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O artigo 181 do Código Penal Brasileiro disciplina as imunidades materiais, positivando suas hipóteses de aplicação. Assim, a legislação penal é objetiva em prever as duas possibilidades em que se operam as escusas absolutas. Todavia, muitas discussões sobre diversas peculiaridades de sua incidência são travadas, o que será esmiuçado nesta seção.

É importante ressaltar que, conforme destaca Masson (2014), as hipóteses previstas no artigo 181 do Código Penal, no que tange as escusas absolutórias, são enumerações taxativas. Possível concluir, portanto, que estas imunidades se aplicam tão somente em relação aos crimes contra o patrimônio, inaplicáveis a crimes de outra natureza, mesmo que conexos aos delitos patrimoniais.

A primeira hipótese que beneficia o agente com a imunidade absoluta, prevista no artigo 181, inciso I do CP, diz respeito ao crime patrimonial cometido em desfavor do cônjuge, na constância da sociedade conjugal/casamento. Aponta Capez (2019) a necessidade de dois requisitos para a aplicação deste dispositivo: que o autor esteja casado com a vítima e que a prática da conduta delituosa ocorra na constância da sociedade conjugal.

Acerca do que significa juridicamente a expressão constância do casamento, destacam-se as seguintes anunciações:

Podemos entender como constância da sociedade conjugal o período que vai da realização do casamento até a sua efetiva dissolução, não importando, para efeito de aplicação da escusa absolutória em estudo, se o casal estava separado de fato no momento em que ocorreu o delito patrimonial. Portanto, para efeito de reconhecimento de aplicação da imunidade penal de caráter absoluto deverá ser levado em consideração o tempo do crime. Assim, se quando da prática da infração penal patrimonial havia ainda o vínculo conjugal, aplica-se a escusa absolutória, não importando se os cônjuges coabitavam ou não, haja vista a inexistência de qualquer ressalva legal nesse sentido. (GRECO, 2017, p. 1055)

Conforme ponderam Mirabete e Fabbrini (2014), a isenção de pena nos crimes patrimoniais sem emprego de violência ou grave ameaça praticado em desfavor do cônjuge ocorre independentemente do regime de bens. Todavia, deve ser observada a vigência do casamento no tempo do crime, e não ao tempo da instauração do processo ou da sentença.

Em complemento, ainda, Bitencourt (2012) aponta que a vigência do casamento deve ser auferida no tempo do crime e não ao tempo da instauração da ação penal ou do julgamento, seja ele em primeiro ou em segundo grau. Outrossim, a isenção de que trata o artigo 181 do Código Penal se aplica ao casamento celebrado não apenas no Brasil, como também, no estrangeiro. No entanto, inaplicável no que diz respeito ao mero casamento religioso, pois se exige casamento civil. A comprovação do vínculo matrimonial se faz mediante certidão, nos termos do artigo 155, parágrafo único do Código de Processo Penal. (MASSON, 2014, p. 1367)

Destarte, a prova do parentesco não incide por mera alegação entre autor e vítima do crime patrimonial. Necessita, assim, a comprovação da situação por meio de documento hábil, em cumprimento ao que disciplina o artigo 155, parágrafo único do Código de Processo Penal. (MASSON, 2014, p. 1369)

Quanto à aplicação do instituto em análise com relação à união estável, Prado (2014) aduz que, com o advento da Constituição Republicana de 1988, conforme estampa o art. 226, §3 º, a união estável passou a ser considerada espécie de entidade familiar. Atualmente, da mesma forma que o casamento, a união estável é forma de constituição de família, garantida na Carta Magna. Salienta-se, todavia, que deve ser estabelecida conformidade entre o dispositivo constitucional supramencionado e o que diz o artigo 1.726 do Código Civil, isto é, a união estável não deve ter nenhum impedimento para ser convertida em casamento.

Nucci (2019), ao seu turno, entendia como indevida a ampliação que estendia as escusas absolutas com relação à união estável. Todavia, alterou sua posição, defendendo a extensão nesse sentido, uma vez que a Constituição Cidadã explicitamente diz ser a união estável diversa do casamento, mas ainda assim diz que ambas formam uma família. Aponta também que o Estado, pela via constitucional, reconhece a existência de uma família na união estável com o fito de lhe conferir proteção, devendo ser ela estendida ao direito penal.

