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A escolha da metodologia empregada neste trabalho ocorreu uma vez que valoriza dinâmicas histórico-sociais e é flexível o suficiente para que as expressões contemporâneas – e seus amplos sentidos - sejam discutidas. A Hermenêutica de Profundidade, ainda, concede liberdade para a interpretação/reinterpretação dos resultados, sendo um método que, como

veremos adiante, permite uma aproximação com os métodos digitais. Desta forma, a (re)significação da alteridade nas redes sociais pode ser abordada e analisada.

A análise do objeto da presente pesquisa, portanto, será realizadaa partir da Hermenêutica de Profundidade (HP), metodologiaproposta por John B. Thompson (1995). A HP é desenvolvida em três fases: análise sócio-histórica, análise formal ou discursiva e a interpretação/reinterpretação. Thompson (1995) coloca em evidência o fato de que o objeto de análise é uma construção simbólica significativa, que exige uma interpretação – esta etapa cujo papel é central na metodologida de Thompson. A HP, segundo Thompson (1998, p. 363): “[...] resumidamente, é o estudo da construção significativa e da contextualização social das formas simbólicas”.

A HP provém de uma tradição que surgiu na Grécia Clássica, com algumas transformações que ocorreram até hoje, especialmente nos séculos XIX e XX, com pensadores como Martin Heidegger e Paul Ricoeur. Estes filósofos associam o estudo das formas simbólicas aquestões de compreensão e interpretação. As formas simbólicas, em seu cerne, são construções significativas que exigem uma interpretação; elas são ações, falas, textos que, por serem construções significativas, podem ser compreendidas e investigadas socialmente (THOMPSON, 1995).

A primeira fase da HP, a análise sócio-histórica, considera relevantes as condições sociais e históricas da produção, circulação e recepção das formas simbólicas. Thompson (1995) considera que condições sociais e históricasnão são estabelecidadasem um vácuo, mas são produzidas, transmitidas e recebidas em condições sociais e históricas específicas. A análise formal ou discursiva é passível de contextualização e tem a capacidade e o objetivo de dizer alguma coisa sobre algo (THOMPSON, 1995). No caso do presente trabalho, esta forma simbólica é uma rede social digital, o Facebook, e os desdobramentos sociais possíveis.

A segunda fase, a análise formal ou discursiva, parte da premissa de que os objetos e expressões que circulam nos campos sociais são também construções complexas que apresentam uma estrutura articulada. Thompson (1995) atenta para o fato de essa fase tornar- se ilusória quando removida do referencial metodológico da HP e discutida isoladamente em relação à primeira fase. Isso é essencial para compreender que, enquanto rigorosa e sistemática, ainda existe a necessidade de uma construção criativa do significado, uma explicação interpretativa do conteúdo representado ou dito (THOMPSON, 1995).

Seguindo esta linha, para fechar a última fase da tríplice análise, realiza-se, portanto, a interpretação/reinterpretação. Ela é construída a partir da análise discursiva, na qual os padrões e efeitos que constituem e que operam dentro de uma forma simbólica podem ser

quebrados, divididos e desconstruídos. O processo de interpretação é sobreposto e está além da análise sócio-histórica e da análise formal ou discursiva, que, mediado pelos métodos do enfoque da HP, torna-se um processo de reinterpretação de um campo pré-interpretado, projetando um significado possível que pode divergir do significado original construído pelos sujeitos que formam o mundo sócio-histórico (THOMPSON, 1995).

Devemos também levar em conta a atualidade da hermenêutica, uma vez que “os sujeitos que constituem parte do mundo social estão sempre inseridos em tradições sócio- históricas” (THOMPSON, 1995, p. 357). De acordo com o autor, a experiência humana é sempre histórica e a cada nova experiência são compreendidas novas percepções em relação às experiências passadas, uma vez que o mundo está em constante mutação.

Para Thompson (1995, p. 358), “a hermenêutica da vida cotidiana é um ponto de partida primordial e inevitável do enfoque da hermenêutica de profundidade”, ou seja: a hermenêutica de profundidade deve se basear no esclarecimento de como as formas simbólicas são compreendidas pelas pessoas que as produzem e as recebem no seu dia a dia. Os fenômenos culturais, a partir deste ponto de vista, devem ser entendidos como formas simbólicas em contextos estruturados. Enquanto formas simbólicas, os fenômenos culturais são significativos tanto para os atores como para os analistas (THOMPSON, 1995).

As formas simbólicas são produzidas, construídas e empregadas por um sujeito que, ao produzir e empregar tais formas, está buscando certos objetivos e propósitos e tentando expressar aquilo que ele “quer dizer”. Há, ainda, um aspecto “convencional”: trata-se da a produção, construção ou emprego das formas simbólicas, bem como a interpretação das mesmas pelos sujeitos que as recebem. Esses são processos que envolvem a aplicação de regras, códigos ou convenções de vários tipos (THOMPSON, 1995).

Essas convenções variam desde regras de gramática a códigos de estilos de expressão (por exemplo, o Código Morse), atéconvenções que governam a ação e interação de indivíduos que tentam expressar-se ou interpretar as expressões de outros (THOMPSON, 1995). É fundamental pensar, dessa forma, o que isso implica nos dias de hoje: como funcionam as regras que regem o cortejo amoroso, por exemplo, em uma época de aplicativos de relacionamento? Aplicar regras, códigos ou convenções na produçãoou na interpretação de formas simbólicas não significa, porém, estar necessariamente consciente dessas regras. Essas convenções são, geralmente, aplicadas em uma situação prática, sendo parte do conhecimento tácito que os indivíduos aplicam através de um “imaginário coletivo”, as empregando no curso de suas vidas cotidianas. A terceira característica das formas simbólicas é o aspecto

“estrutural”, o que significa que elasexibem uma estrutura articulada, resultado de determinadas relações de uns com os outros (THOMPSON, 1995).

