• Nenhum resultado encontrado

Os potes e panelas da Pindoba

Potes de barro da Pindoba I. Os objetos acima abrangem a produção de três ceramistas.

A Pindoba I também é conhecida como uma comunidade louceira, o acréscimo do numeral ao nome é para diferenciá-la do povoado homônimo conhecido por Pindoba II. Lá há mais de três gerações a produção semestral da cerâmica utilitária local é exercitada exclusivamente por mãos femininas, dentre os objetos são confeccionados potes, panelas, alguidares, “potes de lata”, quartinhas e panelas de feijoada; ignoram a produção da cerâmica figurativa e nem se motivam a iniciá-la, as ceramistas são unânimes: “dá muito trabalho!”. A explicação para a restrição da atividade apenas no segundo semestre do ano é justificada pelas mudanças climáticas que normalmente incidem na região do semiárido nordestino e pela falta de interesse das mais jovens; atualmente, não mais que dez ceramistas desenvolvem a atividade.

A terra onde está situada a comunidade da Pindoba I compreende a várzea do rio Apodi/Mossoró, é plana, de terreno argiloso, sua paisagem é caracterizada pela presença de carnaúbas, palmeiras indicativas dos solos úmidos; na estação chuvosa, de janeiro a junho, a área onde estão localizados os barreiros é completamente

alagada, impossibilitando o acesso das louceiras, nome pela qual as ceramistas também são conhecidas; outra razão é o excesso de umidade que dificulta a produção, “o barro não enxuga” e favorece repetidas vezes a quebra da louça. A louça é produto dos meses secos, no inverno os homens se responsabilizam integralmente pelo sustento familiar através do criatório e da venda de animais domésticos e do plantio de arroz, feijão, milho e milheto.

O aprendizado das ceramistas é ensinamento transmitido pacientemente pelas mães e avós, o trabalho é organizado entre o final da manhã e o início da tarde, elas começam por volta das 10h 30, para conduzirem anteriormente os afazeres domésticos e adiantarem as refeições, fazem um breve intervalo para almoçar e retomam a atividade às 13h, estendendo-se até as 14-16h. Gostam de fazer cerâmica, pois a atividade realizada em casa as mantém próximas dos familiares. Tudo principia com a identificação dos barreiros, na área escolhida, distante das casas e cercada pela vegetação nativa. Se a terra é fofa, representa um bom indício para a existência do barro “preto”, é necessário então cavar um palmo para verificar a presença da camada argilosa abaixo da superfície areenta; porém se a terra for dura, provavelmente o barro não será encontrado. Quando o barreiro for identificado, este fornecerá matéria-prima por alguns anos até se esgotar completamente, daí em diante, o processo recomeça para a localização de outra reserva. Cada ceramista possui o seu barreiro, com a estiagem, a argila seca e para obter o barro propício para a modelagem das peças elas levam baldes de água para o local escavam o interior do barreiro com enxadecos (pequenas enxadas), molham a argila, cobrem com sacos de nylon sobrepostos com pedras e suas próprias ferramentas para manter a umidade até o dia seguinte quando enfim extrairão a argila descartando pedras e restos de matéria orgânica. Cumprida essa etapa, com as mãos, elas fazem grandes bolões e os depositam em sacos à beira dos barreiros, em quantidade suficiente para a confecção de dois potes ou mais. Os sacos são amarrados e o peso considerável de cada um deles é equilibrado sobre suas cabeças, em seguida os transportam vencendo a distância até as suas casas, tendo ainda pelo caminho o obstáculo de uma cerca de arame farpado que transpõem com admirável facilidade.

Ao chegar ao espaço de trabalho anexo às suas casas, elas depositam os sacos contendo o barro, os estendem e começam sobre eles a amassar a argila com os pés, essa operação para unificar a textura da massa e liberá-la do excesso de umidade leva em torno de dez minutos, não é preciso adicionar areia ou outro composto para torná-la mais refratária e o saco de nylon é empregado para evitar que fique grudada no chão, antes usavam uma camada de areia fina. Nesse estágio, após abrirem o barro com os pés, puxam a massa com as mãos enrolando-a e repetem o gesto até identificar o ponto adequado para a modelagem, conforme d. Rita: “quando começa a peidar tá amassado!” referindo-se à consistência macia da matéria plástica análoga a uma cera que libera nesse ponto bolhas de ar contidas em seu interior.

