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Capítulo 3: O Arquivo LdoD

3.1 Suporte teórico: transformando a obra em site

3.1.1 Os atos de escrita

Todo leitor ou pesquisador que investiga o Desassossego percebe na obra a predominância de fragmentos metalinguísticos e metaliterários, com uma reflexão aguçada dos procedimentos da linguagem. Se, para Leyla Perrone-Moisés (2001), como já afirmamos, a linguagem é o fim a ser atingido no Livro, para Manuel Portela,

o processo é um pouco diferente: a reflexão metalinguística ocorre para um maior entendimento do eu que escreve, em um processo denominado “ato de escrita”.

Assim, de forma análoga aos atos de fala de Austin e Searle – enunciados que produzem uma ação quando proferidos, mudando um estado de coisas do mundo, como a declaração que oficializa um casamento, por exemplo –, os atos de escrita do Desassossego alteram a consciência daquele que escreve o fragmento, seja Bernardo Soares, seja Vicente Guedes, ou o próprio Fernando Pessoa, formalizando-se como um processo fundamental de autoconhecimento. Esse ato é a tematização da escrita enquanto processo que está sendo realizado no presente e que, de certa forma, se embaralha com as reflexões do passado que estão sendo narradas. A “consciência da escrita” tão recorrente no livro com o verbo “escrever” e elementos como “papel”, “tinta” e “livro” é o gatilho para o autor tomar consciência de si, sendo parte de um processo de reconhecimento. Desse modo, o texto não trata apenas da matéria narrada, mas também do sujeito “escrevente” dessa matéria, que emerge durante o processo de escrever. Portela (2017a) chamará a atenção para as prenominalizações reflexas presentes no Livro – “sou-me” ou “escrevo-me”, por exemplo – enquanto síntese desse processo.

Dessa forma, a consciência de estar escrevendo torna-se um mecanismo para o narrador acessar a própria consciência, elaborado em diversas camadas. A fragmentação da obra é justificada pelos atos da escrita, já que cada ato tem um tempo limitado, pois exige uma atenção finita e um esforço corporal. Os diferentes tamanhos dos fragmentos também podem ser explicados a partir desta formulação, entendendo que é preciso um resultado final de transformação da consciência para dar cabo de um fragmento, não importando se o processo ocorre com poucas palavras ou com algumas páginas. Dessa maneira, o livro se pulveriza, transformando-se em uma coleção desses atos: “a coincidência da sensação com a consciência da sensação e de ambas com a ação de escrever encenam o próprio ato de escrita como manifestação fenomenológica da consciência”, explica Portela (2017a, p. 234). Em outra ocasião, Portela (2016) tratará dos atos de escrita como uma constante da obra pessoana, cuja dimensão heteronímica ocorre na capacidade do poeta de sustentar ciclos de autoconsciência – ou seja, não só formular uma biografia e um estilo distintos do seu, mas um reflexo consciente desses estilos próprios.

A partir dessa lógica, os atos de escrita descontínua de Bernardo Soares poderiam ser pensados como uma extensão neurológica do corpo, como se, no

processo de escrita, e somente aí, o sujeito tomasse consciência de si – e a leitura desse processo pudesse ser a consolidação dessa consciência, que parte para um novo começo. Por isso, argumenta Portela, o livro amalgama de forma tão indissociável o eu e a escrita e, por consequência, Bernardo Soares parece estar sempre começando da estaca zero. Esses fragmentos são feitos de uma vez só, em uma dimensão temporal relativamente curta; no entanto, em muitas ocasiões, o autor acrescenta partes manuscritas, notas ou corrige determinadas expressões dos fragmentos, em uma variedade de suportes e de códigos. Isto é, ainda que seja um ato de escrita, Pessoa mostra uma certa reflexão linguística depois de findado o fragmento. Isso acarreta o que Portela (2016, p.19) chama de “condição textual indisciplinada”, escritos sem linearidade e com disposições horizontais e verticais na página. É essa dificuldade de conciliação entre a disposição material da escrita e a formulação em livro que Pessoa enfrentou.

