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Capítulo 1: O Hipertexto

1.6 Manifestações literárias hipertextuais

1.6.2 Potenciais hipertextos

O uso do hipertexto enquanto discurso fragmentário e associativo pela literatura não é isolado nem recente. Ana Elisa Ribeiro (2005) traz a Bíblia como o primeiro grande hipertexto, ideia corroborada por Lajolo e Zilberman quando afirmam que “as descontinuidades, instabilidades e hermenêuticas que atravessam e acompanham o discurso bíblico ao longo dos mais de mil anos de sua circulação têm algo em comum com o hipertexto contemporâneo nosso de cada dia” (2009, p. 10).

A poesia atribuída a Gregório de Matos Guerra, pertencente ao período barroco brasileiro, que ocorre no século XVII, já foi lida por Alckmar Santos (2000) como percursora da comunhão entre hipertexto e literatura, principalmente pela efemeridade e pela valorização da parte em detrimento do todo, que provoca uma fragmentação poética. Alckmar mostra que Gregório já trabalhava com a quebra de palavras, como no poema a seguir, do qual reproduzo a primeira estrofe:

Dou pruden nobre, huma afá

to, te, no, vel, Re cien benig e aplausí Úni singular ra inflexí co, ro, vel Magnífi precla incompará (apud SANTOS, 2000, p. 35).

Nesse poema, Gregório constrói pequenas teias, em que os pedaços de palavras presentes no segundo e no quinto verso encaixam como finais das palavras tanto do verso antecedente quanto do seguinte.

Outros três exemplos são encontráveis no século XIX. Costa (2000) cita o projeto de Mallarmé, que buscava quebrar a linearidade sintática, como o poema Um

lance de dados, que permitia ao leitor uma série de combinações. Carlos Reis (2003) por sua vez, estuda a hipótese de pensar a viagem empregada por Garrett em Viagens na minha terra como uma navegação hipertextual, e Sírio Possenti (2002) alça Machado de Assis a um dos percursores da tentativa de uma leitura não-linear, como no delírio de Brás Cubas: ‘se o leitor não é dado à contemplação (...), pode saltar o capítulo, vá direto à narração’ (apud POSSENTI, 2002, p. 69). Hélio Seixas Guimarães (2004), ao estudar a recepção da obra machadiana, conceitua o leitor pressuposto por Machado em Dom Casmurro como um “leitor lacunar”, aquele que completaria os espaços em branco deixados por Bentinho para decidir sobre a fidelidade de Capitu. Uma das maravilhosas passagens desse clássico é quando o narrador pede desculpas ao leitor pelas páginas estarem fora de ordem: “Perdão, mas este capítulo devia ser preenchido de outro (...). Vou escrevê-lo; podia antepô-lo a este, mas custa muito alterar o número das páginas; vai assim mesmo.” (ASSIS, 2012, p. 227). Nada mais hipertextual.

No século XX, encontramos o exemplo mais citado pelos especialistas em hipertexto: O Jogo da Amarelinha, de Júlio Cortázar, publicado em 1963, um livro “que é muitos livros, mas é, sobretudo, dois livros” (2013, p. 11), segundo palavras do próprio escritor. Nele, são oferecidas duas possibilidades de leitura logo no início: a primeira, linear, que termina no capítulo 56; e a segunda, aos pulos, cujo início é no capítulo 73. É importante salientar que a segunda leitura não só ganha importância pela referência dos pulos da brincadeira infantil no título, mas também que é subordinada à mente autoral, que conduz o leitor por um caminho determinado. Outro aspecto do livro é que o aparente caos formado por Cortázar para o jogo da amarelinha da segunda leitura tem um fio condutor linear com início no capítulo 1. Observemos:

O segundo livro deixa-se ler começando pelo capítulo 73 e continua, depois, de acordo com a ordem indicada no final de cada capítulo. Em caso de confusão ou esquecimento, será suficiente consultar a seguinte lista:

73 – 1 – 2 – 116 – 3 – 84 – 4 – 71 – 5 – 81 – 74 – 6 – 7 – 8 – 93 – 68 – 9 – 104 – 10 – 65 – 11 – 136 – 12 – 106 – 13 – 115 – 14 – 114 – 117 – 15 – 120 – 16 – 137 – 17 – 97 – 18 – 153 – 19 – 90 – 20 – 126 (...) (CORTÁZAR, 2013, p. 11) [grifos meus]

