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6 PONTOS DE VISTA DE UM COLETIVO DE MAQUINISTA:

6.4 As condições gerais para o trabalho

6.4.2 A hierarquia e os mecanismos de controle

O trabalho do maquinista é fiscalizado e avaliado pelos inspetores de trecho num sistema de controle contínuo por meio da ferramenta de gestão da empresa, estruturado em três instrumentos de avaliação (teste de desempenho, acompanhamento da viagem e análise do gráfico de registro da viagem). Os resultados desta avaliação são traduzidos em uma escala de pontuação para os maquinistas e de acordo com a gravidade e ou desvio cometido, e são registrados na “carteira funcional” virtual. Ao acumular pontos (12, 18, 25 e 30)116, o

maquinista passa a ser mais observado pelos inspetores e pela supervisão, o que gera efeitos diretos na realização de reciclagens, nas reavaliações, nos ajustes salariais, na promoção ou na demissão.

Nas seções 6.4.2.1 a 6.4.2.3 apresentam-se a estrutura dos instrumentos de avaliação e suas características.

6.4.2.1 Teste de Desempenho

O maquinista é avaliado durante toda a sua jornada de trabalho, quanto ao cumprimento das normas prescritas no Regulamento de Operação Ferroviária (ROF) – um manual detalhado com mais de 300 itens que apresenta deveres e obrigações gerais e específicas para a operação, incluindo regras sobre: comunicação, sinalização, manobra, formação e recomposição dos trens, licenciamento e circulação, trens especiais e serviço de manutenção – e das normas referentes aos Procedimentos de Operação (PROs), normas criadas mediante as particularidades de cada região ou trecho da ferrovia em função de a regra geral do ROF não condizer com a realidade da operação, portanto não exequível, o que imprime um certo caráter contraditório entre algumas regras do ROF e as determinadas pelos (PROs). Sobre o ROF e os PROs, os maquinistas comentaram:

O ROF, ele orienta o nosso trabalho oferecendo segurança e os limites, mas, se eu cumprir ele na risca, o trabalho não sai, e eles sabem disso. Por isso, eles colocam este tanto de PRO para a gente poder rodar com o trem. (Alessandro – maquinista).

Os PROs, quando a gente fica trabalhando num mesmo trecho, fica mais fácil de guardar, pois você vai lembrando as novas regras todo dia e acaba decorando. Mas às vezes a gente erra, outras confunde [...]. Você cumpre o que estava escrito no ROF, e o inspetor diz que tinha que cumprir o PRO. Eles usam muito isso para justificar nosso erro (Rivaldo – maquinista). Para realizar essa avaliação, o inspetor pode estar junto ao maquinista (dentro do trem) ou mesmo a distância (observando, do pátio da ferrovia, quando o trem passa por determinado trecho, ou por escuta das comunicações via rádio, etc.). A avaliação é feita sem o conhecimento prévio do maquinista, ele somente é informado posteriormente ou ao término da avaliação, quando lhe são apresentados os resultados: teste satisfatório (não houve transgressão das normas) ou teste insatisfatório, “negativa” (o desvio cometido é apontado e, de acordo com o grau de gravidade, ele recebe a pontuação na carteira funcional). Ao final, o maquinista é convocado a assinar o teste eletronicamente no sistema por meio de equipamento portátil ou no computador da ferrovia.

Sobre esse teste, os maquinistas declaram ser uma avaliação abusiva, sobretudo porque prevalece o poder da hierarquia sem margem de defesa, e cujo resultado sempre gera uma “negativa”. Um dos maquinistas relata: Somos presa fácil, é só o inspetor ficar ali, ó, de mutuca quando ele precisa, e sempre vai encontrar o que procura, porque a gente não consegue cumprir tanta regra ali, ó... na risca o tempo todo (Bernardo).

