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3.1 IDENTIDADE

3.2.4 A Hospitalidade

Em sua dissertação de mestrado “A ética da hospitalidade no acolhimento do Outro” (Programa de Pós-Graduação em Filosofia/UCS, 2007), Sandra Comandulli uniu os conceitos de Emmanuel Levinas e Jacques Derrida. A autora contextualiza o seu interesse pelo tema a partir de fatos contemporâneos, tais como os fluxos migratórios e a mobilidade global, analisando os conceitosde hospitalidade condicional e da hospitalidade incondicional. O assunto exige soluções iminentes relacionadas à mobilidade global – quase uma diáspora coletiva que está ocorrendo pelo mundo – sobretudo quando os países para onde rumam os imigrantes também enfrentam crises próprias e não se mostram dispostos a aceitá-los amistosamente (COMANDULLI, 2007).

Neste cenário, voltamos para Derrida (2003), que questiona: o que quer dizer ser estrangeiro? O que significa “ir ou sair de terras internacionais”? A problemática acerca do conceito de estrangeiro, bem como do conceito de hospitalidade, outrora inserida em uma discussão a partir do mundo grego, está pautada, atualmente pela internet, uma vez que “é muitas vezes a mutação tecno-político-científica que nos obriga a desconstruir [...] axiomas intocáveis” (DERRIDA, 2003, p. 41).

Tema tão latente no contexto mundial, a hospitalidade é o grande desafio ético e político que se apresenta aos países que recebem imigrantes, que têm de administrar suas fronteiras e lidar com os recém-chegados. A hospitalidade representa um desafio da aceitação do desconhecido, pois acolher o outro é correr um risco.

O estranho pode representar uma ameaça à segurança de quem o acolhe, assim como o próprio estrangeiro, ao ser recebido, sofre com a ameaça de ser transformado no

mesmo, de não ter preservada a sua cultura, seus laços de pertencimento, sua identidade e sua diferença. Neste contexto, questiona-se a respeito da possibilidade de se concretizar a hospitalidade, tornando-a um princípio real e verdadeiro de acolhida entre hóspede e hospedeiro e no delicado entremeio dessa relação em que pode acontecer a integração com o outro ou a assimilação de um pelo outro. A hospitalidade, pensada eticamente, envolve questões problemáticas que tencionam a relação entre o mesmo e o outro, entre a identidade do mesmo, a diferença do outro e a alteridade (COMANDULLI, 2007, p. 10).

Embora a hospitalidade incondicional – o desejo absoluto da hospitalidade –, proposta por Levinas, seja uma experiência difícil de ser praticada, Derrida (2003) faz um apelo para torná-la uma experiência possível. A hospitalidade, quando incondicional, se define pelo deixar vir o outro, pelo acolhimento sem reservas do outro que chega, é um ato de generosidade para com o outro. Porém, a hospitalidade, como a conhecemos, é condicionada por direitos e deveres que devem ser seguidos pelo que chega e pelo que acolhe (DERRIDA, 2003).

Acolher o outro é acolher alguém singular cujas características não nos pertencem e as quais não podemos modificar e que, no entanto, nos afetam irreversivelmente. É preciso buscar uma abertura para a alteridade como forma de viver o mundo, com uma nova visão da ética. Mesmo difícil, é possível estar aberto àquilo que não se pode comandar no Outro e, apesar das diferenças, avançar no sentido de preservar a cultura que cria laços de pertencimento, de identidade e de diferença que o Outro traz consigo (COMANDULLI, 2007).

O problema da hospitalidade está baseado no engajamento em favor de uma morada, de uma identidade, de um espaço (DERRIDA, 2003). Este tema nos conduz à conclusão de que se trata, realmente, de uma questão política mundial contemporânea e sobre a qual não é mais possível condescender com políticas marcadas pela indiferença ao Outro. A sociedade globalizada – e o modo como as pessoas se apropriam das novas tecnologias tem um papel aqui – tem enveredado por caminhos que conduzem a um individualismo crescente, para a homogeneização dos hábitos e para o fortalecimento dos conflitos e da intolerância de ordem política, étnica e religiosa (COMANDULLI, 2007).

Esta sociedade globalizada é o que Han (2017) chama de “enxame digital”. Neste ambiente, a solidariedade para com o outro está desaparecendo. Ao invés de nos preocuparmos com pessoas reais, a mídia digital está fazendo com que a nossa comunicação esteja dispensando corpos e rostos. Ela desmantela o real e totaliza o imaginário. Como exemplo, temos os smartphones, espaços de narcisismo, esferas do imaginário, nos quais as pessoas se fecham nelas próprias (HAN, 2017). Retomando as ideias de Martino (2016), é

importante atentar que, enquanto as redes sociais permitem uma superexposição de si, elas não contribuem, necessariamente, para a compreensão do outro (MARTINO, 2016).

De acordo com Comandulli (2007), a massiva desigualdade na distribuição dos recursos, o pluralismo cultural, muitas vezes, associado ao nacionalismo, ao separatismo étnico e ao fundamentalismo religioso são disposições que favorecem a violência, a segregação e o ódio entre os povos (COMANDULLI, 2007).

Será que a cultura que vem com o estrangeiro, ao invés de impor limites, não pode ser, ela própria, uma janela aberta para o estrangeiro acolher o seu hospedeiro? É possível não repetir os mesmos equívocos, como por exemplo, o que alimenta, desde os primórdios, o ódio entre diferentes etnias em países do Oriente Médio, da Ásia e da África? Ou será a recorrência do erro uma evidência do quão difícil é o aprendizado pela experiência? A sociedade, na sua dinamicidade, pode comprometer-se em eliminar mal-entendidos e, plantada em debates constantes, promover uma consciência de unidade em torno da hospitalidade, em nome de uma emergência ética que é um fenômeno do nosso tempo? (COMANDULLI, 2007, p. 97)

Atualmente, a hospitalidade incondicional parece estar cada vez mais no campo da ilusão, pois o momento atual é marcado pelo endurecimento das regras de imigração, de retóricas xenofóbicas de que os imigrantes sugam empregos e de tensão permanente nas fronteiras. No limiar tenso entre hospitalidade e hostilidade vem à luz a dificuldade que significa não transformar o Outro no mesmo, acolher sem torná-lo um objeto passível de ser absorvido, assimilado, separado, desprezado ou rejeitado.

Desta forma, a ética da alteridade de Levinas exige uma nova relação de acolhimento na hospitalidade, pautada numa proximidade incondicional com o Outro, pois o acolhe sem submetê-lo aos domínios do Eu. Acolher o Outro na alteridade pressupõe uma nova forma de abordar a hospitalidade (COMANDULLI, 2007).