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Capítulo 1: O Hipertexto

1.4 Um texto com muitos autores

Essa dinâmica hipertextual, que se configura de forma extremamente veloz, fragmentária, rizomática, multissemiótica e virtualmente eterna, demanda um olhar cuidadoso para as noções de leitor e autor, como já vem sendo feito. Entretanto, queremos trazer aqui uma nova abordagem a este respeito.

Muito já se publicou a respeito da coautoria do leitor nos textos hipertextuais6, que é convidado a interferir no centro do texto, construindo-o de acordo com a sua subjetividade. Em tese, se é o leitor quem escolhe por onde tecer a rede, se é ele quem ordena as peças soltas do quebra-cabeça, seria de sua responsabilidade, portanto, a versão final do texto, aproximando-se do estatuto de autor. Existe, porém, uma “versão final” em um texto performático? Acreditamos que não, pois “versão final” pressupõe algo acabado e que pode ser retomado, enquanto o hipertexto está permanentemente em construção. Mais do que “versão final”, a web nos dá todos os dias inúmeras “versões únicas”. Embora seja responsável pelo acabamento delas, o esforço empreendido nos cliques do mouse não parece ser muito diferente ao de folhear uma página impressa – esforço leitor, afinal, de dar sentido à obra.

1.4.1 Percurso histórico: Barthes, Foucault e Chartier

Saber com que nome assinar os hipertextos talvez seja uma discussão um tanto ultrapassada quando temos decretada, em 1968 – à época, portanto, da conceitualização de “hipertexto” por Ted Nelson –, a morte do autor, por Roland Barthes. Barthes (1984) – na esteira da fragmentação de um sujeito moderno que também não mais exerce o domínio sobre si mesmo – mostrou que o autor, como era conhecido até o século XIX, detentor de uma verdade única e, digamos, maciça,

estava morto com as novas teorias estruturalistas e textuais. A partir dessa concepção, o “scriptor” nasce junto ao texto, e o primeiro não tem domínio sobre o segundo. Não há mais possibilidade da discussão acerca do que o autor quis dizer, pois o que emerge, para além disso, é o que o texto diz. Só o que resta é a porosidade (hiper)textual para um leitor que precisa, a partir de então, responder sempre ao texto. No ano seguinte, em 1969 – a partir da ideia de Barthes e com o estruturalismo em evidência –, Michel Foucault (1992) buscou, além de definir o que é um autor, corroborar o seu sepultamento, e atrair a atenção para a noção da função autor. Antes disso, o filósofo construiu um panorama histórico, ressaltando que primeiramente a arte e a literatura tinham um papel coletivo e que a noção de autor constitui o momento de individualização das ideias, que passaram a ter certa propriedade. Além disso, Foucault aborda que originalmente os discursos científicos e matemáticos só eram tidos como verdades na medida que possuíam uma autoridade criativa; por outro lado, o campo literário não pressupunha essa regra, e valorizava textos anônimos e sociais. Com o tempo, no entanto, tal lógica se inverteu: enquanto a literatura necessitava de um autor, os campos científicos, a partir da consolidação de um número limitado de fórmulas e teoremas, não valorizavam os pensadores “originais”. Foucault também alerta para o fato de que a autoria só foi valorizada quando foi passível de ser punida – o conceito de autor nasce, portanto, quando é preciso identificar o transgressor. O filósofo critica o estruturalismo, que, segundo ele, estabeleceu a escrita como referência a si própria, um conjunto de signos ordenados que “matam” o autor. Para Foucault, a escrita, ainda que dialogue com a sua interioridade, também estabelece comunicações com uma exterioridade anterior, portanto, com um sujeito anterior. Por fim, o filósofo afirma que o nome do autor estabelece relações discursivas diferentes dos nomes próprios comuns, pois, enquanto os últimos podem estar presente em quaisquer textos, o primeiro assegura uma função classificativa e permite reagrupar um certo número de textos – ou seja, estabelecer uma obra ao redor do nome de um autor possibilita, ao entrar em contato com esses livros, criar expectativas prévias, saber de antemão o que pode vir às nossas mãos. Nesse sentido, uma quantidade de textos sociais são desprovidos do que ele chama função autor, uma característica da circulação de apenas alguns discursos.

Chartier (1998) também desenvolve o nascimento do autor, mostrando que, junto a ele, surgem as ideias de propriedade intelectual e de falsificação, que aparece logo em seguida: já no século XVIII, algumas regiões do norte da Europa buscavam

editar obras proibidas na França e vender em território francês ilegalmente, além de espectadores de teatro, que assistiam repetidas vezes a uma peça a fim de memorizá- la para uma publicação inédita, antes mesmo que a companhia de teatro tivesse feito. Assim, como uma iniciativa de proteção dos próprios editores, que, com isso, se veem ameaçados, são elaborados os direitos autorais. Ou seja, sequer a pirataria – que parece assombrar a internet atual, não só nas questões textuais, mas também no mercado fonográfico e cinematográfico – é de agora, propiciada pelas novas tecnologias; pelo contrário, também já era um dilema dos meios impressos.