Além disso, durante a pesquisa dos originais, Portela e Gímenez (2015) perceberam que essa reflexão posterior empreendida por Pessoa decorre mais nos textos impressos e publicados, que, por consequência, possuem um caráter discursivo maior, enquanto os manuscritos são mais curtos e soltos sintaticamente, como se cada fragmento fosse elaborado de uma vez só, por uma unidade temporal específica: “Cada pedaço textual pode ser lido como uma unidade neurológica incorporada na atenção especial da exploração da auto-consciência.” (p. 63). Por fim, os pesquisadores enfatizam o caráter desordenado em alguns fragmentos manuscritos, o que corrobora a tese de Pessoa escrever em diferentes momentos, acrescentando novas reflexões às antigas e formando, assim, uma ótica constelacional, reticular e não-linear, similar ao processamento da consciência e também ao hipertexto. A seguir, reproduzo o fac-símile explorado por Portela e Gímenez, um dos manuscritos mais confusos creditados ao Desassossego encontrado no espólio de Pessoa (Figura 2):

Figura 2 – Fac-símile 1 do Livro do Desassossego Fonte: PORTELA; GÍMENEZ, 2015, p. 65.

Os pesquisadores afirmam que, pelos traços horizontais e pela diferença das cores das tintas, pode-se inferir que tais fragmentos foram escritos em momentos distintos. Além disso, algo que não é mencionado por Portela é o fato de Pessoa usar uma folha onde já estavam datilografados versos de Álvaro de Campos, o que comprova o uso do mesmo suporte em diferentes tempos. Outra questão interessante de se notar é que o início do texto, isto é, onde aparece a marcação “L. do D.” está no centro da página, o que talvez indique a intenção inicial de escrever um fragmento curto, mostrando a subversão de Pessoa dos padrões ocidentais de escrita, de cima para baixo e da esquerda para a direita.

Assim, a ordenação de tais pedaços é arbitrada ao editor – e a formulação hipertextual pretendida aqui busca se aproximar o máximo possível dessa ordenação espraiada por Pessoa. Quando se compara este trecho nas quatro edições do Desassossego através do Arquivo LdoD, percebe-se que todos os editores possuem

interpretações particulares, distintas entre si: Coelho organiza todo o manuscrito em um único fragmento; Cunha e Zenith, em dois; e Pizarro cria três fragmentos distintos. A este respeito, Zenith acrescenta uma nota em sua edição: “Texto muito desordenado. Na arrumação apresentada aqui, a colocação do segundo e do último parágrafo (os únicos datilografados no original) é hipotética, dada a ausência de quaisquer indicações do autor (PESSOA, 2006a, p. 540, nota 419)”. Na verdade, toda a ordenação desse fragmento é hipotética, já que a causalidade entre os pedaços também está na recepção, e não na escrita.

Além deste, os próximos três fac-símiles, não analisados anteriormente, ajudam a entender os atos de escrita pessoanos. Em nossa pesquisa, buscamos diferentes tipos de fragmentos, a partir da concepção de Portela e Gímenez (2015): o fragmento como um pedaço de papel, ou seja, quando o editor não consegue recuperar todo o texto por uma limitação material (Figura 5); o fragmento como pedaço de escrita, quando Pessoa interrompe o próprio ato de escrita e não conclui o pensamento (trechos da Figura 2); o fragmento como a parte de um todo, o que parece ser a maior parte do Livro, quando Pessoa idealiza-o em um projeto maior (Figura 3); e o fragmento como gênero em si, quando ele tem totalidade e não depende de mais nenhum outro fragmento (manuscritos da figura 4).

Figura 3 – Fac-símile 2 do Livro do Desassossego Fonte: Arquivo LdoD <https://ldod.uc.pt/source/list>

No fac-símile da Figura 3, ocorre um processo semelhante da figura anterior, em que Pessoa escreve sob, pelo menos, três orientações distintas. Entretanto, diferentemente do primeiro, neste os editores chegaram a um consenso, e todos – Cunha, Zenith e Pizarro, pois tal fragmento não está na edição de Coelho – atribuíram uma relação sequencial da parte escrita na vertical no canto inferior direito ao restante do texto. Tal atribuição tem sentido, uma vez que as palavras finais da última linha horizontal (“Quem me dera que de mim ficasse uma frase”) pedem um complemento como o que está ao lado (“uma coisa dita de que se dissesse Bem-feito!”). Porém, se há realmente essa relação sequencial, distribuída assim na folha pela simples falta de espaço, por que Pessoa teria escrito o primeiro parágrafo ocupando toda a linha horizontal, e o segundo ocupando apenas metade? Em um veloz ato de escrita, possivelmente percebeu que, mantendo a linha inteira, não disporia de espaço para o que pensava, e altera a disposição: primeiro, tenta inserir duas colunas horizontais e, depois, dá-se conta de que obteria um melhor aproveitamento da folha distribuindo o que faltava na vertical. O certo é que o poeta demonstra não se importar tanto com a ordenação dos seus manuscritos, que muito possivelmente seriam organizados em um segundo momento, quando datilografados. Além disso, de acordo com a tese dos “atos de escrita”, de Portela, é fundamental para o processo de autorreconhecimento que o sujeito escrevente finalize o fragmento, importando mais a conclusão do que a

