta”, perca o excesso de água das raízes, condição fundamental para sua colheita e obtenção de maior rendimento na fabricação da farinha, “se não estiver enxuta não dá farinha”, afirma Seu João de Deus, morador do Sítio Carpina. Esse tempo coincide com os primeiros meses secos (julho e agosto), quando as plantas “mancham” (amarelam) as folhas que caem aos poucos sinalizando o tempo exato do seu período produtivo, normalmente dois anos após o plantio, no mês de agosto, razão pela qual ficou este mês associado ao tempo das farinhadas, quando então precisam ser colhidas e beneficiadas. O plantio irrigado diminui o tempo de colheita em até um ano, porém, a diminuição proposital das regas faz com que o processo de enxugamento das raízes seja intencionalmente provocado objetivando maior produtividade de farinha conforme a expectativa dos agricultores.