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Definindo conceitos, procederes e abordagens

3.2. Caminhos possíveis: definindo procederes e abordagens

3.2.2 História e cultura material: metodologias e possibilidades

Como já visto, a documentação desta pesquisa consiste em achados de descobertas arqueológicas vinculadas a enterramentos da Idade do Ferro no norte bretão. Em outras palavras, centra-se naquilo que se convencionou chamar de cultura

material. Compartilho do ponto de vista apresentado por Gruzinski (2003: 7) de que o

historiador é capaz de ampliar seu campo de estudos uma vez que deixa de buscar nos documentos escritos as únicas formas de evidências e pistas possíveis para uma investigação histórica e, de fato, as últimas décadas de publicações e a historiografia mais recente vêm destacando a contribuição de outros suportes de informações para a pesquisa histórica tais como as imagens, a história oral, o patrimônio digital, dentre outros, sempre que possível. Mais ainda, a relação entre História e cultura material vem sendo explorada há alguns anos e pode-se, de certa forma, dizer que este tipo de suporte documental esteja cada vez mais sendo utilizado por historiadores, deixando, assim, de ser uma espécie de desconhecido ou um universo restrito a arqueólogos (cf. BARROS, 2009; BEZERRA DE MENESES, 1983; FUNARI, 2005). Parece-me, portanto, que a historiografia contemporânea seja capaz de pensar que a diversidade documental é salutar para o historiador (HARTOG, 2003: 193) e que este não só pode como deve explorar as diferenças e contradições entre as fontes disponíveis, a fim de tentar melhor interpretar seu objeto de estudo e dotá-lo de maior complexidade (FUNARI, 2005: 101). Não tenho a intenção, aqui, de traçar um histórico de como a cultura material começou a ser trabalhada dentro do campo historiográfico, haja vista o estágio atual de pesquisas que já discorreram sobre esse assunto (cf. BARROS, 2009), mas ao contrário, gostaria

58 de propor uma reflexão a respeito de como é possível trabalhar com este suporte documental, definindo-o, para a presente investigação.

Em seu estudo, Carlo Ginzburg (1989) criticou em diversos momentos a crença em uma espécie de realismo documental; isto é, a postura que tende a enxergar nos documentos (no caso desse estudo, textuais) uma descrição fiel da realidade ao invés de apenas um rastro, indício ou possibilidade de se explorar a realidade a partir de uma determinada representação. De forma semelhante, Certeau (1982) tentou chamar a atenção para a necessidade de se problematizar a documentação utilizada pelo historiador a partir de uma perspectiva mais crítica, não encarando essa documentação como uma simples cristalização do passado, mas, ao contrário, como um constructo elaborado a partir de um locus social no qual o indivíduo que a produziu está inserido, não se podendo, portanto, observar as fontes históricas com um olhar inocente (CERTEAU, 1982: 66-82).

Tais premissas teórico-metodológicas se aplicam, igualmente, à cultura material. Compartilho do ponto de vista defendido, recentemente, por Hays-Gilpin (2008: 337) de que a cultura material não reflete passivamente uma dada sociedade, mas, em sentido oposto, ela pode ser ativamente manipulada por agentes históricos na construção da realidade e de relacionamentos entre indivíduos, incluindo-se, aí, o gênero. Assim, o entendimento da “cultura material como ativa” (SØRENSEN, 1991: 121), vindo de contribuições mais recentes da Arqueologia Pós-Processual, significa tão somente entender que os objetos participam do processo de criação do mundo cultural. São, portanto, uma parte da dinâmica social; componentes integrados a múltiplas esferas, à vida humana e cujos significados variam de acordo com os contextos em que são constituídos e utilizados (HODDER, 1987). Como Rosemary Joyce (2002) colocou, a cultura material pode ser entendida como uma “entrada única em um diálogo” (JOYCE, 2002: 142) – uma pista, um ponto de partida singular que permite evidenciar diálogos e relacionamentos estabelecidos em suas mais variadas formas e facetas.

Nesta pesquisa optei, portanto, por encarar a cultura material como um medium: um veículo flexível que pode ser utilizado tanto para criar noções de tradição, manter convenções e comportamentos normativos, como, também, para se romper com essas mesmas normas, desafiá-las e contestá-las (SØRENSEN, 2006: 105). Partindo-se de tal princípio e encarando a cultura material como um local ao mesmo tempo de criação e resistência, acredito que a análise daí procedente se caracterize mais como um processo de interpretações dinâmicas (e passíveis de reformulações a todo momento) do que de

59 apenas um mero processo de decodificação de um sentido dado a priori (MILLER, 1994). Isto implica um posicionamento crítico – não só metodológico, mas que não deixa de ser, também, ontológico –, que nega a existência de qualquer sentido dado e materializado de antemão. Ao contrário, uma postura mais adequada parece ser a que busca observar o objeto de estudo a partir daquilo que M. L. Sørensen (1991: 121) definiu como “fluidez de significado”: isto é, destacar como grupos ou indivíduos particulares podem rejeitar ou manipular o significado de dados objetos e relacionamentos sociais ou resistir a eles a partir de apropriações e usos diversificados (SØRENSEN, 1991: 121). Em outras palavras, implica afirmar que os objetos não possuem valores, simbologias ou significados próprios, mas que todos esses elementos são construídos a partir da prática social dentro de contextos culturais específicos e, portanto, a referida fluidez diz respeito às múltiplas possibilidades de ações e reapropriações.

