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1. INTRODUÇÃO

1.4 Hipótese

Em meio às políticas públicas focadas na ampliação do conhecimento em relação à cultura africana e afro-brasileira, organizadas pelo Poder Executivo de diferentes estados e municípios a partir do ano de 2003, foram crescentes as iniciativas de publicação de orientações curriculares e de organização de formações de professores, entre outras modalidades de intervenção, realizadas para sensibilizar os trabalhadores da educação e para construir um aparato didático e pedagógico a respeito do tema. A fim de que esses projetos fossem edificados, esses sistemas tiveram que, obrigatoriamente,

alinhar-se, primeiro, à lei 10.639/03 e ao parecer 03/04, que orienta a temática e, posteriormente, à lei 11.654/08.

Para Caetano e Silva (2017) a implementação, bem como a ampliação e o sucesso dessas normativas, depende de um trabalho conjunto, que começa com as recomendações propostas e vai até o papel de gestores e professores da escola em todo o território nacional. As questões referentes ao tema trouxeram vários desafios para o corpo docente das escolas, dentre os quais, destacam-se: a preparação dos professores, o material didático adequado e o acompanhamento das instituições de ensino. Nesse sentido, segundo os autores, é necessário tanto desenvolver um trabalho que envolva as demandas da cultura africana e afro-brasileira, para que os professores possam acumular uma ampla compreensão sobre a temática, como elaborar um material didático adequado e realizar um acompanhamento do trabalho dos professores, o que deve ser feito pelas instituições.

Na mesma linha das questões expostas pelos autores, o Conselho Nacional de Educação (CNE) introduziu, na lei 10.639/2003, a obrigatoriedade da realização daquelas ações para as instituições de ensino do país, desde a educação básica até o ensino superior, como já expresso no texto, indicando recomendações e orientações para estimular o aprendizado de conceitos que permitam aos profissionais do ensino refletir sobre o tema. Essa resolução estabelece um núcleo de projetos político-pedagógicos como um dos focos de avaliação do andamento do PPP nas escolas. O tema das relações étnico-raciais, dentro do contexto educacional, tem por objetivo a formação de cidadãos conscientes a respeito das questões raciais, além de promover condições de igualdade no exercício de direitos sociais, políticos e econômicos.

Nesse sentido, de acordo com Caetano e Silva (2017), o ensino das relações étnico-raciais deve ser conduzido tendo como referência os seguintes propósitos: “Consciência política e histórica da diversidade, fortalecimento de identidade e de direitos, ações que combatem o racismo e as discriminações”.

Ainda segundo os autores, podem-se identificar ao menos três abordagens sobre diversidade nas políticas desenvolvidas pelo MEC. A primeira tem por base o binômio inclusão/exclusão, que busca incorporar os excluídos a um modelo instituído de política a partir da perspectiva socioeconômica, que por vezes pode desconsiderar suas identidades específicas. Em tal abordagem, a questão étnico-racial se dilui dentro de um sistema excludente, e a diversidade nesse contexto não resulta em revisão das concepções, modelos e referências das políticas educacionais.

As circunstâncias do sistema excludente devem ser baseadas na ação afirmativa ou na discriminação positiva. Nela, a compreensão é de que a situação de pobreza e/ou desigualdade social em que se encontram determinados grupos sociais, como os negros(as), índios e mulheres, não pode ser atribuída exclusivamente aos indivíduos isoladamente. É de acordo com essa percepção que condições descritas como etnia, “raça”, sexo e a definição de pertencimento a um grupo são consideradas em alguns programas e políticas do MEC, como, por exemplo, no Programa Universidade Para Todos (ProUni).

Na terceira abordagem, a diversidade é tratada na chave das “políticas de diferença”, as quais se distinguem das políticas de inclusão social e das políticas da ação afirmativa, não pela ênfase no particularismo, mas pela demanda igualitária de reconhecimento do direito das diversas culturas a se expressarem e atuarem na esfera pública. Esse enfoque questiona frontalmente as práticas associadas ao mito da democracia racial e aponta para uma mudança das concepções e das formas de organização que orientam as políticas educacionais. Segundo os autores, tal perspectiva ainda não recebeu a devida atenção na agenda do Ministério da Educação.