1.4.2 A ausência de assinatura

Por todos esses motivos, parece-nos que explorar as questões de autoria no hipertexto como se ressignificassem a autoridade autoral é voltar ao século passado e dizer o que já está dito – mudar o ponto de vista e não o cerne da questão. Propriamente, o prefixo “co-” em coautor oferece uma ideia equivocada do movimento de leitura hipertextual, como se leitor e autor estivessem juntos na produção do texto, o primeiro auxiliando o segundo, que continuaria mais importante. E não é o que ocorre. Acreditamos, portanto, que a inovação da estrutura hipertextual não está na coautoria do leitor, mas na ausência de assinatura. Não só perdemos o “author”, mas também o “writer” deixa de existir enquanto figura no singular, passível de ser identificada. Dessa forma, minuto após minuto nos cinco continentes, leitores e leitoras operam na construção de uma teia planetária, escrevendo textos e publicando imagens não para assinarem enquanto suas propriedades, mas para colaborarem com o work in progress próprio do hipertexto, para a roda continuar girando. Pierre Lévy (1994) enfatiza esse aspecto quando classifica os dispositivos de comunicação a partir de diferenças nas relações entre enunciador e interlocutor; há, segundo o pensador, três casos: “Um e Um”; “Um e Todos”; “Todos e Todos”, sendo este último o ciberespaço7, onde todos produzem e todos recebem informações simultaneamente. Bordini (2016), por sua vez, assemelha o movimento colaborativo ao capital, afirmando que, assim como milhares de produtos são postos no mercado

7 A respeito dos outros dois tipos, um bom exemplo para dispositivos Um e Um seria qualquer conversa

cotidiana em que há a alternância rápida de posição entre enunciador e interlocutor; de Um e Todos, Lévy entende os grandes veículos da mídia, mas nesse tipo também se encontram palestras, aulas e publicação de livros, por exemplo.

diariamente em busca do consumo, assim também são os textos lançados na rede, movimentando o estatuto literário.

Como contraponto à ausência de assinatura, os sites jornalísticos, por exemplo, muitas vezes possuem artigos e matérias assinadas, mas raramente trazem os autores como evidência. Geralmente, tais textos são publicados concomitantemente nas versões impressas, e funcionam pouco no suporte digital, por serem muito longos. Além disso, nos jornais online, pela exigência da velocidade, estes artigos são rapidamente substituídos. Já uma rede social, por exemplo, gênero discursivo propriamente hipertextual, caso comece paulatinamente a perder acesso, consequentemente perde o interesse dos usuários, que deixam de publicar e escrever, e a rede sucumbe rapidamente. Portanto, não interessa mais que o leitor entenda tal publicação como sendo de alguém, interessa que ele a veja antes de sumir – e comente, compartilhe, curta, interaja, enfim. Os blogs, que também funcionam na contramão, pois são estruturados a partir da individualização de um sujeito, parecem ser exceção, contudo, seguem regra similar: quando o autor escreve um texto, dificilmente é apenas para a leitura e contemplação – como um acordo implícito, “joga” um texto na rede não para chamar de seu, mas para que os leitores usem-no e apropriem-se dele, com compartilhamentos e colagens, em uma antropofagia discursiva autorizada. Quando tais autores querem se apropriar de suas escritas digitais, o movimento natural é a reunião de tais textos em um suporte impresso e a consequente publicação em livro físico.

Portanto, mesmo nos hipertextos que Michael Joyce chama de “exploratórios”, pois mantêm a autoria original, há um pressuposto colaborativo. A internet, nesses termos, não só armazena informações, mas naturalmente cria uma espécie de “comunidade” com limites mundiais, que funciona intermitentemente e que tem no intercâmbio de informações o bem comum. A respeito disso, Araújo (2003, p. 39) aproxima a noção de comunidade discursiva, formulada por Swales – “gêneros do discurso como estabilizadores e organizadores da comunicação humana” – com a de comunidade virtual, de Lévy, que destaca a desnecessidade de proximidade física ou geográfica para a construção desses grupos, além da escrita e da leitura coletivas a partir da formulação e dos cliques de hiperlinks. Essas comunidades virtuais formam a cibercultura e, consequentemente, novos gêneros discursivos.

Aproximando-os já aqui para não perder de vista, muito antes da internet, nos anos 1930, Fernando Pessoa parece concentrar uma comunidade em si mesmo,

pulverizando centenas de assinaturas em seus escritos, com a criação de personalidades literárias distintas. E tal como o hipertexto, no Livro do Desassossego a questão de autoria é amplamente debatida, e alguns editores colocam-no como um livro de quatro autores, reforçando, com isso, sua lógica pós-moderna.