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2 FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA UMA

2.2 Os contributos da Ergologia

2.2.1 Saberes em aderência e desaderência

A abordagem ergológica, ao colocar em evidência o conceito da atividade humana – “precisa o que se coloca como drama na experiência humana, o debate de normas, e mostra como a experiência como sedimentação instável de atividades é matriz permanente de história” (SCHWARTZ, 2010, p. 55) –, promove um meio profícuo para interpelar a construção dos conceitos e como estes são produzidos, apresentando uma diferenciação entre os saberes produzidos em desaderência e em aderência à atividade.

De acordo com Durrive e Schwartz (2008), os conceitos e a vida se unem como encruzilhada de debates aparentemente contraditórios, mas necessários: de um lado, normas antecedentes que obedecem ao curso do campo epistêmico, onde o exercício do pensamento envolve a tentativa de neutralizar as dimensões do debate de normas, das condições históricas, do momento e do meio em que se insere a atividade, conferindo valor ao resultado da experiência produzida; do outro lado, o campo ergológico, que reconhece os constrangimentos e as disposições a renormalizar, o debate de normas até à dimensão mais singular, confrontando-as ao meio, à história, considerando os saberes e os valores produzidos pela atividade em cada situação singular.

Na direção de pensar a construção do saber conceitual, Schwartz (2009)18 apresenta uma proposta de classificar os conceitos nos campos epistêmico e ergológico agrupando-os em diferentes níveis de epistemicidades. A abordagem aqui exposta não comtempla a amplitude das reflexões realizadas pelo autor, privilegiamos apenas uma descrição suscinta sobre estes diferentes conceitos.

a) Epistemicidade 1: refere-se ao conjunto de conceitos, leis ou modelos que emergem no campo epistêmico, os quais produzem seus conhecimentos

18 Cf. Diapositivos apresentados em um seminário público no Instituto de Ergologia – Aix en Provence: Aix

visando objetos que não são atravessados pelo debate de normas, ou seja, sem atividade. Por exemplo: a lei da queda dos corpos, os princípios da inércia e da gravidade, o conceito de calor específico, o DNA, etc. São conceitos produzidos em desaderência, ou seja, são absolutos e apresentam-se válidos em qualquer momento e ou lugar, são conceitos que integram as normas antecedentes, por meio das técnicas materiais, das instalações industriais no âmbito da vida social.

b) Epistemicidade 2: relacionam-se às normas da vida social que se apresentam cristalizadas em conceitos, leis, regulamentos e procedimentos (como o sistema jurídico, as regras do urbanismo, de segurança, os contratos de trabalho e os organogramas, etc.). São conceitos que são parte das normas antecedentes, mas que produzem seus conhecimentos visando objetos com atividade, portanto reconhecem o debate de normas. Por exemplo, a legislação trabalhista faz parte das normas antecedentes (prescritas), mas apresenta margens de reconhecimento dos debates que se colocam entre o homem e o meio, no exercício do trabalho.

c) Epistemicidade 3: agrupa conceitos característicos do campo das disciplinas humanas e sociais. São conceitos científicos desenvolvidos em busca de conhecer os fenômenos humanos, mas que não raras vezes servem para instrumentalizar e legitimar normas que se situam no nível da epistemicidade 2, bases para propor uma certa padronização. Neste sentido, Schwartz chama a atenção para o fato de que o pressuposto aí implícito de modelização possível dos comportamentos humanos enquadra-se como um uso “não saudável”, usurpador. O autor apresenta três exemplos neste contexto: os modelos de competência que tendem a neutralizar ou subdimensionar a dimensão histórica da atividade humana, a experiência, os saberes investidos, o debate de valores e normas que atravessam o trabalho; os modelos de gestão baseados em teorias de motivação; e teorias econômicas baseadas na noção de homo economicus seriam conceitos de uso “usurpador”, ou seja, retiram o aspecto dramático de toda a atividade humana.

d) Epistemicidade 3 bis: refere-se às conceitualizações que não objetivam descrever, nem padronizar, nem ler o futuro das atividades humanas, somente a partir das normas antecedentes. Proposta que pensa ser impossível modelizar, antecipar, explicar de forma satisfatória a alteratividade embasada

em hipóteses gerais e anteriores à situação, exigindo que a elaboração dos conceitos seja produzida de forma situada no momento em si da aprendizagem, interpelando as categorizações predefinidas, numa postura de desconforto intelectual permanente, considerando o debate de normas e as ressingularizações que se inscrevem nas atividades humanas. Nisto consiste o cerne do dispositivo dinâmico a três polos (DD3P), onde a construção dos conceitos propostos pela disciplina ergológica (debates de normas, renormalização, uso de si, corpo-si, ECRP, etc.) se estrutura a partir de definições contextualizadas, não tendo a pretensão de serem referências definitivas; mas que permitem a proposição de uma reflexão e aprendizado constante sobre as facetas que articulam e permeiam a vida humana.

O conceito é o instrumento para pensar; ele permite recortar, definir, generalizar, abstrair-se do presente. […]. Conceito e vida formam uma unidade dialéctica: a vida humana promove a conceptualização para alargar os seus horizontes de domínio do meio (DURRIVE; SCHWARTZ, 2008, p.24).

Ao explicitar esses diferentes níveis de epistemicidades, a Ergologia torna fecundo o debate dos conceitos em torno da atividade humana, considerando a importância de “uma mistura de saberes armazenados num polo atemporal e de competências geradas e retrabalhadas no polo do histórico” (SCHWARTZ, 2002, p. 133), propondo que a produção do conhecimento relativo às ciências do homem seja construída de modo que os saberes em desaderência (saber acadêmico previamente instituído) sejam permanentemente submetidos à aderência do viver (saberes da experiência, resultante da atividade humana), possibilitando um re (pensar) sobre a vida, a atividade e o trabalho para melhor conhecer e encontrar de fato “forças” para transformar as situações de trabalho.

Por essas vias de investigação, no diálogo entre a Ergonomia e a Ergologia, é que conduzimos nossa abordagem neste trabalho, examinando sob o ângulo da saúde a compreensão da relação estabelecida entre o homem e o meio, ampliando nosso olhar na procura dos saberes construídos e das competências desenvolvidas na atividade.

3. SOBRE A PENOSIDADE NO TRABALHO: TERRITÓRIOS, EMBATES,