organização. Dessa maneira, em um esforço de acompanhar o rápido e confuso processo mental, Pessoa busca escrever de forma igualmente ágil, o que gera uma página caótica e também uma letra pouco legível:26

Figura 4 – Fac-símile 3 do Livro do Desassossego Fonte: Arquivo LdoD <https://ldod.uc.pt/source/list>.

Já no fragmento reproduzido na Figura 4, temos um texto datilografado e mais longo. Como Pessoa escreveu à máquina, possivelmente tal fragmento passou, nesse momento, por uma reordenação. Entretanto, o autor acrescenta novos atos de escrita – um, na vertical no canto superior esquerdo, e o outro, no fim da página. Pela marca da tinta, infere-se que foram produzidos em momentos diferentes. Neste fragmento, os quatro editores são unânimes em acrescentar ao manuscrito, primeiramente o que Pessoa anota no fim da folha (“Escrevo como quem dorme, e toda a minha vida é um recibo por assinar.”) e depois o que o poeta acrescentou no canto esquerdo (“Dentro da capoeira de onde irá a matar, o galo canta hinos porque lhe deram dois poleiros.”).

26 Na carta a Casais Monteiro, em que revela o surgimento dos heterônimos, Pessoa afirma que escreve

depressa e “quando escrevo depressa não sou muito lúcido”. Não satisfeito com a velocidade, Pessoa usa a máquina porque “assim é mais rápido e nítido”. Disponível em: <http://arquivopessoa.net/ textos/3510>.

Apesar do consenso, a pergunta que fica é: poderiam ser ambos os textos manuscritos fragmentos independentes, inseridos em uma página aleatória de um fragmento já datilografado, nos moldes da Figura 2? Por três razões, parece-nos que sim: primeiramente, são atos de escrita distintos; segundo, os dois fragmentos manuscritos possuem uma unidade, isto é, são dotados de um sentido completo; e terceiro, suas relações semânticas em relação ao datilografado são frágeis. Dessa forma, julgamos legítima a decisão de separar esse fragmento em três partes, as quais podem ser associadas por hiperlinks.

Figura 5 – Fac-símile 4 do Livro do Desassossego Fonte: Arquivo LdoD <https://ldod.uc.pt/source/list>.

O fac-símile reproduzido na Figura 5 ajuda-nos a perceber não só o caráter fragmentário da obra, mas também literalmente despedaçado e, em certa medida, frágil. Pessoa escreve esse fragmento em um papel de carta carimbado pelos correios. Os dois períodos – “O aristocrata é o homem que é coerente consigo próprio. Quando abdica, abdica a valer.” – são os únicos possíveis de resgatar neste pedaço de folha, mas, pelo canto direito inferior, supõe-se que Pessoa tenha escrito algumas outras linhas. Além disso, não há a indicação “L. do D.” nesse material, e, portanto, apenas Teresa Sobral Cunha o incluiu em sua edição. Como encontramos somente um pedaço do papel, há a possibilidade de Pessoa ter registrado as letras indicando o pertencimento ao livro, embora não seja possível a recuperação. Cunha, portanto, entendeu que a semântica do fragmento se aproximava do Desassossego e o acrescentou.

Com a descoberta desses atos de escrita, Portela e Giménez (2015) segmentaram, além do conceito de “fragmento”, quatro diferentes tipos de textos que integram os originais do Desassossego: os doze publicados por Pessoa em vida, pertencentes à fase simbolista inicial; centenas de datilografados, muitos deles com rascunhos e acréscimos manuscritos; centenas de manuscritos, alguns com emendas e correções; e fragmentos contidos em cadernos com outros projetos. Com exceção dos publicados, a grande maioria dos textos estende-se por poucos parágrafos e dificilmente ultrapassa uma página.

A partir da construção dos atos de escrita, a equipe de Coimbra começou a estruturar o site. No estágio inicial, pretendiam construir, ao todo, três dimensões e quatro funções, explicadas a seguir.