Os maquinistas relatam que detalhes insignificantes representam motivos de negativa, o que acaba por gerar insatisfação pela forma infantil como são tratados, pois os erros apontados na maioria das vezes não impactam a condução. Alguns exemplos foram relatados pelos maquinistas:

Outro dia, no trecho tava muito calor, então eu tive que rodar com a janela aberta, e ele [referindo-se ao inspetor] me viu passando. Quando larguei serviço, o teste negativo tavalá para assinar, e fui embora de cabeça quente (Pablo – maquinista).

Já tive negativo porque tirei o abafador rapidinho, só para limpar o suor. O inspetor estava comigo na viagem e me viu usando o tempo todo, é covardia mesmo! (Gabriel – maquinista).

Eu perdi um ponto porque estava falando no rádio e esqueci de falar o câmbio no final de uma conversa. Mas, pô, eu já tinha rodado o dia inteiro e falei em todas as outras vezes. Tô muito chateado porque só por causa de bobeira, agora já vou ficar com 18 pontos, daqui a pouco me mandam embora (João – maquinista).

6.4.2.2 Acompanhamento da viagem

O maquinista é acompanhado pelo inspetor durante uma viagem (exigência de no mínimo uma hora) e é informado que está sendo avaliado. O inspetor utiliza um check-list operacional contendo 82 itens para questionamentos e observação do comportamento referentes à segurança, à condução do trem, a premissas e a valores da empresa (ver ANEXO E). O maquinista que obtiver nota inferior a 70 pontos recebe uma pontuação na carteira de acordo com a decisão do inspetor em relação à gravidade das falhas detectadas e será reavaliado em outra viagem.

De acordo com os maquinistas, essa avaliação pode ser realmente um momento de ensino-aprendizagem, um importante espaço para troca de experiências, pela oportunidade de diálogo, pelas explicações que se colocam diante das situações vivenciadas; contudo relatam que, nesta direção, isto ocorre com pouca frequência devido à variação do interesse de cada inspetor, já que na maioria das vezes a motivação central consiste na meta de encontrar erros:

Esta avaliação, acho boa, ela tira dúvida. O inspetor já me mostrou, por exemplo, que, quando eu tirei um ponto brusco, deu choque nos vagões, um vagão bateu no outro, entendeu? Vi então ali, na prática. O problema é quando o inspetor mal conversa, vai vendo erro até onde não tem. Você não pode fazer nada, isso é duro de aguentar! (Sidney – maquinista).

A insatisfação entre os maquinistas relacionava-se ao caráter punitivo da avaliação, quando dar nota ao erro não resultava em melhorias e aprendizado, configurando apenas um meio de atingir metas:

Para alterar o ponto de freio de um prooutro, a gente tem que esperar 20 segundos, aí o inspetor me disse que esperei só 18 segundos e me deu um negativo. Ora, esta precisão é demais, a cabeça dele não conta igual a minha, e isso não interfere em nada, pois a aplicação da minha programação estava toda certinha (João – maquinista).

Assim, os maquinistas sentiam-se desestimulados pela falta de critérios para apontar os erros:

Aqui a gente nunca para de aprender. Não me importo com esta avaliação, pois ela até mostra o erro e ensina. Só penso que dar nota para o erro, isso não nos ajuda em nada, pelo contrário só desestimula. A gente se sente desvalorizado, essa avaliação aqui trata a gente igual criança, coloca a gente de castigo por nada, a troca de meta [...] isso estressa muito o dia a dia, desgasta todo mundo (Frederico – maquinista).

Aqui o negócio é o seguinte, conhece aquele ditado… você pode fazer tudo certo nas 10 horas de trabalho, aí não recebe nada, nem elogio, nem dinheiro, nem valor. Mas, se no último segundo da sua jornada, se eles acharem um errinho, pode ser qualquer coisa, se for para cumprir a meta deles, o maquinista tá no sal, e aí é como se você não tivesse feito nada de bom naquele dia (Felisberto – maquinista).

