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3 SOBRE A PENOSIDADE NO TRABALHO: TERRITÓRIOS,

3.3 Síntese Intermédia

A abordagem realizada até o presente momento situa a trilha da nossa investigação, os fundamentos teórico-metodológicos utilizados e o estado da arte sobre o debate em torno da penosidade no trabalho. Apresentamos aqui os pontos centrais que estruturaram a composição da parte I na condução do estudo.

A pesquisa se inicia articulada ao Projeto “Conexões de Saberes sobre o Trabalho: Saúde e Segurança na Mineração”, via que possibilitou a definição do nosso campo empírico em uma ferrovia de transporte de carga em Belo Horizonte, Minas Gerais. O conhecimento dos indícios de sofrimento no trabalho no setor de logística dessa ferrovia, resultantes de uma consultoria diagnóstica contratada pela empresa, conduziu a proposta da demanda inicial que nos foi apresentada pelo médico do trabalho, para realizarmos uma intervenção a partir dos resultados já existentes. Não aceitamos a proposta e reformulamos a demanda direcionando que só seria possível a compreensão do “sofrimento no trabalho” a partir da análise situada em aderência à atividade no aqui e agora, buscando compreender a relação entre as condições reais do trabalho e a saúde. Momento em que assumimos investigar a atividade dos maquinistas ferroviários, cujos resultados da pesquisa poderiam contribuir com elementos para produzir reflexões e intervenções no contexto analisado.

Com base na integração dos princípios teórico-metodológicos da Análise Ergonômica do Trabalho (GUÉRIN et al., 2001; WISNER, 1987) e da Ergologia (SCHWARTZ, 1998), construímos as etapas de investigação ao longo da experiência vivenciada no campo, durante os anos de 2013 e 2014. O contato e o diálogo com os maquinistas foram conduzindo as observações da atividade, levando-nos a um vai-e-vem da cabine do trem a outros setores da ferrovia (centro de controle operacional, setor comercial e os inspetores), o que nos permitiu compreender de forma geral a concepção e a execução do trabalho dos maquinistas. Os

contributos da Ergonomia nos permitiram revelar, no decorrer de cada etapa, os principais condicionantes do trabalho que atravessavam a “rotina” sobre os trilhos e as implicações na saúde dos maquinistas. Além disso, a interface estabelecida com os resultados da pesquisa de mestrado, realizada no mesmo campo empírico sobre o trabalho dos inspetores ferroviários (finalizada em 2014), também nos auxiliou na apreensão do porquê e de como os maquinistas eram punidos no trabalho. A compreensão destes elementos fundamentou a construção da nossa hipótese de pesquisa sobre a penosidade neste contexto de trabalho. A análise dos resultados consolidou nossa hipótese de que os condicionantes que atravessavam a “rotina” sobre os trilhos apresentavam indícios de penosidade no cotidiano de trabalho dos maquinistas, evidenciando que a expressão “carregar o trem nas costas”, por vezes utilizada por estes profissionais, expressava não só as responsabilidades da condução de um trem, mas referia-se também aos efeitos das condições de trabalho, das normas e orientações definidas para seu trabalho. O que nos suscitou uma reflexão com base na abordagem ergológica do trabalho sobre a questão: o que é a penosidade no trabalho? Como circunscrevê-la e defini-la? Pode ela assumir o estatuto de “conceito” e que tipo de conceito? Não poderá ser associada a diferentes níveis de epistemicidade? Quais? Conduzimos esta discussão no caminho dos conceitos produzidos nos campos epistêmico e ergológico proposto por Schwartz (2009), o qual se explicitou como terreno profícuo para esta reflexão, lançando luz sobre várias formas de confronto dos saberes em torno desta temática.

Realizamos então uma investigação sobre o debate em torno da penosidade no trabalho, situando a discussão no campo da saúde ocupacional e no âmbito jurídico sobre o seu reconhecimento no Brasil, em Portugal e na França. A abordagem realizada evidenciou que a penosidade é um velho problema no mundo laboral, decorrente dos constrangimentos produzidos pelas transformações dos processos de trabalho, envoltas nas contradições dos embates das relações sociais, impostas pelos sistemas políticos, econômicos e sociais. Que o debate em torno da penosidade é atual e que, embora o conceito seja de uso comum, verifica- se que, diante das diferentes evoluções da dinâmica das relações entre as forças sociais em torno desta temática, existe uma dificuldade de definir, de determinar as práticas diagnósticas para perceber a natureza do esforço ou sofrimento, de identificar as situações e os fatores que caracterizam a penosidade, bem como construir diretrizes no âmbito da legislação trabalhista para seu reconhecimento. A abordagem ainda apontou que os campos das ciências como a Ergonomia, a Psicologia do Trabalho e a Ergologia, que tratam da investigação da relação entre saúde e trabalho sob o ponto de vista da atividade humana, trouxeram contribuições para estabelecer novos parâmetros para a investigação dos riscos ocupacionais, na medida em