Para modelar os objetos, as ceramistas forram o chão com uma camada de areia fina encontrada nos terreiros de suas casas, retiram do bolão de barro a quantidade suficiente para fazer uma peça e modelam primeiramente o bojo, uma forma circular e achatada que servirá de base para sua confecção. Desconhecem o uso do torno de origem europeia e dominam duas técnicas herdadas das tradições indígenas, usam empurrar com as mãos a parte interna do bojo para formar as paredes e para a elaboração dos potes costumam utilizar a “fiada”, rolos ou tiras de barro sobrepostos e alisados. Nesse processo, dispõem do auxílio da “cuia” feita com sandálias de borracha como amparo para arredondar a peça, revelando aqui uma substituição de um artefato artesanal por outro adaptado de um produto industrializado; da “taleta” confeccionada com o talo da carnaúba e facas para “rapar” e afinar as paredes; do sabugo de milho para texturizar a superfície externa, algumas mulheres adotaram o uso do pente plástico para esse fim. Diferente da função intermediária de corrigir possíveis imperfeições na forma do objeto, ação finalizada pela fricção de seixos rolados (pedras arredondadas), praticada em comunidades oleiras do litoral, o uso do sabugo é observável na região do oeste potiguar como recurso para emprestar valor estético aos objetos, pois ranhuras não são removidas, permanecendo como característica, de maneira especial, nos potes após a queima. Panelas não recebem tal tratamento, tendo a superfície interna e externa alisadas com pedras molhadas em água. Os potes possuem ainda suas “bocas” adornadas com leves rebaixamentos provocados pela pressão dos dedos das ceramistas ou com tiras de couro dobradas que imprimem bela textura. Nenhuma outra peça merece tanta atenção, o pote é a mais produzida sugerindo ser aquela que desperta maior interesse na confecção. A “modernidade” dos produtos industriais, a falta de incentivo e divulgação concorreram para que o uso da cerâmica entre os moradores da Pindoba diminuísse consideravelmente, os alguidares já serviram como recipientes para lavar pratos, as quartinhas esfriavam no passado a água de beber. De todos os objetos produzidos, resistem as panelas nas casas de algumas mulheres porque “comida em panela de barro é mais gostosa” e em todos os lares figuram os potes, dividindo o ambiente com geladeiras e filtros d’água.

Página anterior, detalhes, detalhes do arame farpado usado para reter a dilatação da cerâmica durante a queima. Acima, forno mostrando arcos de sustentação onde são acondicionadas as peças para a queima; forno recoberto com cacos de cerâmica em dia de queima. Pindoba I, Apodi/RN, 2011.

No “verão”, após serem finalizadas, as peças passam cinco dias secando à sombra antes do dia da queima, feita em fornos confeccionados com tijolos artesanais e amarrados com arame farpado para conter seu inerente processo de dilatação; situados numa área à frente das casas das artesãs, são construções circulares feitas por elas mesmas, esses fornos são compartilhados por outras ceramistas e seu uso é justificado por laços familiares e de amizade. Antes de queimar, arrumam as peças numa grelha localizada no interior do forno colocando as primeiras em pé e calçando-as com tijolos para que não se encostem às paredes; as demais são ajeitadas nas intermitências e todas são completamente cobertas com cacos de cerâmica resultantes das queimas anteriores. Para queimar, usam lenha de algaroba e carnaúba, o fogo é feito do lado de fora, na boca do forno são colocadas brasas para esquentar e só depois é introduzida a lenha, uma lenha fina, ao contrário das antigas ceramistas que usavam o talo da carnaúba, descartado hoje em dia por ser muito combustível e provocar chamas altas que refletiam em indesejáveis escurecimentos das peças. O tempo da queima varia entre 5 a 6 horas, duas horas após sua finalização já é possível retirar o barro transformado na cerâmica de coloração avermelhada. Os objetos são dispostos lado a lado nas proximidades do forno compondo uma vitrine improvisada ao ar livre, às margens da estrada sinuosa de terra que corta o povoado. No período

em que ocorre o prado a cerâmica é exposta nesse ambiente despertando o interesse, sobretudo dos visitantes externos, é uma ocasião oportuna para incrementar as vendas. Em outros momentos, a produção é adquirida por compradores fixos ou vendida pelos maridos das ceramistas que a distribuem nas lojas de objetos artesanais de Mossoró. As artesãs não reclamam da demanda e informam que as vendas se mantêm regulares.

A permanência da atividade cerâmica na comunidade ultrapassa seu caráter funcional diante do maior acesso da população em geral a outros bens. Conformados em guardiões da água preciosa para o sertanejo sujeito aos rigores das estiagens ou talvez evocando sabores guardados na memória de seus habitantes, os potes e panelas são símbolos culturais da história de vida de cada morador da Pindoba, tal aspecto por si só justificaria a continuidade desse ofício como um patrimônio significativo para o município de Apodi e para o Rio Grande do Norte, sua relação com a festa do prado reforça sua importância.

À esquerda, panelas com asas e tampas feitas sob encomenda, distintas das panelas comumente produzidas na Pindoba I (à direita) que costumam apresentar apenas um discreto apêndice arredondado, mais decorativo do que funcional.