O STJ reconhece também a união estável homoafetiva, assim privilegiando o mais importante, que é a família. Deste modo, privilegiar a família é muito mais significativo do que o título assumido pelo casal. Por fim, deve ser levada em consideração, também, a finalidade do legislador ao disciplinar a imunidade, que é a proteção da unidade familiar, independentemente de qual seja ela, transportando

qualquer litígio decorrente de delitos contra o patrimônio – desde que cometido sem violência ou grave ameaça – para a esfera civil. (NUCCI, 2019, p. 746)

Na mesma esteira, Cunha (2016) entende por se aplicar a escusa absolutória com relação à união estável, por conta da proteção do Estado que é conferida por meio do disposto no artigo 223, §3°, da CRFB, bem como do reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar. O STF, ao julgar a ADI 4277 e o ADPF 132, reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo, o que, segundo o autor, deixa claro que a decisão repercute no âmbito penal, mais especificamente no que diz respeito às imunidades materiais. Admite-se, assim, a aplicação do art. 181, I do CP nas relações homoafetivas.

Quando diante de lei penal benéfica e, precipuamente, quando nos deparamos com situações idênticas e que não tiveram o mesmo tratamento da lei penal, é imperiosa a aplicação da analogia, com o fim de preservar a isonomia, a qual se traduz pelo brocardo ubi eadem ratio, ubi legis dispositio. A lei penal se preocupa com a preservação familiar, de forma que afasta a aplicação da pena daquele que praticou infração patrimonial em desfavor de alguém muito próximo, não justificando a inaplicação em uma situação reconhecida legalmente como entidade familiar, conforme dispõe o artigo 1.723 do Código Civil. (GRECO, 2017, p. 1056)

Prado (2014) assevera que a extensão de aplicação das escusas absolutórias em relação à união estável é admitida apenas quando legalmente formalizada, ou seja, por meio de contrato de convivência, devidamente registrado, bem como judicialmente, por meio de ação declaratória. Quando não inserido nessas hipóteses, a extensão é impossibilitada, posto que o dispositivo especifica a formalidade em se tratando de cônjuge. Tem-se, assim, uma interpretação extensiva in bonam partem.

Com relação ao concubinato, relação estável entre homem e mulher impedidos de casar, Capez (2019) diz se aplicar a escusa absolutória em um único caso, justamente na hipótese em que o concubino se equipara a união estável, ou seja, quando as pessoas casadas não podem casar-se. Constitui este um impedimento que gera a nulidade absoluta do casamento, conforme dispõe o artigo 1.521, VI do Código Civil. Todavia, quando um dos companheiros estiver separado, de fato, ou judicialmente, em que pese persistir o impedimento, a relação constitui união estável, por força do que disciplina a parte final do § 1º do artigo 1.723 do CC, se operando a benesse em comento.

Quando se trata de crime cometido contra bens do espólio do cônjuge falecido, cuja herança concorrem, também, outros herdeiros – não especificados pelos artigos 181 e 182 do Código Penal – a punibilidade é plena e livre de condição, uma vez que a morte do de cujus dissolve a sociedade conjugal. (MASSON, 2014, p. 1368)

Nas palavras de Capez (2019), o casamento só pode ser dissolvido pela morte de um dos cônjuges, ou pelo divórcio, conforme disciplina o artigo 1.571, §1º, do Código Civil. Todavia, não somente as causas extintivas do casamento extinguem a sociedade conjugal – morte e divórcio – mas também a nulidade ou anulação e a separação judicial assim o faz, conforme expressa o artigo 1.571, II e III do mesmo diploma legal. Dessa forma, aquele que se encontra separado judicialmente, embora continue casado, tendo em vista que o vínculo legal ainda não cessou, não se encontra mais na constância da sociedade conjugal, sem direito, portanto, a imunidade prevista no artigo 181, I, do Código Penal.

Acerca dos crimes que admitem a incidência da imunidade penal absoluta, enumera Nucci:

