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Capítulo 4: o Literateias

4.3 Os hiperlinks

4.3.4 Hiperlinks Estruturais

De maneira similar aos hiperlinks sintáticos, percebemos, nas leituras repetidas da obra, certos movimentos estruturais associativos. Os fragmentos podem tratar de conteúdos distintos, mas respondem a semelhanças em relação à forma. Identificados pela cor azul, os hiperlinks estruturais estão em menor número na versão demo, pois propomos apenas duas teias.

A primeira delas, que chamaremos de “Inícios Intervalares”, agrupa quatro textos que comungam na maneira que começam, sempre enfatizando a interrupção do processo de escrita por um intervalo grande de tempo, geralmente meses, e que finda subitamente, como se a consciência reflexiva voltasse sem motivo aparente, quando o narrador julga necessário registrar suas impressões. Em “O Retorno à Consciência”, por exemplo, Soares começa:

Há muito - não sei se há dias, se há meses - não registo impressão nenhuma; não penso, portanto não existo. Estou esquecido de quem sou; não sei escrever porque não sei ser. Por um adormecimento oblíquo, tenho sido outro. Saber que me não lembro é despertar (PESSOA, 2006a, p. 351). O leitor que clicar neste hiperlink terá em sua tela intermediária a descrição “Observe aqui como o narrador mantém estrutura semelhante nestes textos: o início é similar, afirmando que deixou de escrever por um tempo – e o motivo é porque deixou de sentir” seguido de outros três textos, intitulados como “Um Despertar da Consciência”, “A Mosca Varejeira” e “Ficção de Mim”, nos quais observamos uma estrutura inicial parecida, respectivamente: “Há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não repousa: no apodrecimento há fermentação” (PESSOA, 2006a, p. 157); “Passaram meses sobre o último que escrevi. Tenho estado num sono do entendimento pelo qual tenho sido outro na vida. Uma sensação de felicidade translata tem-me sido frequente. Não tenho existido, tenho sido outro, tenho vivido sem pensar” (PESSOA, 2006a, p. 317); e “Há quanto tempo

não escrevo! Passei, em dias, séculos de renúncia incerta. Estagnei, como um lago deserto, entre paisagens que não há” (PESSOA, 2006a, p. 413).

Quando justapostos e lidos em sequência, evidenciam sentidos que talvez fiquem obscuros na leitura do livro impresso. Estas estruturas não somente são equivalentes, mas tanto os motivos que levam o narrador a deixar de escrever quanto as razões pelas quais volta à escrita são idênticos. Em todos os textos, o período sintático seguinte explica por que ocorreu o intervalo, sendo sempre um motivo correspondente, trazido por vocábulos distintos: o narrador passara por uma inércia, um “sono”, sem pensamento e sem sentimento. O leitor que explora a teia até o fim provavelmente conclui, ao comparar os fragmentos, que a escrita ocorre sempre a partir de pensamentos abstratos que surgem ao narrador durante seu dia. Quando Soares vive imerso em sua rotina, sem pensar e sem sentir, não há o que dizer. Defendemos, portanto, que o usuário constrói novas impressões na recepção da obra quando a lê de forma hipertextual, pois certos sentidos dispersos na leitura impressa ganham força quando lidos sequencialmente.

A outra teia estrutural foi construída a partir da percepção de certos finais abruptos ocorridos em fragmentos da obra. Geralmente estes finais acontecem quando a carga reflexiva do ato de escrita é muito grande, causando uma fadiga repentina, como se pensar doesse, pesasse fisicamente no narrador. A impressão que fica é a de um texto que seria maior, mas que foi interrompido subitamente. Nestes casos, Soares revela seu cansaço, geralmente acompanhado da vontade de dormir – e sonhar. Em outros momentos, no entanto, a reflexão é resumida por um despertar, causado por alguma sensação inesperada ou pelo contato com a natureza. A descrição da tela intermediária busca explicar assim: “Nesta reunião de textos, está presente a estrutura final de interrupção, uma súbita ruptura com a reflexão feita anteriormente. Em alguns trechos, há a manifestação do cansaço e do sono, motivos para encurtar um texto que deveria ser mais longo.”

Em “Defesa da Literatura”, por exemplo, o último parágrafo afirma:

Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito (PESSOA, 2006a, p. 60).

O hiperlink dá acesso aos dez textos que compõem esta teia. Em “Paisagem Impossível”, o leitor encontra uma súbita interrupção causada pelo vento: “E, de

repente, sinto aqui o frio de ali. Toca-me no corpo, vindo dos ossos. Respiro alto e desperto” (PESSOA, 2006a, p. 82); em “Termos Morais”, é a hora do dia que provoca a suspensão:

Quase me culpo de estar escrevendo estas meias reflexões nesta hora em que dos confins da tarde sobe, colorindo-se, uma brisa ligeira. Colorindo-se não, que não é ela que se colora, mas o ar em que bóia incerta; mas como me parece que é ela mesma que se colora, é isso que digo, pois hei-de por força dizer o que me parece, visto que sou eu (PESSOA, 2006a, p. 178). Estes trechos, portanto, não apresentam relações semânticas, sintáticas ou temáticas, mas, quando lidos conjuntamente, revelam um estilo de escrita de Soares ao usuário, que percebe as interrupções abruptas ao final de cada texto. Os hiperlinks estruturais da versão demo se encontram em um estágio mais evidente, já que levamos ao site apenas os textos que se relacionam no início ou no final. O desafio doravante é encontrar uma regularidade no estilo dispersivo do semi-heterônimo, principalmente no núcleo dos fragmentos, como se nota, por exemplo, na construção de períodos incompletos e na enumeração de verbos no infinitivo em diversas passagens.