Dessa forma, não há uma combinação aleatória dos capítulos, mas sim um encaixe de um ou mais episódios em uma história com início, meio e fim, como se o autor fosse inserindo parênteses entre capítulos ordenados linearmente. Talvez tão

hipertextual quanto Machado, mas sem deixar de ser um tanto inovador. Rehem (2007), em sua tese de doutorado, mostra o hipertexto na obra de Ítalo Calvino, que, por exemplo, estrutura As Cidades Invisíveis, de 1972, em capítulos curtos e em um encadeamento simultaneamente pendular e circular, já que compõe certas narrativas fragmentárias na medida em que vai e vem com os capítulos. Na literatura brasileira, o romance Zero, de Ignácio de Loyola Brandão pode ser um exemplo, já que, buscando a crítica à ditadura militar, utiliza-se do hibridismo discursivo, colando diversos gêneros, como anúncios e reportagens jornalísticas e constituindo uma narrativa fragmentária. Impossível deixar de citar novamente Borges, que com suas metáforas labirínticas e totalizantes, construiu previamente alegorias do que hoje definimos como sendo a internet: não só o livro de areia e os jardins dos caminhos que se bifurcam, mas também o Aleph, um globo circular em que é possível sentir todas as sensações e ver todas as imagens do mundo, e Funes, o sujeito que guarda todas as memórias.

Nos anos 1930, por fim, encontramos dois autores que travaram tamanha luta com a limitação do suporte impresso, que deixaram de publicar suas obras. Na Alemanha, Walter Benjamin, ao estudar o cinema, enxergou a extrema importância do processo de montagem. Benjamin percebeu que o cinema escapou muito rapidamente da possibilidade de ser um “teatro filmado”, pois extrapolou o mecanismo da montagem, assumindo uma nova linguagem artística: “Plano e montagem são os elementos básicos do cinema”, afirma Eisenstein (2002, p. 52). Para Benjamin, era a montagem a possibilidade narrativa mais condizente com o sujeito moderno, que vivia constantemente alerta e consciente, em um tempo no qual o choque passara a ser visto como norma. Por isso, elevou a montagem ao primeiro plano, tanto em suas obras artísticas quanto em seus estudos teóricos.

No seu projeto denominado As Passagens, o filósofo alemão buscou recolher o maior número de citações, recortes, e materiais diversos da cidade de Paris, organizando-os em um sistema de siglas em cores. Como em um jogo de lego, o leitor empreenderia uma “leitura ativa de um texto por meio da desconstrução e da montagem” (BOLLE, 2015, p. 90), construindo e descontruindo seu próprio percurso. O projeto carregava em seu pressuposto uma lógica de inacabamento, uma vez que sempre há dados históricos a se recolher. O livro ficou inacabado, sendo organizado posteriormente por seus editores. Além disso, em Rua de mão única, Benjamin constrói uma espécie de “mapa constelacional” da cidade de Berlim, com pequenos

fragmentos que compõem uma cidade e, apesar de ter publicado, nunca deixou de acrescentar adendos à edição. Por fim, Infância Berlinense: 1900 nunca foi finalizado – nele, o alemão queria retomar a criança que havia sido na virada do século através de pequenos fragmentos de memória, que estariam associados de forma constelacional e comporiam a sua infância. No entanto, o autor não conseguiu estabelecer uma estrutura linear e ordenada desses fragmentos, e o projeto só foi publicado postumamente, com diversas versões.

Contemporâneo de Walter Benjamin, encontra-se nosso último autor, Fernando Pessoa. O português empreendeu uma órbita particular, com centenas de personalidades literárias influenciando umas às outras dentro da escrita de seus poemas, não sendo raro encontrar versos dos heterônimos na poesia do ortônimo e vice-versa. O Livro do Desassossego é o exemplo mais bem formulado de um potencial hipertexto dentro de sua obra, por ser um livro absolutamente descontínuo e aleatório, composto por quase quinhentos fragmentos, muitos deles passíveis de associação. Inicialmente idealizado como romance, o livro foi perdendo seu caráter narrativo à medida que o poeta não conseguia dar corpo unitário e organizado à escrita, deixando os manuscritos acumulados na ocasião de sua morte. Pessoa chega a afirmar sua angústia com a escrita do romance, pois, quanto mais ele escreve, mais longe está do fim. É o nosso livro de areia, que será analisado no próximo capítulo.