Esse tripé envolve as políticas de ação afirmativa propondo reflexões e avaliações, que devam ser instrumentos efetivos na organização e reorganização estrutura de seu funcionamento. Tais atividades deve levar em conta as demandas de grupos que compõem a sociedade no que se refere as suas diferenças e identidades.

A proposta de Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana foi mais um instrumento de Estado, estruturado a partir de seis eixos estratégicos, de modo que cada eixo contém um conjunto de metas, com suas respectivas ações principais e atores a serem envolvidos pelo MEC em seu desenvolvimento.

Os eixos são os seguintes: 1) Fortalecimento do marco legal; 2) Política de formação para gestores e profissionais de educação; 3) Política de material didático e paradidático; 4) Gestão democrática e mecanismos de participação social; 5) Condições institucionais (financiamento, sensibilização e comunicação, pesquisa, equipes e regime de colaboração); e 6) Avaliação e Monitoramento (BRASIL, 2008).

A obrigatoriedade de inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos da educação básica trata-se de decisão política, com fortes repercussões pedagógicas, inclusive para a formação de professores. Com essa medida, reconhece-se

que, além de garantir vagas para negros(as) nos bancos escolares, é preciso valorizar devidamente a história e cultura de seu povo, buscando reparar danos, que se repetem há cinco séculos, à sua identidade e a seus direitos (BRASIL 2004).

A especificação dessa legislação se referir às áreas de História, Arte e Literatura, entretanto as formações anunciadas pelo sistema comtemplam uma grande maioria dos profissionais de educação. Por esse motivo, é importante salientar que todos os componentes curriculares devem trabalhar com a temática e, nessa conjuntura, a Educação Física não fica de fora desse centro.

Por esse motivo, com a finalidade de construir a hipótese da tese, retomo o debate a respeito do componente em análise. Imbricado nas relações éticas e em diálogo com as leis, juntamente com os documentos organizados pela Secretaria Municipal de Educação e pela Diretoria Regional do Campo Limpo, a discussão proposta começa a ter suas afinidades com a metodologia.

Considerando as trajetórias sociais e históricas do componente curricular em questão suas transformações foram importantes, como já observado por Lima (2015), cabe tecer a partir daqui um breve relato a respeito de como se consolidaram as referências sobre os campos epistemológicos das ciências humanas.

A teorização crítica que se produziu sobre a ótica da sociológica se opôs à forma de organização dos Estados-Nação que se alinhavam ao capitalismo, ao liberalismo e ao neoliberalismo. Com o componente de Educação Física não foi diferente, em alguns casos as posições se mostravam contrarias à conjuntura social normalmente ligada a esses sistemas de pensamento político e econômico. A direção rumou para os conceitos estruturantes que, de algum modo, reúnem os principais contributos para tais análises. Assim, ideias como: ideologia, reprodução cultural, resistência, esfera pública, controle e poder foram os novos caminhos a seguir (NEIRA e NUNES, 2009; SILVA, 2013).

Nesse sentido, dentre as propostas curriculares de Educação Física, as interferências críticas contemplam o enfoque denominado “sociocultural”, tomando como referência princípios norteadores como os conceitos de “formação humana”, “ensino” e “conteúdo da Educação Física” (NEIRA e NUNES, 2009).

Como formação humana, Neira e Nunes (2006) entendem o conjunto de normas, regras, e regulamentos que servem de base para a organização de um grupo social. Assim sendo, a escola deve preparar as crianças, os jovens e os adultos que nela estão para o agora, uma vez que o futuro é uma incógnita.

Silva (2013) desenha um cenário referente às teorias educacionais no âmbito das teorias tradicionais, críticas e pós críticas que, em algum momento, foram citadas nas obras de Lima (2015) e Neira e Nunes (2006; 2009). A Educação Física como a educação em seu sentido amplo também foi impactada por tais teorias e deixam ou deixaram seu legado cravado nas páginas dos livros e em práticas pedagógicas.

As teorias tradicionais sobre currículo nascem nos Estados Unidos, com Bobbitt, e denotam que o modo de organização curricular busca igualar o sistema educacional ao sistema industrial, utilizando o modelo organizacional e administrativo de Frederick Taylor. O teórico do currículo Bobbitt encontrou suporte na teoria de Ralph Tyler e na de John Dewey (SILVA, 2013).