São os seguintes: furto (art. 155), furto de coisa comum (art. 156), alteração de limites, usurpação de águas e esbulho possessório (art. 161), supressão ou alteração de marca em animais (art. 162), dano (art. 163), introdução ou abandono de animais em propriedade alheia (art. 164), apropriação indébita (art. 168), apropriação por erro, caso fortuito ou força da natureza, apropriação de tesouro, apropriação de coisa achada (art. 169), estelionato, disposição de coisa alheia como própria, defraudação de penhor, fraude na entrega da coisa, fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro, fraude no pagamento por meio de cheque (art. 171), duplicata simulada (art. 172), abuso de incapazes (art. 173), induzimento à especulação (art. 174), fraude no comércio (art. 175), fraude em restaurante, hotel ou meio de transporte (art. 176), fraude e abuso na fundação ou administração de sociedade por ações (art. 177), emissão irregular de conhecimento de depósito ou warrant (art. 178), fraude à execução (art. 179), receptação (art. 180). Excluem-se, desde logo, os delitos de dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico (art. 165) e alteração de local especialmente protegido (art. 166), porque o sujeito passivo primordial é o Estado. Os demais crimes somente podem ser atingidos pela imunidade penal caso os sujeitos passivos sejam exclusivamente as pessoas enumeradas, taxativamente, no art. 181, sem qualquer possibilidade de ampliação. (NUCCI, 2019, p. 743)

Dessa forma, restam enumerados os crimes patrimoniais, livres de violência ou grave ameaça à pessoa, os quais preenchendo os requisitos legais, pode se beneficiar o agente com a imunidade material. Assim, constatando a autoridade policial a incidência da escusa absoluta, desde a prática do fato, não se admite o

indiciamento do agente do crime/beneficiário da imunidade. Entretanto, instaura-se o inquérito para elucidar melhor os acontecimentos e constatar o referido benefício. Quanto a ação penal, é vedada sua propositura. (NUCCI, 2019, p. 743)

Nas palavras de Prado (2014), quando presente a imunidade, não pode ser desencadeada a ação penal, isto pelo fato de não se poder impor ao agente a

sanctio juris. Ademais, quando diante de concurso de pessoas, o inquérito policial

não tem prejudicada a sua instauração, e, ainda, a ação penal resta oferecida em desfavor do coautor ou partícipe não abarcado pela escusa, por força do artigo 183, II do Código Penal.

Quando diante de um crime patrimonial – sem emprego de violência ou grave ameaça – praticado de um cônjuge em desfavor de outro, na constância da sociedade conjugal, com o casamento posteriormente declarado nulo, três situações podem ocorrer: caso o casamento tenha sido contraído de má-fé por ambos os cônjuges, a imunidade absoluta não é reconhecida. Todavia, do contrário, contraindo ambos os cônjuges de boa-fé o casamento, é cabível a escusa. Por fim, se apenas um dos cônjuges tiver contraído o casamento de boa-fé, é admitida restritamente a ele sua incidência. (MASSON, 2014, p. 1368)

Nesta esteira, ainda:

Depende do caso concreto. Resolve bem a questão BASILEU GARCIA: “A imunidade absoluta não ocorre se se trata de casamento nulo, não contraído de boa-fé por nenhum dos cônjuges; é aceitável a imunidade absoluta se ambos os cônjuges o tiverem contraído de boa-fé; e será admitida, ainda, se um dos cônjuges o tiver contraído de boa-fé, mas agora restrita a este a imunidade” (BASILEU GARCIA apud NUCCI, 2019, p. 747)

Assim, percebe-se que tudo depende da boa-fé dos cônjuges para concluir por aplicar ou não a imunidade penal. A boa-fé no caso concreto que deslinda a situação da aplicabilidade da benesse em posterior anulação do casamento. Em relação ao noivado, não há imunidade se o fato é praticado no seu decorrer, independentemente de virem os noivos a se casar. O matrimonio não possui efeito retroativo no sentido de extinguir a punibilidade. (DE JESUS, 2020, p. 638)

A segunda hipótese de incidência da escusa de natureza absoluta, consoante do artigo 181, II do Código Penal, diz respeito ao crime praticado em prejuízo de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural.

Masson (2014) aduz que esse dispositivo diz respeito ao parentesco em linha reta, isto é, entre ascendentes e descendentes, independente do grau. Engloba, dessa forma, os crimes patrimoniais cometidos pelo pai em desfavor do filho, do neto contra avô e assim sucessivamente. A cautela que o legislador tomou na parte final deste dispositivo é dispensável atualmente, em decorrência do disposto no artigo 227, § 6º, da Carta Magna.