6.4.2.3 Análise do gráfico de registro da viagem

Consiste na avaliação de uma viagem do maquinista por meio da interpretação por parte do inspetor dos gráficos gerados pelo sistema de gravação de dados presente na locomotiva (“caixa-preta” que registra todos os comandos efetuados durante a viagem), a fim de verificar em 22 itens se houve algum desvio durante a condução que transgrida as normas de segurança e de operação estabelecidas (ver ANEXO F). O maquinista deve obter nota superior ou igual a 70 pontos, do contrário recebe uma pontuação na carteira (conforme avaliação do inspetor quanto à gravidade do desvio) e será reavaliado em outra viagem. Ao final, o inspetor registra no sistema o resultado da análise.

Com referência a essa avaliação, os maquinistas relatam que o fato de a análise do gráfico ser realizada de forma isolada pelo inspetor tende sempre a uma interpretação negativa, já que o objetivo é encontrar o erro. Referem que o registro realizado não expõe as situações que se apresentaram no trecho e consideram que, se esta análise fosse feita em conjunto para interface de informações, poderia resultar em orientação para mostrar os problemas que de fato ocorrem na operação:

O inspetor me deu negativa porque viu no gráfico velocidade errada, aí eu expliquei que a máquina já tinha apresentado problema, mas mandaram eu seguir viagem. Falei para ele: Olha na conversa do rádio que tava registrado isso... e eu tavacom um trem com poucos vagões, tava patinando, e joguei areia, aí subi a 10,2, e a máquina tavacom problema. Eu falei isso com ele, mas não adiantou nada, tive que assinar e assumir o que não fiz (Ítalo – maquinista).

Além da ferramenta de gestão, os maquinistas também são avaliados na interface com o controlador de tráfego do CCO, quando é observado se o maquinista envia corretamente as informações que são solicitadas por meio das mensagens (macros) ou por telefone e se segue os procedimentos solicitados (paradas, recuos, velocidade, desligar máquinas, etc.), cumprindo as determinações para manter a circulação do trem dentro do que foi planejado para o dia. Caso tenha alguma intercorrência durante a condução, os maquinistas podem receber alguma advertência ou mesmo serem despontuados se o fato for informado ao seu inspetor. Alguns maquinistas referem que esta relação às vezes é conflituosa em função da

falta de conhecimento do controlador de tráfego sobre o seu trabalho:

O pessoal não sabe nada de trem na prática, eles deviam vir aqui conhecer a realidade, às vezes pedem para a gente parar o trem e desligar, e daí um minuto pedem para dar partida. Eu não desligo mesmo, porque um trem de 8 mil toneladas, dependendo do lugar, é arriscado desligar, pode dar queda de ar e depois você não consegue arrancar. Mas eles acham que isso aqui é igual “ferrorama de brinquedo” (Felisberto – maquinista).

Também comentam que a forma de lidar com as intercorrências nem sempre tem a melhor direção, pois fazem prevalecer a hierarquia em situações desnecessárias, preferem acionar o inspetor a estabelecer um diálogo com os maquinistas:

A relação com o CCO nem sempre é boa, depende muito do despachador [ou controlador de tráfego] que você pega. Às vezes, o sistema não funciona [quando, por exemplo, manda uma mensagem e às vezes o despachador não responde de imediato depois de uma parada solicitada. Ele pede para dar partida e, por ter que esperar o procedimento técnico, não arranca] e, ao invés de ligar para você, ele não faz, ele liga para o inspetor. É tudo a ferro e fogo, não querem saber o que aconteceu (Ítalo – maquinista).

Os maquinistas ainda relatam que o sistema permite avaliar a interface com o operador de tráfego, mas na maioria das vezes não o fazem, porque não veem resultados concretos.

Eu faço quando fico danado com o despachador, para deixar registrado, uma forma de me defender, né? Mas, no fundo, a gente sabe que não muda quase nada. Só dá alguma coisa quando é sério, tipo assim... uma licença errada em algum trecho e dá um acidente, essas coisas (André –maquinista).