Na década de 1960 ocorreram grandes agitações e transformações na sociedade e na cultura. Assim, de acordo com Silva (2013) foi nesse contexto que começam as críticas as concepções mais tradicionais e técnicas do currículo, com isso, estudiosos sobre o assunto evidenciam que as teorias críticas do currículo efetuam uma inversão nos fundamentos das teorias tradicionais.

Como já mencionado, essa é a mesma percepção exposta por Lima (2015) e Neira e Nunes (2006; 2009) no que tange à Educação Física.

Posteriormente, em sua revisão teórica, Silva (2013) apresenta o cenário dos fenômenos pós-críticos que começam a permear a educação e ampliam o olhar para os acontecimentos. Segundo o autor, essa teoria tem sua origem nos países dominantes dos continentes norte-americano e europeu e, atualmente, é discutida sob suas várias vertentes, inclusive entre grupos culturais dominados no interior daqueles países, os quais buscam validar seus costumes culturais e solucionar os problemas que se apresentam em comunidades com identidade “racial” e étnica em relação à “cultura nacional dominante”.

Por mais que algumas relações possam querer manter as relações de poder alinhadas à hegemonia burguesa, dois exemplos representam um importante instrumento de luta política, pois eles remetem às seguintes questões: o que conta como conhecimento oficial? O que seria legítimo das culturas que impõe uma ideia de Estado- Nação? Assim, Neira e Nunes (2009) nos alertam que a igualdade não se obtém simplesmente por meio da equidade de acesso ao currículo hegemônico, por isso é importante haver mudanças substanciais do currículo existente, no que se refere às suas práticas e aos temas a serem estudados.

As teorias pós-críticas contemplam o currículo como narrativa étnica e racial, reafirmando outro olhar e propondo a ampliação do pensamento curricular crítico, o último aponta a dinâmica de classe como única no processo de reprodução das desigualdades sociais. Dessa forma, o alerta para questões como etnia, “raça” e gênero configura um novo repertório educacional significativo no mundo contemporâneo. É importante frisar, no entanto, que recentemente estão sendo problematizadas expressivas relações dentro do currículo que dialogam com essa contemporaneidade, como vimos nos documentos organizados pelos poderes Executivos de diferentes níveis de governo. O que vem sendo feito a partir de análises pós-estruturalistas e dos Estudos Culturais, nos currículos educacionais é o vínculo entre conhecimento, identidade e poder de forma que os temas da “raça” e da etnia ganham seu lugar no território da educação (SILVA, 2013).

Para o autor, outra ferramenta teórica que se ancora nas teorias pós-críticas são as ideias pós-modernas, que retratam o quanto vivemos uma nova cena histórica e indicam de que forma essa realidade traz incomuns implicações no campo educacional. Basicamente, tais concepções criticam conceitos e discursos da modernidade, como razão, ciência e progresso. As consequências desse movimento para o currículo estão na desconfiança que ele gera em relação a uma pedagogia e a uma organização curricular fundamentadas no pensamento moderno, que se caracterize pelos conceitos de saber totalizante, razão iluminista, progresso cumulativo, axiomas inquestionáveis e de sujeito racional, livre e autônomo.

Já com relação ao pós-estruturalismo, Silva (2013) afirma que essa corrente enfatiza os jogos de linguagem e a realidade como um “texto”. De acordo com a teoria, a fixidez dos significados se torna fluida, indeterminada. Daí, por exemplo, a radicalização pós-estrutural da noção de diferença, que amplia o conceito de desigualdade, típico da modernidade. Segundo o autor, o pós-estruturalismo desconsidera o sujeito racional, autônomo e centrado da modernidade como uma ficção, para ele, “não existe sujeito a não ser como simples e puro resultado de um processo cultural e social”. Um currículo, para essa teoria, questionaria os significados transcendentais ligados à religião, à política, à pátria, à ciência etc., convicções que povoam muitos currículos existentes, em suas condições sociais.

A teoria pós-colonialista, por sua vez, objetiva refletir sobre as relações de poder advindas da herança colonial, tais como o imperialismo econômico e cultural. Nesse sentido, tal concepção reivindica um currículo que inclua as diferentes culturas, não de

forma simples e informativa, mas refletindo sobre aspectos culturais e experiências de povos e grupos marginalizados (SILVA, 2013).

