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Leite e derivados de engolir a língua e espocar o bucho!

Potes de creme e garrafas de manteiga do sertão, Sítio Retiro, Apodi/RN, 2011.

No Sítio Retiro, a produção regular de derivados do leite existe desde 1990-91 e compreende a elaboração de queijos de coalho, manteiga do sertão, da terra ou de garrafa, creme, nata e borra. Alimentos tradicionalmente incorporados à dieta sertaneja, distribuídos nas redondezas e em churrascarias, mercadinhos e padarias apodienses, consumidos puros, como acompanhamentos ou acrescidos como temperos aos mais diversos pratos para enriquecer o sabor.

Na propriedade da família de

Maria Lúcia Torres

, a produção leiteira gira em torno de 400 litros por dia, colhido em duas ordenhas, desse total, uma parte resulta em 12 a 15 kg de creme e 7 a 8 litros de manteiga, mas é variável conforme a qualidade do leite, classificado na cultura popular entre “forte” e “fraco” quando é observada a maior ou menor concentração de “gordura”, determinante na rentabilidade dos derivados. No local, identifica-se o leite fraco como aquele do período invernoso, quando as vacas ingerem pastagem verde em abundância e aumentam a quantidade do leite, entretanto, com menor teor de gordura; na estiagem, apesar dos animais diminuírem a produção e receberem suplemento alimentar à base de ração especializada, o leite é mais forte. Tal observação contraria os estudos científicos na área da Zootecnia e, por esse motivo, merecem uma investigação mais acurada.

A

nata

é o produto de obtenção mais simples, recolhida aos poucos, após a fervura do leite, uma pitada

de sal é utilizada como conservante suficiente para aumentar o período de duração e consumo. O creme, diz- se apenas dessa forma, não é identificado pelo nome comercial de “creme de leite” e da nata se diferencia por passar pelo processo de uma desnatadeira elétrica que separa o leite do creme de leite fresco, nome pelo qual é reconhecido quando elaborado e consumido no mesmo dia, por apresentar textura mais fluida e sabor mais suave, diversa daquela apresentada pelo “creme” acrescido de sal, que com o passar dos dias altera a sua coloração inicialmente esbranquiçada para um tom amarelado, adquire textura firme, encorpada e de sabor mais ácido. Esse creme é utilizado para a fabricação da manteiga.

Para fazer a

manteiga da terra

, de processo mais exigente, dona Maria Lúcia conta com a vigilância

simpática da nora Wigna Begna. O creme é batido num liquidificador industrial por 30 minutos, a proporção é de 10 kg de creme para 5 litros de manteiga. Na sequência, é levado ao fogo brando, durante essa fase, o leite fica embaixo e a manteiga em cima, sendo retirada constantemente pelo auxílio de uma concha, em seguida, retorna ao fogo, dessa vez em fogo alto por 1 hora até apurar. Após esse tempo, os derradeiros vestígios do leite solidificam formando a borra de coloração marrom. Para obtê-la, a manteiga é coada num pano limpo e próprio para essa função, este ao ser bem espremido produz a borra: uma apreciável farofa escura, solta, fina e salgada, ingerida invariavelmente com farinha de mandioca, açúcar ou rapadura a gosto. É acrescentada para temperar feijão, arroz de leite ou arroz branco cozidos sem sal, sendo a farinha de mandioca componente essencial de sua mistura antes de ser consumida pura. A manteiga sem sal ocasionalmente é feita sob encomenda.

A elaboração do

queijo de coalho

necessita de 11 a 12 litros de leite para cada quilo, acrescidos do

coalho natural de “criação” (bode) e um pirex pequeno de sal. O coalho de bode salgado adquirido nas feiras livres é previamente colocado num pouco de água até amornar e só então é misturado ao leite, processo repetido sempre que for reutilizado; guardado em salmoura, pode ser aproveitado por até 3-4 dias, mas após esse tempo perde suas características. Na ausência do coalho natural, admite-se o uso do coalho industrial (líquido ou em pó) conforme as orientações sugeridas na embalagem. O leite em contato com o coalho fica

em descanso de 10 a 15 minutos para coagular, em seguida a coalhada é cortada com uma faca para separá-la do soro, só depois é temperada com o sal. Depois é colocada num “chincho” (forma) forrado com um pano limpo e passa por um processo de prensagem manual, espremem-se quantas vezes for necessária enquanto tiver soro. Leva-se o soro ao fogo para aquecer, num recipiente, colocar o queijo e cobri-lo com o soro quente deixando-o imerso até esfriar. Quando amornar, retirar o restante do soro em vários panos secos até enxugar completamente. Conservar em geladeira.

Esse processo é distinto de outro usado no passado que cozinhava o queijo no soro por 30 minutos num caldeirão, alongando o tempo de preparação.

“Comer de engolir a língua!” é uma expressão local que denota total aprovação, é comer com vontade, com gosto! É reconhecer os sabores, valorizar os alimentos, esse dito popular se aplica sem dificuldade ao consumo dos derivados do leite entre os habitantes do oeste potiguar, pois, além do consumo in natura e do celebrado doce cremoso, são presenças marcantes no cotidiano das mesas sertanejas de forma unitária ou conjunta, atualizando a importância histórica e cultural do criatório bovino para o desenvolvimento da região e a gênese de uma cozinha fundamentada em origens camponesas. A manteiga da terra é empregada para fritar ovos, bolachas ou para passar no pão, é tempero comum do feijão verde, da galinha caipira, do cuscuz de milho e da tapioca. O creme, mais versátil, é passado no pão, no cuscuz, na tapioca, na bolacha frita e entra como componente da pamonha e canjica de milho verde, em bolos, arroz, picadinho de carne e creme de galinha, a nata apresenta a mesma utilidade do creme. O queijo é consumido puro, com pão, arroz de leite, baião-de-dois, assado na manteiga ou na grelha. Recordando as expressões populares, espocar o bucho é encher a barriga e aqueles que agradecem pelo alimento servido recebem a seguinte resposta: foi de gosto!