Este artigo cuida apenas, portanto, dos ascendentes e descendentes em linha reta: pais, mães, avós, filhos, netos, bisnetos, etc. Não se incluem assim os parentes por afinidade e na linha transversal (sogro, genro, nora, cunhado, padrasto, madrasta, enteado, tio, sobrinho, primo, etc. (NUCCI, 2019, p. 747)

Sustenta Bitencourt (2012) que para que a imunidade seja admitida, quando diante dos parentes em linha reta, não há grau de limitação. Ademais, conforme prevê o Código Penal, é admitida a relação de parentesco civil ou natural, já se incluindo a filiação adulterina ou incestuosa. A Constituição Republicana, conforme se extrai do § 6º do artigo 227, reforçou essa orientação, vedando qualquer discriminação relativa a filiação. (BITENCOURT, 2012, p. 952)

Por conta do critério restritivo do qual se utilizou a norma, a escusa não se aplica em relação a parentes afins, isto é, não se aplica aos parentes de um cônjuge em relação ao outro, como é o caso de nora, genro, etc. (PRADO, 2014, p. 1006)

Acerca do tema, colhe-se um exemplo prático:

Finalmente, vale trazer uma hipótese: um pai que subtrai coisa comum de sua filha e do seu genro, casados em regime de comunhão de bens. Com relação ao genro, não existe parentesco civil, nem natural, mas mera aproximação por afinidade. A res furtiva é comum à sua filha e ao seu afim. Teria o sujeito direito à escusa absolutória? Não. Como o dispositivo tem interpretação restritiva, em face do disposto no art. 183, II, do Código Penal, não haverá incidência da causa de isenção de pena. Como ensinava Nélson Hungria: “Também inexistirá a imunidade se a coisa, por qualquer título, é comum a qualquer das pessoas mencionadas no texto legal e estranhos. É necessário, para efeito da isenção, que a coisa pertença exclusivamente ao cônjuge ou parente” (CAPEZ, 2019, p. 827)

Percebe-se, assim, a restrição da aplicabilidade das imunidades materiais apenas em relação aos parentes elencados no artigo 181, incisos I e II do Código Penal, vedada a sua extensão aos que não estão ali positivados expressamente. Na hipótese de filho, ainda não civilmente reconhecido, Masson (2014) diz que não será admissível no juízo penal a investigação de paternidade. Todavia, quando o juiz

criminal reputar séria e fundada a defesa do réu, deve suspender o processo, até que o juízo cível decida a questão da filiação. A suspensão do processo, todavia, não causa prejuízo à inquirição das testemunhas arroladas pelas partes e de outras provas de natureza urgente, conforme dispõe o artigo 92, caput, do Código de Processo Penal.

É importante traçar algumas observações comuns aos incisos I e II do artigo 181 do Código Penal. Primeiro, se a coisa na qual recai o crime está somente na posse – seja ela a título justo ou injusto – do cônjuge ou parente, não cabe a isenção da pena. Além disso, se o cônjuge ou parente de quem se encontrava a posse a tivesse conseguido por meio de crime, a escusa absolutória também não se operaria, tendo em vista que o bem a ele não pertencia. Por fim, não se reconhece a imunidade material quando a coisa na qual recai o crime patrimonial pertence a estranhos e não exclusivamente a quem mencionam os incisos I e II do artigo 181 do Código Penal. (MASSON, 2014, p. 1370)

Outrossim, quando o agente erra quanto à propriedade do objeto material do crime, ou seja, quando o agente acredita que o veículo furtado é do pai, por exemplo, mas na verdade a propriedade é de um estranho, de igual forma a escusa absolutória não é aplicada. O erro do agente, neste caso, não é quanto a ilicitude do fato, mas sim, com relação ao seu sancionamento, isto é, quanto as consequências do fato. (NUCCI, 2019, p. 744)

Nas palavras de Masson (2014), as escusas absolutórias só têm aplicação quando o crime patrimonial prejudica tão somente as pessoas consignadas no artigo 181, incisos I e II do CP (cônjuge, ascendente ou descendente). Quando o agente erra a titularidade do bem objeto material do delito, as imunidades não incidem, posto o crime permanece íntegro e o agente é culpável. O que acontece, neste caso, é um erro de punibilidade, pois o agente acreditava que não seria penalmente punido, desaparecendo assim os fundamentos dessa benesse, que é justamente a proteção do vinculo matrimonial ou da relação de parentesco entre autor e vítima do crime, que inexiste neste caso.

É possível que quando o agente de um crime patrimonial pratica o delito em desfavor de cônjuge, ascendente ou descendente, levando-se em consideração todas as observações expostas nesta seção, será isento de pena. Em que pese, portanto, o crime subsista (tipicidade, ilicitude/antijuridicidade e culpabilidade), nas hipóteses trazidas pelo artigo 181, resta o agente isento de pena.