• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2: Fernando Pessoa e o Livro do Desassossego

2.5 Um livro virtual

No capítulo anterior, vimos que Pierre Lévy aproxima o conceito de virtual com aquilo que só existe enquanto potência. O Livro do Desassossego, portanto, é um livro virtual, já que suas realizações são projeções de uma ideia irrealizável da forma tradicional, mas potencialmente existente nas folhas soltas encontradas na arca de Fernando Pessoa. Zenith, no prefácio de sua edição, afirma que o Livro “nunca poderá existir” (2006, p. 8) e que “Pessoa trabalhou nesta obra durante o resto da vida, mas quanto mais a ‘preparava’, mais inacabada ficava. Inacabada e inacabável” (2006, p.

9), o que fica constatado em certo fragmento que Soares expõe sua inveja daqueles “que escrevem romances, que os começam, e os fazem, e os acabam” (2006, p. 285).

Muito possivelmente, na primeira fase de produção do livro, nos anos 1910, Pessoa pretendia ser autor de uma romance em prosa, ideia que permaneceu mesmo quando incluiu no espólio os textos de Guedes. Quando voltou ao livro, vinte anos depois, já pela voz de Soares, esse horizonte se perde, e o Desassossego ganha tons de um livro conscientemente impublicável. Pessoa adentra em uma estrutura movediça e parece entender que a forma livresca – único suporte conhecido até então – limitava o ideal de seu Livro, necessariamente dispersivo e descentrado, assumindo a ideia de que centenas de folhas soltas na arca seria mais interessante, algo a ser valorizado enquanto realização. Parece-nos seguro afirmar que o poeta assume a não-conclusão do projeto. Entretanto, unificar as folhas em um livro permaneceu enquanto ideal utópico, que se transformou no principal motor de criação. Dito de outra forma, o formato livresco, ao mesmo tempo que escapava cada vez mais de Pessoa, permitia-lhe que continuasse criando, embora soubesse que nada seria publicado. Dessa maneira, afundando-se cada vez mais na estrutura movediça que o texto ganha, deixou o problema para a posteridade, explícito em uma nota não-datada de orientação para os editores do Desassossego:

A organização do livro deve basear-se numa escolha, rígida quanto possível, dos trechos variadamente existentes, adaptando, porém, os mais antigos, que falhem à psicologia de Bernardo Soares, tal como agora surge, a essa vera psicologia. À parte isso, há que fazer uma revisão geral do próprio estilo, sem que ele perca, na expressão íntima o devaneio e o desconexo lógico que o caracterizam. Há que estudar o caso de se se devem inserir trechos grandes, classificáveis sob títulos grandiosos (PESSOA, 2006a, p. 519) [grifos meus].

Percebe-se que o próprio Pessoa não havia resolvido algumas sínteses que o livro lhe impunha, como se o Desassossego ganhasse uma vida própria, e seu teor deslizante impossibilitasse uma equação. O poeta confere ao editor o caráter de curador do livro, cujas escolha e interferência nos trechos precisariam adaptar a psicologia e o estilo de Guedes aos de Soares. No entanto, Pessoa não abre mão do “desconexo lógico”, constitutivo da obra. Além disso, não resolve o caso dos Grandes Trechos, deixando para que o editor “estude” se devem ou não entrar no livro. Com tal nota, observa-se o desprendimento do escritor portuguêsem relação a seus textos; parece dizer que o Desassossego precisa de outros leitores, distanciados e mais

capazes de resolver algo que ele sozinho não conseguiu. Um livro que precisa de editores-curadores-autores, que alterem o texto em seu centro.

À luz do século XXI, podemos afirmar que, vanguardista, Fernando Pessoa antecipava algo que só seria efetivado na segunda metade do século XX, com os computadores: a narrativa hipertextual. Tal afirmação é possível ao aproximar as características consagradas pelas Linguística do Texto a respeito do hipertexto àquelas do livro desassossegado. Ambos são fragmentários, não-lineares, constelacionais e associativos. Além disso, há no Desassossego uma incomodativa repetição de reflexões, ditas em diferentes fragmentos de maneiras semelhantes ou idênticas. Se, em uma primeira leitura, tal aspecto poderia soar uma falha do livro, já que a narrativa tradicional pretere a repetibilidade, em um segundo momento, visto sob a ótica do hipertexto, ganha-se mais uma semelhança, já que são as repetições que permitem as consequentes associações em um texto que não se organiza de forma causal – ou seja, ao se repetir deliberadamente, Pessoa possibilita a formulação de hiperlinks. Visto que o poeta deixou originalmente os fragmentos soltos em sua arca, o leitor, como na internet, pode acessar o texto por qualquer frente, pois não há originalmente qualquer indicação numérica ou outro tipo de sequência estabelecida pelo autor.

Richard Zenith, Jerónimo Pizarro e Leyla Perrone-Moisés aquiescem para tal conjuntura: o primeiro defende que não existe uma ordem correta para a leitura do livro e que “talvez estivesse certo assim: uma edição de peças soltas, arrumáveis ao bom prazer de cada leitor” (ZENITH, 2006, p. 32); o segundo, por sua vez, afirma que “o livro tinha que ser editado da maneira que cada um entendesse” (PIZARRO, 2015); e Perrone-Moisés (2001, p. 211) defende que “podemos até sonhar com um ‘livro’ de páginas soltas, como cartas de baralho, que possam ser lidas em infinitos arranjos”. Mas por que sonhar se o discurso hipertextual vigente nas tecnologias atuais permite a realização desses livros de areia que só existiam até então enquanto virtualidade? Com exceção de Manuel Portela, que criou o Arquivo LdoD, um espaço totalmente virtual examinado no próximo capítulo, os demais editores do Livro, apesar de assumirem o caráter de work in progress, trabalharam com a forma livresca tradicional, que impõe capa e contracapa, além de sequenciar obrigatoriamente as folhas, oferecidas ao leitor com uma ordenação prévia.