que centram suas análises sobre o trabalhador, situando o olhar sobre fatores multidimensionais em busca de compreender as ações, as emoções e as regulações dos indivíduos em situações reais de trabalho. Assim, a penosidade apresenta-se como uma noção complexa, que exige analisar as questões da saúde, mas também as sociais que ela cristaliza, em busca de reconhecer, prevenir e delimitar formas de compensação aos trabalhadores; portanto, uma demanda social de atenção à evolução da saúde dos trabalhadores. A revisão realizada na esfera legislativa no Brasil, em Portugal e na França evidenciou que a penosidade se encontra enquanto um conceito intérmino, em construção, que avança em diferentes formas, resultantes de uma dinâmica social própria de cada país, que apresenta diferentes níveis de relações entre os atores sociais (governo, empresas e trabalhadores) que colocam em debate as normas e os valores.

No Brasil verificamos que o debate em torno da penosidade está inserido na Constituição Federal (garante o direito ao adicional de penosidade) e em várias outras instâncias da legislação brasileira, contudo ainda existe um “vazio jurídico” que não confere diretrizes efetivas para o reconhecimento da penosidade no trabalho, sobretudo pela indefinição do conceito e dos indicadores para o diagnóstico das condições que assim possam ser caracterizadas. Observa-se que, nos projetos apresentados na esfera legislativa, os conceitos de penosidade aparecem construídos em desaderência à situação real de trabalho e sem estabelecer um debate com outros atores sociais, contudo comtemplam indicações que situam a diferenciação entre a insalubridade, a periculosidade e a penosidade; apontam fatores multidimensionais englobando aspectos que envolvem desgaste físico, mental, estresse, exposição a agentes químicos, limites de tolerância (calor, chuva, intervalos de descanso entre jornadas, etc.), entre outros; e apresentam sugestão de monetarização do risco a ser designado para o adicional “regulamentado” constitucionalmente.

Em Portugal verificamos que a legislação que regula as relações entre saúde e trabalho também apresenta lacunas jurídicas para instrumentalizar o reconhecimento concreto da penosidade no trabalho. Mas os avanços construídos no âmbito da administração pública envolveram um debate entre atores sociais (sindicatos, associações e órgãos do governo) que delimitaram algumas diretrizes para uma regulação.

Na França encontramos um debate que obteve avanços na normatização social, que envolveram uma ampla negociação entre governo, empresas, sindicatos, pesquisadores e trabalhadores. As medidas constituídas por meio das leis (de 2010 e 2014) que estão incluídas no Código do Trabalho Francês fornecem diretrizes para garantir a rastreabilidade de informação em saúde e segurança no trabalho, para prevenir ou compensar a penosidade no

trabalho. A determinação dos dez fatores de risco a serem investigados em situação de trabalho, a designação de responsabilidades para as empresas e a elaboração de um sistema de portabilidade do risco para os trabalhadores já se conforma num caminho concreto de reconhecimento da penosidade no trabalho e numa forma efetiva de compensação aos trabalhadores.

A reflexão realizada apontou que pensar a penosidade requer articular vários saberes – saberes em aderência e em desaderência à atividade. Assim, para compreendermos o contexto do trabalho ferroviário, na perspectiva ergológica, tornou-se fundamental conhecermos os marcos históricos (político, econômico e social) que conduziram a evolução do transporte ferroviário de cargas no Brasil, bem como o cenário atual do setor e do estado de Minas Gerais, a fim de verificarmos como essas transformações perpassam a organização da atividade do maquinista na ferrovia pesquisada, explicitando a evolução das normas e o debate de valores que se colocavam no trabalho. Desta forma, possibilitou termos uma melhor clareza sobre o “custo” destas evoluções para os trabalhadores, no âmbito da saúde, da segurança e do emprego nas atuais condições de trabalho. Prosseguimos nosso estudo apresentando, na parte II, a abordagem realizada.

PARTE II

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4. O TRANSPORTE FERROVIÁRIO DE CARGA NO BRASIL