Por fim, os Estudos Culturais constituem um campo de investigação cujo impulso inicial foi estudar a cultura por meio de grandes obras literárias, tidas como burguesas e elitistas. Para essa teoria, a mídia também apresentava seu papel na formação de consenso e conformismo político, concentrando-se na análise da indústria cultural. Silva (2013) ressalta que esses estudos, assim como o pós-modernismo e o pós- estruturalismo, devem influenciar de forma significativa o processo de elaboração curricular atualmente. Isso deve acontecer, também, na Educação Física: Neira e Nunes (2006; 2009) mostram que, dentro do contexto atual, tais estudos apresentam conceitos relevantes à visão crítica e pós-crítica do currículo, especialmente por entenderem a cultura como campo de disputa simbólica pela afirmação de significados.

A ideia do termo “pós”, segundo Homi Bhabha (2013), não pode mais ser entendida como simplesmente uma ruptura ou um vínculo com o passado e o futuro, não mais uma presença sincrônica ou nossa autopresença mais imediata, não mais como nossa imagem pública, o “pós” deve ser entendido pelas suas descontinuidades, suas desigualdades, suas minorias. Diferente da história que conta o tempo sequencial, buscando estabelecer conexões seriais, causais de um tempo cronológico e imutável.

Nesse sentido, a ideia dos “pós” não está apoiada nas concepções de ir além, no sentido de distância espacial, marca de progresso, ou prometer o futuro. Se esse jargão tem um significado, esse não indica uma sequencialidade. De outro modo, o significado mais amplo do termo “pós” reside na consciência de que os “limites” epistemológicos daquelas ideias etnocêntricas são também fronteiras enunciativas de uma gama de outras “vozes” e histórias dissonantes, até desistentes, de mulheres, colonizados, grupos minoritários. Isso porque a demografia do novo internacionalismo é a história da migração, são as narrativas das diásporas culturais e política, dos grandes deslocamentos sociais (HOMI BHABHA, 2013).

As teorias “pós” expressam uma reflexão sobre o objeto de estudo que amplia o modo de compreendê-lo. Para Neira e Nunes (2008) a ideia das teorias “pós” significa outro tipo de ir além, significa uma distância que ultrapassa qualquer imposição de limites nos objetos de estudos, como bem afirmou Bhabha. Dessa forma, trata-se de uma posição à frente dos limites impostos pelas epistemologias dentro das ciências sociais positivistas.

As ideias “pós-críticas” reconhecem os campos das pesquisas críticos e se nutrem deles, mas, ainda assim, questionam os limites das teorias, suas imposições, suas fronteiras, pois entendem que, embora o pensamento crítico possa comunicar uma “verdade” sobre o objeto, as teorias “pós” representam uma das múltiplas “verdades”, podendo haver outras nesse mesmo objeto (NEIRA e NUNES, 2008).

As teorias pós-críticas ancoram-se nas perspectivas já anunciadas por Silva (2013), ou seja, as questões pós-estruturalistas, pós-modernas e pós-coloniais. Tais campos de pensamento, juntamente com os Estudos Culturais e o Multiculturalismo Crítico ou Intercultural são subsídios que, segundo Neira e Nunes (2006; 2008) contribuem para analisar a cultura corporal no que concerne aos temas da Educação Física referente às brincadeiras, às ginásticas, aos esportes, às danças e às lutas inseridas na sociedade mais ampla.

É por esse caminho que edifico a hipótese. Em primeiro lugar, indago: em que medida, em aspectos qualitativos, a promulgação das referidas leis 10.639/03 e 11.645/08, aliada ao parecer 03/04, que se refere às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, e ao documento Orientações Curriculares: Expectativas de Aprendizagem para a Educação Étnico-Racial na Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio, publicado pelo Município de São Paulo, juntamente, ainda, com

as chamadas realizadas em Diário Oficial para a formação de professores, impactaram nas práticas pedagógicas dos professores de Educação Física?

Sendo assim, a hipótese é de que os documentos, bem como as formações organizadas pela DRE-CL, publicadas em Diário Oficial, ainda são insuficientes para pensar uma prática pedagógica em relação à Educação Física escolar que alcance seus principais objetivos em sua concepção cultural sobre o tema étnico-racial. Em outra seção será discutida as concepções teóricas “pós” dentro da Educação Física.