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De pão também vive o homem

O pão, alimento milenar revestido de carga simbólica, é lembrado como dos primeiros a ser artificialmente produzido, marcando a divisão histórica entre natureza e cultura. Criar o próprio alimento significou para o homem o controle do uso do fogo, a assimilação das primeiras técnicas agrícolas e o fim da dependência dos recursos naturais sujeitos às consequências das intempéries climáticas. O pão, símbolo universal da alimentação e do trabalho, é ingerido democraticamente, sob as mais variadas formas, nas mesas aristocráticas e naquelas mais humildes, bem como no profano consumo diário nas padarias ou, com devoção, para exaltar a fé e a religiosidade. Diversas passagens bíblicas utilizam a imagem do pão como elemento simbólico para expressar o poder divino, dividir o pão é atitude generosa, algumas receitas implicam obrigatoriamente no exercício consciente dessa prática e só se realizam quando apresentam tal conotação. O pão transfigurado em “Corpo de Cristo” é oferecido em sacrifício no ritual católico da Eucaristia para sustentar o corpo e o espírito, além disso, é igualmente reverenciado nas comemorações do dia de Corpus Christi.

Nas padarias de Felipe Guerra, a véspera da Sexta-Feira Santa é dia de intenso movimento, tanto por parte dos padeiros que se esmeram para dar conta do acréscimo da produção, quanto da população que acorre a esses locais para consumir o pão jacaré, exposto amontoado em todas as vitrines e balcões, o alimento será vendido, ofertado como “esmola” para os amigos e partilhado em família, exclusivamente, no dia em que os cristãos recordam, respeitosos, a Paixão e Morte de Jesus Cristo.

De imediato, a relação de proximidade entre a data religiosa e apresentação visual do pão gerou um estranhamento pela imagem contraditória de um jacaré modelado caprichosamente à mão, adornado com olhos feitos de cinza, grãos de milho ou feijão, na mesma massa cotidiana do pão francês, sem qualquer variação que emprestasse um sabor especial, sendo ofertado e consumido somente na Semana Santa, especificamente na gravidade da Sexta, por cristãos, sem distinções entre mesas católicas ou evangélicas. Por que não outro animal? Nos textos bíblicos são mencionadas pombas, cordeiros, peixes, porcos, galos,

bois, jumentos e até serpentes, estas inclusive pertencentes à família dos répteis, talvez revelassem algum prenúncio que pudesse justificar a presença do jacaré como coadjuvante de uma das passagens do Livro Sagrado.

A maioria dos moradores desconhece as razões que motivaram a confecção do inusitado pão, afirmam ser uma tradição local e concordam em perpetuá-la em respeito ao evento religioso, porém alguns relacionam a figura do jacaré ao costume do jejum católico no qual é aconselhada durante este período a abstinência de carne vermelha – quem já comeu jacaré assegura que é animal de carne branca, característica análoga à dos peixes e crustáceos isentos de qualquer interdição. Estaria aí simbolicamente justificado o seu consumo? O argumento construído em torno de suposições o fragilizava e a dúvida sobre a sua origem permanecia, tivemos então uma indicação para conversarmos com “Chagas Travessa”, o padeiro mais antigo da cidade, saberia ele nos dizer algo mais convincente sobre a procedência do pão?

Pães jacaré, símbolos da Semana Santa em Felipe Guerra, Padaria 3 Irmãos, Felipe Guerra, 2011. Eu saí de lá de casa

Aninha me perguntou

Pra onde vai Joaquim Travessa Me diga que eu também vou Vou para o Apanha-Peixe Vou louvar Pedro Sidô

Francisco Chagas de Góis, nascido em 12/06/1932, herdou o apelido “Chagas Travessa” do tataravô conhecido por “Joaquim Travessa”. A origem jocosa do nome remete a um serviço malfeito na fixação da travessa de uma porta. O padeiro, hoje aposentado, depois de 35 anos no ofício, finalmente nos esclareceu sobre o começo dessa tradição inventada (HOBSBAWM, 1997) em Felipe Guerra: o hábito de “dar esmolas” ou trocar presentes entre familiares, compadres, comadres e amigos durante a Semana Santa é antigo, anterior ao surgimento do pão jacaré; dentre as esmolas, outros pães também costumavam ser trocados apenas com uma ressalva: a massa para pão doce feita no dia a dia era substituída na Semana Santa pelo “pão aguado” (francês), portanto, o consumo de pão na Sexta-Feira Santa com a finalidade da partilha se ancora na memória dos mais velhos, sem precisar datações.

Chagas Travessa aprendeu o ofício de padeiro com Joaquim Padeiro e Chico Brejeiro de Apodi, trabalhou por muitos anos numa padaria situada à Rua da Aurora, na Cidade Baixa, próxima do antigo mercado e em frente ao espaço ocupado pela feira-livre, a construção foi misteriosamente incendiada em 21 de março de 1983. Os anos de experiência fazem-no lembrar-se de receitas e sabores hoje em dia adormecidos no tempo, caso das massas “nem salgadas, nem doces” características dos pães consumidos no passado: “massa fina” ou “duas cabeças” e o ”pão sem mistério” feito com massa podre, fermentada de um dia para o outro.

Influenciado por Chico Brejeiro, mestre padeiro de Apodi que modelava pães em formatos incomuns para serem leiloados na Festa de Nossa Senhora da Conceição, dentre os quais jacarés e estrelas, entre 1955-56, Chagas Travessa iniciou em Felipe Guerra a produção artística do pão jacaré, na ocasião, lembra que também modelou peixes e tartarugas, mas os consumidores optaram preferencialmente pela figura do jacaré, ficavam admirados com a forma incomum do bicho e, desde então, o pão tornou-se sucesso de vendas justificando a permanência da figura do animal. Para fazer o pão são necessários 1kg de farinha de trigo, sal a gosto, um pouco de açúcar , fermento e água fria. Misturam-se os ingredientes, sovando até ligar, deixar descansar por 2 horas, após esse período, amassar novamente e modelar o pão, os olhos eram feitos de cinza, “tisna’ ou “tirna” de forno, assado no lastro do forno e não em formas, a modelagem totalmente manual é finalizada pelo acabamento das escamas feitas com uma tesoura própria para esse fim. A explicação para a criação do pão jacaré é muito simples, direta, surpreendentemente desprovida de qualquer intenção religiosa: a

imagem foi inspirada na logomarca impressa nas latas de “Querosene Jacaré”, produzido no Brasil pela Esso5

e comercializado na década de 1950.

Placa e lata de querosene Jacaré, a imagem impressa no rótulo motivou a criação do pão mais conhecido de Felipe Guerra.