Assim, ao utilizar tal tipo de documentação como principal suporte de análise para o estudo das construções de gênero, representações e hierarquias sociais em East Yorkshire ao longo da Idade do Ferro, entendo que seja igualmente necessária a adoção de uma metodologia que permita explorar satisfatoriamente as particularidades e especificidades de nossas fontes, tendo em mente as problemáticas formuladas.

Para analisar os enterramentos de carros da Idade do Ferro bretã optei por uma metodologia que possibilite e facilite a identificação de padrões e variabilidades nas tumbas analisadas. Partindo da organização dos dados e da criação de fichas catalográficas que correspondem a cada um dos enterramentos aqui discutidos, optei por seguir algumas das propostas metodológicas elaboradas por Sprager (1968: 483), que leva em consideração diferentes fatores, conforme apresentados na seguinte tabela elaborada por Silva (2006: 117):

60 Tabela 2: Terminologias e classificações para sepultamentos humanos em contextos arqueológicos

Acrescenta-se a ela aspectos relevantes tais como pontuados por Goldstein (1981: 59), levando-se em consideração, também, fatores tais como a existência de mutilações ou modificações anatômicas no corpo do morto (em vida ou após a morte), o

61 formato do túmulo e elementos variados de natureza biológica sempre que possível: prováveis causas de morte, sexo, idade, evidências a respeito da dieta e nutrição do indivíduo enterrado36.

Por fim, para os estudos dos marcadores de desigualdades, utilizo-me da abordagem de Wason (2004: 84-85; 93-101) que propõe a observação da articulação de tipos de depósitos funerários à construção de hierarquias sociais e legitimação de relações de dominação, hereditariedade, poder e prestígio. Tal contribuição metodológica permite pensar os objetos encontrados no contexto mortuário como resultantes de uma ação final; ou seja, possibilita-nos estarmos atentos aos possíveis significados contidos em tais atos e na escolha de retirar determinados objetos de circulação na sociedade, para ofertá-los aos mortos (cf.TACLA, 2008: 134).

A partir da organização da documentação no catálogo, foi possível identificar elementos comuns e destoantes que são de grande relevância para o presente estudo como, por exemplo, a orientação do corpo do indivíduo enterrado, as técnicas de preparo do corpo, as estratégias de monumentalização do local e a deposição e disposição de objetos funerários. Todos esses aspectos são importantes, já que se busca, aqui, partir do princípio de que “enterramentos são contextos culturais complexos, envolvendo uma multiplicidade de aspectos entrelaçados” (ESCÓRPIO; GASPAR, 2005: 62). A possibilidade de melhor identificar e articular todos esses elementos entre si, então, parece permitir, igualmente, desenvolver um estudo mais voltado para a historicidade e o aspecto social por detrás de todos os dados coletados, uma vez que se destaca a prática humana (ou ainda, práticas!) que perpassa(m) a todo momento as construções de nossos objetos. Desta forma, é possível localizar, a partir do tratamento mortuário, atributos e ideologias de gênero, diferenciações etárias e sociais, determinadas formas de ritualização do mundo e da morte, bem como um conjunto complexo de performances materializadas que, por sua vez, se constituem como atos de presença no mundo e em si mesmas a partir da construção de um local privilegiado e de discursos que visam a comunicar e ao mesmo tempo a transformar (cf. ZUMTHOR, 2007: 32, 41-2, 67).

36 A respeito de aspectos tais como nutrição e alimentação podemos identificar inclusive um crescimento

considerável na qualidade das pesquisas realizadas nesta área o que, em parte, se deve ao avanço dos meios tecnológicos. Quanto ao nosso objeto de estudo, podemos destacar a pesquisa recente elaborada por Mandy Jay e Michael P. Richards (2006) a respeito da ‘dieta’ dos indivíduos da Idade do Ferro da região de Wetwang Slack (East Yorkshire), a partir dos enterramentos encontrados naquela área.

62 Trata-se, em todos os casos, de tentar dar conta do Humano dentro de uma perspectiva histórica, tomando-se a cultura material como ponto de partida para a busca de indícios, a partir de um dos momentos mais decisivos, traumáticos, marcantes ou importantes para um determinado grupo ou comunidade – a morte –, para, então, atentar para a multiplicidade de estratégias adotadas e de discursos construídos em relação a esse fenômeno, destacando a importância social dos mesmos.