Assim, a maneira como um discurso e interpretado por indivíduos particulares, sua percepção como um "discurso" e o peso a ele atribuído estão condicionados ao fato de que essas palavras foram expressas por esse indivíduo, nessa ocasião, nesse ambiente, e de que são transmitidas por esse meio (um microfone, uma câmera de televisão, um satélite); mudando os elementos deste ambiente – suponhamos, por exemplo, que as mesmas palavras sejam expressas por urna criança para um grupo de pais admirados – as mesmas palavras adquirirão um sentido e um valor diferentes para aqueles que as recebem. É importante realçar que, ao destacar o aspecto contextual das formas simbólicas, estamos indo além da análise dos traços estruturais internos das formas simbólicas. (THOMPSON, 1995, p. 192)

É possível identificar e descrever as situações espaço-temporais específicas em que as formas simbólicas são produzidas e recebidas. As formas simbólicas são produzidas (faladas, narradas, inscritas) e recebidas (vistas, ouvidas, lidas) por pessoas situadas em locais específicos, agindo e reagindo a tempos particulares e a locais especiais, e a reconstrução desses ambientes e uma parte importante da análise sócio-histórica. As formas simbólicas estão também especificamente situadas dentro de certos campos de interação.

Ao receber e interpretar formas simbólicas, os indivíduos estão envolvidos em um processo continuo de constituição e reconstituição do significado, e este processo e, tipicamente, parte do que podemos chamar reprodução simbólica dos contextos sociais. O significado que é carregado pelas formas simbólicas e pode explicar formas de produção e recepção. O significado das formas simbólicas, da forma como e recebido e entendido pelos receptores, pode servir, ainda, para manter relações sociais estruturadas características dos contextos dentro dos quais essas formas são produzidas e/ou recebidas (THOMPSON, 1995).

Para reconstruir as possibilidades como as formas simbólicas são interpretadas e compreendidas nos mais diversos contextos da vida social, podemos recorrer a entrevistas e outros tipos de pesquisa etnográfica. Thompson chama de “interpretação da doxa” esta reconstrução, um processo interpretativo ou uma interpretação do entendimento do dia a dia. Desta forma, é uma interpretação das opiniões, crenças e compreensões que são sustentadas e divididas pelos indivíduos que fazem parte da sociedade. Para irmos além da interpretação da doxa, é necessário recorrermos aos tipos de análise que estejam contemplados no referencial metodológico que complemente a HP, levando em conta as condições sócio-históricas em que os objetos estão inseridos (THOMPSON, 1995).

Ao lidarmos com um campo que é constituído tanto pela construção do seu significado, a “explicação” e a “interpretação” não devem ser vistas, como muitas vezes ocorre, como termos mutuamente exclusivos; antes, podem ser tratados como momentos

complementares dentro de uma teoria compreensiva interpretativa, como passos que se apoiam mutuamente (THOMPSON, 1995).

Veronese e Guareschi (2006) acreditam que a pesquisa é o processo de procurar conhecer os processos de sentido que se configuram nos cenários sociais. Esses cenários, onde interagem sujeitos produzindo e recebendo formas simbólicas, vão ser apreendidos pelo pesquisador que vai criando os elementos de sentido, produzidos a partir da sua relação com os eventos. A apreensão que temosdo fenômeno e dos eventos é subjetiva. Para tecer os elementos de sentido, uma das opções que se colocam na pesquisa social é a realização de um processo hermenêutico crítico, no qual se propõem sentidos viáveis e se sugere uma verdade plausível, mesmo que provisória (VERONESE; GUARESCHI, 2006).

A proposta em trabalhar com a HP está baseada, justamente, na abertura metodológica e crítica que a proposta de Thompson oferece. Com essa ferramenta teórica e metodológica, o pesquisador pode empreender análises discursivas, de conteúdo, semióticas ou de qualquer padrão formal que venha a ser necessário. Se o processo de interpretação é combinado com métodos explanatórios, os resultados podem ser ainda mais proveitosos e complementares. “O potencial inovador da abordagem da HP poderia residir no fato de que ela supera as abordagens tradicionais [...], invocando a necessidade de propor sentidos, discuti-los, desdobrá-los” (VERONESE; GUARESCHI, 2006, p. 87).

Estamos, enquanto pesquisadores, procurando descobrir os sentidos ocultos que cobrem os fenômenos sociais. Na HP, são propostos sentidos, que muitas vezes são interpretados como ideológicos. Para isso, porém, é necessário argumentar e debater, sem perder de vista a racionalidade argumentativa e comunicativa. “Se afirmamos algo, através da interpretação, temos a obrigação de justificá-lo, de fundamentar essa interpretação em argumentos [...]” (VERONESE; GUARESCHI, 2006, p. 87). Neste sentido, a Hermenêutica de Profundidade, justamente por ter uma aplicação ampla e flexível a múltiplas interpretações, pode ser adaptada e pode ser combinada com outros métodos, como os digitais.